sábado, 24 de outubro de 2009

A fé em Deus e no homem permitiu que o islã contribuísse amplamente para a edificação da civilização humana. Em vez do “fixismo” de uma ordem imposta, sua força provém da permanência de um modelo que tem de ser continuamente recriado a partir da inspiração divina e das exigências momentâneas.




O espaço geocultural islâmico constituiu, durante a Idade Média, um pólo de atração universal que exerceu sobre seus vizinhos uma influência indiscutível. Mais
Babel linguística, extravagância étnica, mosaico geográfico, caleidoscópio político – o mundo muçulmano apresenta uma extraordinária diversidade doutrinal e cultural. Se Alá é único, o islã é múltiplo por ser diferente em cada país e passar por alterações no decorrer do tempo.

É errôneo pensar que o islã realizou sua missão de uma só vez e que só consegue tirar partido de seu passado. Se reconhecermos que ele contribuiu amplamente para a edificação da civilização humana em áreas tão variadas quanto a filosofia, a geografia, a matemática, a astronomia, a medicina e a arte, devemos aceitar igualmente que sua missão, renovada incessantemente, está sempre atualizada. Também devemos estar vigilantes para reatualizar o sentido da fé corânica de acordo com o convite do versículo 148 da 2ª surata: “Cada um tem um objetivo para o qual se dirige seu olhar. Na prática das virtudes, estejam prontos a proceder cada vez melhor”.

À semelhança de qualquer outra, a fé islâmica só tem sentido quando comprometida com o presente. A fé é tanto um exercício individual quanto uma abertura para o outro. Para o islã, o homem é um “objeto” na natureza privilegiado por ser sujeito – de Deus, evidentemente. Um sujeito autônomo capaz de fazer escolhas e, portanto, responsável.

Integração do sagrado na vida social




Selecionados entre nossos melhores especialistas, os autores do volume “O indivíduo e a sociedade no islã”, sob minha orientação, tentaram mostrar em 16 capítulos como os direitos, as responsabilidades e a liberdade conseguiram libertar, em um equilíbrio frágil constantemente quebrado e logo restabelecido, o indivíduo nas sociedades islâmicas. O apaziguamento de nossos medos e de nossas angústias constituiu uma missão prioritária, apesar do rigor de alguns textos fundadores e dos interesses impreteríveis de uma sociedade quase sempre confinada.

Aproveitando a grande quantidade de informações tradicionais e recentes, abordamos as questões de fundo ao levar em consideração a dialética sutil, sem deixar de ser determinante, entre os princípios desenvolvidos pelo Alcorão e pela Suna [conjunto das afirmações pronunciadas ou tacitamente aprovadas pelo Profeta] e as vicissitudes do cotidiano.

Em vez de efetuarmos uma exposição da doutrina islâmica, acompanhamos sua inserção na história das sociedades para compreender o modo como ela exerceu influência sobre seu sentido e como ela constituiu uma inspiração relevante e unificadora em um amplo espaço geográfico, social e cultural. Enfim, como o ensino corânico foi compreendido e traduzido em atos.

Religião e cultura vivas


Desde a Idade Média até nossos dias, o Corão é a matriz a partir da qual têm sido definidos os regulamentos jurídicos, assim como as atitudes coletivas e as condutas individuais de povos que, desde o Mar da China até o litoral atlântico da África, haviam abraçado o islã. Continuidade criadora e missão agregadora são, portanto, as duas especificidades do islã.

Sabemos que a criação dos valores e sua inserção na vida concreta encontraram um campo de expressão imensa que abrange os domínios jurídicos, assim como os psicológicos, sociais, políticos, econômicos e artísticos. Convém reconhecer que essa força organizadora do islã não resulta do “fixismo” de uma ordem imposta, mas da permanência de um modelo que deve ser recriado incessantemente, a partir da inspiração divina e das exigências momentâneas: a um islã imobilizado em sua elaboração medieval, deve ser oposto um islã vivo, capaz de inventar soluções renovadas como a vida.

O sentido da fraternidade islâmica culmina na fraternidade universal, necessária para a defesa e para o esclarecimento do homem e de todos os homens: preparar a criança para as tarefas de adulto, estar a serviço dos direitos humanos, organizar as relações intercomunitárias, enfrentar a transgressão, as injustiças, as desigualdades, a opressão… A fé islâmica tem, portanto, a missão de realizar uma tarefa agregadora que diz respeito a todos os homens, quaisquer que sejam suas crenças, línguas ou filiações étnicas.

Contrariamente a uma visão caricatural da cultura islâmica, nossa obra mostra como a lei foi submetida ao processo da dialética – e continua a sê-lo – para fornecer ao homem em confronto com desafios renovados, assumidos e superados, os meios de viver sua religião e de viver em seu século. Esta História lembra que o vazio espiritual de nossa época não pode ser preenchido por fanatismos, nem pela omissão, nem por maledicências.

Abdelwahab Bouhdiba, sociólogo, é presidente da Academia Tunisiana das Letras, Ciências e Artes (Baït el Ikma)

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