sábado, 24 de outubro de 2009

Após o período de sua independência, na década de 1960, os países africanos assumiram a tarefa de atenuar a ignorância reinante sobre o passado de seu continente e de superar os preconceitos discriminatórios. Pela primeira vez, os africanos tinham a possibilidade de escrever a história de seu continente.




Os Ajami, centenas de milhares de arquivos escritos em línguas africanas, ainda são negligenciados hoje.
A maior parte dos preconceitos raciais sobre os africanos tem sua origem na crença oriunda dos discursos que justificavam o tráfico escravagista e a colonização e argumentavam que a África é um continente sem história nem civilização. Exemplo da persistência de tal postura é a seguinte declaração de Hugh Trevor-Roper, eminente professor de História Moderna em Oxford, na década de 1960: “Atualmente, os estudantes pretendem que lhes seja ensinada a história da África Negra. Talvez no futuro eles possam aprender um pouco de história africana, mas por enquanto o que há é a história dos europeus na África. O resto permanece na obscuridade… e o que resta obscuro não é um tema de história”.

Assim, é compreensível, por um lado, a razão pela qual os intelectuais africanos e os afrodescendentes implicados desde o início do século XX na liberação dos povos negros empreendem um combate em favor do que alguns chamam de “descontaminação das mentes”. Por outro, o motivo da demanda apresentada à UNESCO pelos Estados africanos, imediatamente depois de terem conseguido sua independência, na década de 1960, para ajudá-los a enfrentar tal desafio.

Ao decidir o lançamento, desde 1964, do projeto de uma História Geral da África, a UNESCO tinha o objetivo de atenuar, antes de mais nada, a ignorância generalizada sobre o passado deste continente e de superar os preconceitos discriminatórios. Para atingir essa finalidade, a melhor maneira consistia em entregar aos africanos a tarefa de reescrever sua história com as garantias científicas indispensáveis.

Para esse efeito, foi instalado um Comitê Científico Internacional composto por 39 experts, representando diferentes disciplinas das ciências sociais e humanas: dois terços de seus membros eram africanos a fim de facilitar uma perspectiva genuinamente africana que, nem por isso, deixaria de se confrontar com os pontos de vista dos especialistas não-africanos.

Cheik Anta Diop (Senegal), Hampaté Ba (Mali), Joseph Ki-Zerbo (Burkina Faso), Ali Mazrui (Quênia) e Théophile Obenga (República do Congo), para citar apenas os mais conhecidos, empreenderam com seus pares oriundos de outras regiões do mundo, então, um fecundo diálogo intelectual que irá modificar o discurso sobre a África e os povos negros.

Os debates são animados e até mesmo agitados, especialmente quando se trata de recorrer, com finalidade historiográfica, às tradições orais africanas ou aos Ajami – arquivos em línguas africanas transcritos no alfabeto árabe e que ainda são desconhecidos pelo grande público (ver destaque). As discussões mais acirradas, como a que tratava da origem negro-africana da civilização do Antigo Egito, fixada por Théophile Obenga na época da 18ª dinastia (1550-1292 a.C.) e por Cheikh Anta Diop no início do Neolítico (9000 a.C.), foram publicadas no 2º volume.

Abordagem global


Ao renunciar à ambição de uma história exaustiva, o Comitê Científico optou por obras de síntese que permitam expor o estado atual dos conhecimentos, assim como as principais tendências da pesquisa. Decidiu, igualmente, enfatizar a história das idéias e das civilizações, das sociedades e das instituições, além de privilegiar uma abordagem interdisciplinar que se sirva de todas as fontes disponíveis: por um lado, das tradições orais e dos Ajami; por outro, de diferentes disciplinas, como lingüística, musicologia, ciências físicas e naturais. Por último, o Comitê preferiu adotar uma perspectiva continental que considera a África como um conjunto, superando a dicotomia habitual entre a África do Norte e a África Subsaariana.

