sábado, 20 de julho de 2013

CARTA DE PARIS AO CAMARADA KOSTRÓV SOBRE A ESSÊNCIA DO AMOR


Vladimir Maiakovski [1928]

Perdoe-me,
camarada Kostróv,
com sua habitual
largueza de vista,

se eu desperdiço,
as minhas estrofes
de Paris
em lírica imprevista.

Imagine:
uma beleza
entra na sala
vestindo peles e adereços.

A essa
bela presa
a minha fala
(não sei se
bem ou mal)
eu endereço:

Sou russo, camarada,
e sou famoso em meu país.
Já tive muitas namoradas
bonitas -
todas as que eu quis.

As mulheres
amam os poetas.
Sou vivo,
minha voz é de bom timbre.
Tonteio como éter.

Basta
ouvir-me.
Não me fisgam
com armas
sem valor.

Não caio
por qualquer charme.
Eu fui
para sempre ferido pelo amor -
mal e mal
posso arrastar-me.

Não meço
o amor
pelo matrimônio.
Deixou de amar -
passe bem!

Para mim,
camarada,
as cerimônias
valem
menos do que um vintém.

Para que ficar palrando?
Deixe de onda,
formosura,
eu não tenho mais vinte anos,
mas trinta...
e outros tantos
fora da conta.

O amor
não está
em ferver bruscamente,
nem está
em acender uma fogueira,
mas no que há
por trás
das montanhas do peito
e acima
da jangal-cabeleira.

Amar
é ir ao fundo do cercado
e até que a noite
- corvo negro -
chegue
cortar lenha
com chispas
no machado
e a nossa própria força
pôr em xeque.

Amar
é desfazer-se dos lençóis
que a insônia desarruma
e com ciúmes
de Copérnico,
a ele,
não o marido
da Maria dos Anzóis
considerar rival eterno.

O amor
não é paraíso nem geena.
Para nós
o amor
é o atestado
de que
outra vez se engrena
o coração
- motor enferrujado.
Você
rompeu o fio
com Moscou.

Os anos
criam
distâncias.
Como
explicar o que passou
assim de relance?
Na terra
há luzes - até o céu...
No céu azul
estrelas
a granel.

Se eu
não fosse poeta
seria astrônomo por certo.
A praça já se apinha.
Os coches rodam.

Eu passo
anotando linhas.
no meu livro de notas.
Correm
os carros
rente,
mas não me atropelam.

Entendem,
de repente: está em êxtase
por ela.
Sonhos,
visões,
excursos enchem-no
até os ossos.
Aqui
até os ursos
ganhariam asas.

E agora,
quando acabo de fervê-las,
num restaurante barato,
as palavras
soletram das letras
às estrelas
um cometa dourado.
Deixando
pelo céu um longo rastro,
brilha a plumagem do cometa,
para que os namorados
vejam os seus astros
de seus quiosques
de violetas.

Para acordar
e atrair
o apreço
desses
a que a visão já falha.

Para cortar
aos inimigos
a cabeça
com a longa cauda
luminosa
navalha.

Ouço
em meu peito
até o último pulsar
como se o estivesse
esperando
para um encontro:
o amor
a ressoar
simples e humano.

O furacão,
o fogo,
o mar
vêm vindo
furiosamente.

Quem
os pode
domar?
Você pode?
Experimente...


.


[tradução de Augusto de Campos. Foto: original do poema nas OBRAS COMPLETAS de V. Maiakovski, Edição Pravda, 1988, Volume II, p. 562]

Aprendizado


(Ferreira Gullar)


Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.

Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão

que a vida só consome
o que a alimenta.


Rosa Negra

Nervosa Flor, carnívora, suprema,/ Flor dos sonhos da Morte, Flor sombria/ Nos labirintos da tu’alma fria / Deixa que eu sofra, me debata e gema./ [...] Rosa negra da treva, Flor do nada,/ Dá-me essa boca acídula, rasgada,/ Que vale mais que os corações proibidos!


[Rosa Negra do CRUZ E SOUSA]

O mundo estava no rosto da amada


(Rilke / Trad.: Augusto de Campos)

O mundo estava no rosto da amada -
e logo converteu-se em nada, em
mundo fora do alcance, mundo-além.

Por que não o bebi quando o encontrei
no rosto amado, um mundo à mão, ali,
aroma em minha boca, eu só seu rei?

Ah, eu bebi. Com que sede eu bebi.
Mas eu também estava pleno de
mundo e, bebendo, eu mesmo transbordei.




GRAFITO NUM MURO DE ROMA




Um verme rói
––
enorme roer
––
Um verme rói minuciosamente
Desde que o tempo sentou-se sôbre siA trombeta ovóide .
Um verme ecumênicoTeólogo teleológico
Rói a priori
––
único tóteme
––
O filme da história total .
Um verme enorme rói
Um verme inerme rói
Qualquer julgamento
Presente futuro
Pessoal universal
Miguelangelesco ou não .
Um verme irreversível rói a tiara
Suspensa de palácios terrosos .


A eternidade criou tantos dédalos
Que já perde a noção de espaço .
Procurando homem por homem
Urbi et orbi
Procura-se a si mesma sem sua túnica :
Mínima . Finita . Ex .


A eternidade acaba desconhecendo
As próprias catacumbas escâncaras
Os próprios arcos de triunfo do tempo
Idos calendas calêndulas
Os leões alados & seus espaços monumentais
Os falos suspensos em obelisco
Os essedários & os éssedos
Os imperadores de pedra
Levantando irrespondidos braços .
A eternidade anoitece
A cavalo sôbre seus palácios
Ocre .


Um verme roerá a morte
Favila fasula .
Ex .

Murilo Mendes

Roma 1964

.

O coração da liberdade


Estive, estou e estarei
no coração da realidade,
perto da mulher que dorme,
junto do homem que morre,
próximo à criança que chora.

Para que eu cante, os dias são momentâneos
e o céu é o anúncio de um pássaro.
Não me afastarei daqui,
da vida que é minha pátria,
e passa como as águias no sul
e permanece como os vulcões extintos
que um dia vomitam sono e primavera.

Minha canção é como a veia aberta
ou uma raiz central dentro da terra.
Não me afastarei daqui, não trairei jamais
o centro maduro de todos os meus dias.
Somente aqui os minutos mudam como praias
e o dia é um lugar de encontro, como as praças,
e o cristal pesa como a beleza
no chão que cheira à criação do mundo.
Adeus, hermetismo, país de mortes fingidas.
Bebo a hora que é água; refugio-me na estância
quando a aurora é mistura de orvalho e de esterco,
e estou livre, sinto-me final, definitivo
como o tempo dentro do tempo, e a luz dentro da luz
e todas as coisas que são o centro, o coração
da realidade que escorre como lágrimas.

- Lêdo Ivo, in "Linguagem", 1951.


Vinho Negro


O vinho negro do imortal pecado
Envenenou nossas humanas veias
Como fascinações de atras sereias
E um inferno sinistro e perfumado.

O sangue canta, o sol maravilhado
Do nosso corpo, em ondas fartas, cheias.
como que quer rasgar essas cadeias
Em que a carne o retém acorrentado.

E o sangue chama o vinho negro e quente
Do pecado letal, impenitente,
O vinho negro do pecado inquieto.

E tudo nesse vinho mais se apura,
Ganha outra graça, forma e formosura,
Grave beleza d'esplendor secreto.


- Cruz e Sousa, do livro Últimos Sonetos, 1905.