sexta-feira, 31 de maio de 2019


Violências brasilianas

   Recentemente um morador de rua foi espancado e torturado por jovens da classe media de uma cidade do interior de SP. A agressão foi registrada por câmeras da cidade e testemunhas. Os agressores alegaram estar brincando com a vitima. Por esses motivos esse espetáculo de brutalidade foi transmitido pela televisão para todo o país. Apesar da grande repercussão, esses fatos acontecem com frequência. Recentemente outro grupo agrediu de forma brutal e deliberada um jovem na Avenida Paulista ao saírem da “balada”. Nesse caso, consta que a motivação seria porque o agredido era ou parecia ser homossexual. Desde o assassinato do índio pataxó Galdino em Brasília em 1997 que a sociedade assiste, entre atônita e indignada, a manifestações de violência cometidas por jovens perguntando-se, qual a razão disso tudo? Na mesma proporção que sobram argumentos, teorias e especialistas para explicá-las faltam ações para combate-las, impedi-las ou inibi-las. Entre aqueles que sustentam que a causa seja a "falta de Deus no coração das pessoas" e os que clamam pela redução da maioridade penal existem mais determinações do que supõe a moralidade mass media e o legalismo autoritário. Entre esses extremos orbitam os paladinos do discurso politicamente correto que se arrogam defensores e representantes dos excluídos e/ou vitimas - terceiro setor, movimentos sociais, políticos. Do ponto de vista objetivo, porem, suas iniciativas quase sempre oscilam entre o assistencialismo paternalista/clientelista e a cidadania tutelada.

   Embora as ocorrências de violência acima citadas sejam distintas, elas têm muito mais em comum do que a violência consumada. Com efeito, muito embora a psicanálise, desde Freud, sustente que o sujeito, quando envolvido pela massa, seja capaz de realizar atos que individualmente não faria, o fundamento dessas ocorrências de violência no Brasil estão alem das subjetividades, da impunidade legal e da moral cristã. Por trás dessas explicações e/ou justificativas espreita uma racionalidade que consiste em uma forma de sociabilidade que caracteriza a organização dessa sociedade, portanto, trata-se de um problema político, posto que determine o lugar dos sujeitos na sociedade, em outras palavras, relações de poder. Historicamente, conforme sustentam Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro, entre outros, a colonização deveu-se a "corajosa iniciativa particular" do português, que "concorrendo às sesmarias, dispôs-se a vir povoar e defender militarmente, como era exigência real.” Assim, destacam que a sociedade portuguesa, "estreitamente vinculada à ideia de escravidão em que mesmo os filhos são apenas os membros livres desse organismo inteiramente subordinado ao patriarca”, caracteriza-se por um tipo de “dominação tradicional” inexorável a regras e a racionalidade exteriores, universalizantes e impessoais o que, por sua vez, resulta em um processo de socialização autoritário e violento. A democratização brasileira (88) introduziu novos atores, agentes, direitos, valores, procedimentos, instituições no interior do Estado e na sociedade como requisito do Estado de Direito, indispensável à democracia e o exercício da cidadania. Entretanto, do ponto de vista objetivo, constata-se que o constitucionalismo nominal não se adequou ao processo social e as leis, embora tenham validade jurídica, seguem de modo inverso, do papel para a realidade!
Considerando o processo histórico brasileiro que caracteriza a sociedade e, que é a sociedade que condiciona o individuo e não o contrário, fica mais fácil entender as determinações tanto para as manifestações de violência quanto para as iniciativas que buscam combate-la, em termos de relações sociais que determinam padrões de conduta, valores e conceitos/idéias. Arrisco-me ainda a apontar um traço, talvez recalcado, sem duvida resquício do autoritarismo recente e que combinado às características peculiares do nosso processo histórico determinam uma tendência perversa, tanto no modo como essa questão é abordada quanto à forma como elas ocorrem. Trata-se do desprezo, de ambos os lados. As duas faces da moeda de uma moralidade, preconceituosa, hipócrita, reacionária e autoritária. Desprezo que podemos perceber na negação do outro que se manifesta de modo sutil – porem não menos perverso – no não reconhecimento da igualdade enquanto sujeito portador de direitos, autônomo, livre, dotado de valores, historia e cultura/tradições próprias. O outro lado do desprezo é o da política deliberada de encarceramento e extermínio das classes desfavorecidas. Trata-se das duas faces de uma mesma moeda que caracteriza os valores da nossa burguesia e que se oferece aos excluídos: a cruz ou a espada. De fato, esse tipo de desprezo estava na essência do nazismo. Não se trata do tripé político: totalitarismo, nacionalismo, anti-semitismo. Trata-se da racionalidade da sociedade nazista – pretensa superioridade física, intelectual, espiritual e moral da raça ariana. Esse tipo de racionalidade verifica-se nas nos valores e iniciativas dessa nossa classe media e elites – nos seus valores estéticos, na sua obsessão autoritária asséptica, na inclinação a apoiar as iniciativas autoritárias estatais que buscam cada vez mais regular e cercear os direitos individuais e, sobretudo, no desprezo aberto ou velado pelo outro. O desprezo expresso nas diversas negações – direitos, autonomia, liberdade, cultura - encontra o seu limite na negação a vida, como no caso do índio Galdino. De fato, essa brutalidade nada mais é do que um sintoma dessa pretensa superioridade manifesta em um sentimento de desprezo que encontra a sua realização por meio, de um lado, do ódio e de outro, da compaixão. Ambos são autoritários e tem a mesma origem. Essa pretensa superioridade apóia-se na certeza da razão (verdade) e da conivência do sistema – Estado e sociedade. É bom que se diga, o autoritário é sempre um homem da certeza! Na medida em que o Estado e a sociedade, por meio de um processo de formação – e não apenas informação – para a democracia e a cidadania é que transformaremos essa realidade. Porque a educação deve estar a serviço da sociedade, do bem comum, e não apenas do individuo ou do mercado. Porque conforme dizia Paulo Freire, “se a educação não transforma a sociedade, tampouco a sociedade muda sem ela.”

   Para finalizar, Aristóteles explica que só existem dois tipos de virtude: a que vem da educação e a que vem do habito e, esta ele chama de ética - do grego Ethos. Conforme nos falte à primeira, nosso processo histórico demonstra o tipo de ética que temos, resta saber se é está a que queremos.


Mario Miranda Antonio Junior
Sociólogo – FESPSP
Pós em Direitos Humanos – USP (incompleto)

Bilbliografia para consulta

Aristoteles - Ética a Nicômaco
Gilberto Freyre - Casa Grande e Senzala
Sergio Buarque de Holanda - Raízes do Brasil
Raymundo Faoro - Os Donos do Poder
Sigmund Freud - Reflexões sobre tempos de guerra e morte
Erich Fromm - O Medo a Liberdade (Psicologia do Nazismo)