quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Sentado debaixo do grande terebinto XVII

"José reflectia: «Mas porque me guia ele, este espirra-canivetes, se lhe custa tanto? Não deixa de ser estúpido, armar em pessoa amável e depois amuar. Decididamente, o seu objectivo é aproveitar a minha Hulda. [mula] Bem, ele agora já podia descer. Tínhamos combinado revezar-nos. Fala como homem» - pensava José sorrindo para consigo do costume que os homens têm de dizer mal da espécie humana e julgar o seu semelhante, como se constituíssem uma excepção. Por isso objectou:
- Achas mal a espécie humana, mas tempo houve em que, até aos filhos de Deus, o homem não pareceu de tão má matéria, visto que lhe entregaram as filhas e daí nasceram gigantes e poderosos.
O guia, com a sua maneira afectada, volveu a cabeça por cima do ombro oposto a José.
- Que de historietas conheces! – comentou com ar zombeteiro. – Para a tua idade, não há dúvida, estás em dia com os acontecimentos. Na minha opinião, desde já te digo, essa história não tem pés nem cabeça. Mas, admitindo que seja verdadeira, vou dizer-te a razão por que os filhos da Luz assim procederam, porque procuraram as filhas de Caim. Foi por desprezo, sim, por um grande desprezo. Sabes até que ponto chegara a corrupção das filhas de Caim? Andavam com as partes pudendas à mostra, e homem e mulher eram como animais. A libertinagem tinha ultrapassado todos os limites, não sendo possível ver-se aquilo sem ficar escandalizado. Não sei se estás a compreender. Faziam coisas incríveis. Chegavam a ir nuas ao mercado. Se não soubessem o que é o pudor, enfim… não dariam tanto nas vistas aos filhos da Luz. Mas sabiam, e Deus até as fizera muito púdicas. A sua lascívia consistia precisamente em calcar aos pés o pudor. Não era de perder a paciência? O homem fornicava pùblicamente, pelos caminhos, com a mãe, com a filha, com a mulher do irmão, não tendo, em suma, outra coisa em mente senão o gozo abominável do pudor ofendido. Não devia tudo isto causar horror aos filhos de Deus? Procederam assim por desprezo, percebes? Tinham perdido todo o respeito por aquele género humano que eles deviam estimar em atenção a um empenho superior. Acharam que o homem fora criado apanas para a lascívia, e o desprezo tomou neles um carácter fornicador. Se não entendes estas coisas, não passas de um vitelo."

Thomas Mann, "O Jovem José".

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