Publicados entre 1980 e 1999, os oito volumes da coleção percorrem o continente, conhecido como berço da Humanidade, desde a aparição dos hominídeos, há 3 milhões de anos, ao “horizonte de 2000”, passando pelo Antigo Egito, pela dinastia dos fatímidas, pela civilização swahili, pelos reinos do Chifre da África, pelo tráfico escravagista e pela independência dos diferentes países, tudo em cerca de 6.500 páginas.

A obra refuta algumas idéias preconcebidas, como a que defende o isolamento do continente, ao demonstrar que o Saara, longe de constituir uma barreira, sempre representou um espaço de intercâmbios. Mostra, também, que a África manteve contatos permanentes com a Ásia, o Oriente Médio, a Europa e as Américas.

Bem antes do projeto “A Rota do Escravo”, lançado pela UNESCO em 1994, a "História Geral da África" já havia contribuído para quebrar o silêncio sobre o tráfico escravagista e seu impacto sobre as dificuldades conhecidas na África desde então, dedicando-lhe um volume específico na sua coleção anexa de “Estudos e Documentos”.

Mais de vinte publicações complementares, em particular sobre assuntos controversos, como as fontes da História, o povoamento do Antigo Egito e a descolonização da África, fazem parte dessa construção monumental que mobilizou mais de 230 especialistas.

Desde a publicação dos primeiros volumes, a "História Geral da África" ganhou uma repercussão fenomenal nos meios científicos e universitários, dentro e fora do continente africano. Editada integralmente em inglês, árabe e francês, e parcialmente em chinês, coreano, espanhol, italiano, japonês e português, a publicação é considerada uma importante contribuição para o conhecimento da história e da historiografia africanas.

Declínio pedagógico


A obra, no entanto, permanece inacessível ao público em geral e continua insuficientemente utilizada nas escolas africanas, embora uma versão resumida tenha sido publicada em inglês, francês e em três línguas africanas (haussa, kiswahili e peul).

Os compêndios de história publicados na África que se inspiraram nesta coleção ainda são raros. Além disso, o ensino da história africana continua sendo marcado pela perspectiva eurocêntrica. Observa-se mesmo uma tendência de se apresentar, neles, uma visão nacionalista da história, conferindo importância desproporcionada à divisão colonial da África.

Eis o motivo por que, mais uma vez, foi apresentada à UNESCO a solicitação de uma melhor utilização pedagógica desta coleção. Um projeto dotado de US$ 2 milhões foi lançado em 2008 graças a um financiamento do governo líbio. “Conhecer seu passado para preparar melhor seu futuro” é o lema que orienta a elaboração das ferramentas pedagógicas que deverão estar disponíveis no final do próximo ano.

Com que objetivo? Lembrar que, apesar de sua diversidade, a África compartilha uma história e valores comuns a partir dos quais a União Africana teria a possibilidade de construir os Estados Unidos da África.

Seu alvo? A população mais jovem – alunos do primário e do secundário –, que terá à disposição compêndios pedagógicos comuns a toda a África, conciliando temas agregadores como identidade cultural ou cidadania pan-africana, e especificidades nacionais. Os menos jovens serão igualmente beneficiados com uma melhor difusão dos volumes da coleção principal e da versão resumida nos estabelecimentos de ensino superior. Por último, os professores receberão guias, CD-Roms com finalidade didática e um atlas histórico, ferramentas que lhes permitem, por um lado, informar-se sobre os avanços da pesquisa histórica e, por outro, aprimorar o modo e o conteúdo de seu ensino. O público em geral também não foi esquecido e terá acesso a múltiplas informações no portal web da UNESCO.

Qual será o resultado pretendido? Contribuir para que as populações africanas recebam uma informação mais fidedigna sobre a história de seu continente e sobre o aporte de suas culturas para o progresso da humanidade, fornecendo-lhes elementos para enfrentarem, com maior pertinência, os novos desafios do mundo moderno. Eis uma nova tarefa cuja execução é tão difícil quanto o esforço despendido na redação da "História Geral da África".

Ali Moussa Iye, chefe da Seção do Diálogo Intercultural (UNESCO)

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