sábado, 3 de março de 2012

"e a outra,
camuflagem final:
a memória
se dissipa."

Thomas Kling (1957–2005)poeta austríaco

Grupo 47

O Grupo 47 – um círculo literário criado em 1947 para resgatar a língua alemã da contaminação pela propaganda nazista – nunca foi homogêneo, conforme ressaltou Rühmkorf. Basta lembrar que o grupo também incluiu, além de autores mais conformes com as tendências da época, escritores tão inovadores como Paul Celan, Arno Schmidt e Peter Handke. "Nós três sempre nos entendemos bem. Reagimos contra a poesia vigente na década de 50 e tivemos trajetórias semelhantes. É isso que nos une", explicou Grass. Foi por isso que resolveram reeditar o "café central de uma literatura sem capital", como já havia denominado Enzensberger o Grupo 47.
Digitando define: (com dois pontos) e logo depois o termo em questão, a busca se restringe a enciclopédias. Geralmente se obtêm referências a artigos da Wikipedia alemã; em alguns casos, o usuário também é remetido a outras fontes.
O site www.msn.com, por sua vez, abriu recentemente a opção de consultar o dicionário enciclopédico Encarta em diversas línguas, inclusive em alemão.

Para além da compreensão

Livro aborda vantagens de se aceitar a incompreensão como algo inevitável e insolúvel.


'Kultur Nicht Verstehen' (Não Entender Cultura)
Kultur Nicht Verstehen: Pruduktives Nichtverstehen und Verstehen als Gestaltung (Não Entender Cultura: Não-Compreensão Produtiva e Compreensão como Princípio Configurador). Org. Juerg Albrecht, Jörg Huber, Kornelia Imesch, Karl Jost, Philipp Stoellger. Viena / Nova York: Springer (Zurique: Edition Voldemeer), 2005; 347p.

Um dos argumentos mais freqüentes usados na caracterização da cultura de entretenimento, em oposição à chamada "alta cultura", é o fato de aquela ser acessível a todos, ou seja, perfeitamente inteligível. Por outro lado, as manifestações culturais que não se compreendem tão facilmente são consideradas elitistas e deliberadamente direcionadas a um reduzido grupo de iniciados.



Lutero traduz a Bíblia, gravura de Gustav König, (1808–1869), 1847
Para escapar a este antagonismo muitas vezes empobrecedor, seria interessante questionar de onde vem a exigência de que a arte seja perfeitamente compreensível. Uma coletânea de textos teóricos publicada pela Edition Voldemeer (Springer Verlag) discute o conceito de cultura, incorporando a interferência do ininteligível. O livro inclui contribuições de intelectuais de diversas áreas, como teoria literária, filosofia, teoria da ciência, filosofia da religião, teologia, teoria da arte e do cinema.

Arte é feita para ser entendida

"A arte, por exemplo, não se realiza através da compreensão, mas sempre desperta perplexidade e reflexão, na melhor das hipóteses, ou mera incompreensão até o tédio, na pior das hipóteses. A produtiva irritação provocada pelo não compreendido sempre incita à releitura", constata Philipp Stoellger, professor de Teologia do Instituto de Hermenêutica e Filosofia da Religião da Universidade de Zurique.

A releitura talvez seja o critério essencial para diferenciar objetos de arte descartáveis daqueles que desafiam o leitor, observador ou espectador a retornar àquilo que se manteve enigmático durante a apreciação. Mas será que o desafio, neste caso, seria reler e reler e reler, até se desvendar o mistério? É justamente isso que desmente esta coletânea de textos.

Não entender faz parte



Hans-Georg Gadamer, 2000
A Hermenêutica, ciência da compreensão dos textos, desenvolvida tanto como pressuposto teológico da exegese bíblica como método de reflexão filosófica e científica (desenvolvido por Friedrich Schleiermacher, Wilhelm Dilthey, Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer, entre outros) parte do pressuposto de que tudo o que não foi compreendido pode ser desvendado por uma leitura cíclica.

O ciclo descreve um movimento da parte ao todo e à parte e ao todo e assim por diante, até se chegar a uma totalidade do objeto apreciado. Neste modelo, a não compreensão é apenas um momento temporário do processo de comunicação, a ser eliminado ou minimizado através deste círculo hermenêutico.

Contra esta posição se voltou não apenas o Pós-Estruturalismo francês, sobretudo a Deconstrução protagonizada pelo filósofo Jacques Derrida. Diferentes correntes teóricas atuais questionam a possibilidade de a comunicação eliminar mal-entendidos ou a própria incompreensão. Ao invés de tentar eliminar o "incômodo" daquilo que não foi compreendido, a idéia seria incorporá-lo como parte essencial do processo comunicativo e sobretudo da apreciação artística.

Do nome secreto ao signo enigmático



Elvis Presley subindo no trem em Bremerhaven (Alemanha), 1958, rumo a Friedberg, onde ficou 18 meses estacionado como soldado
O volume Kultur Nicht Verstehen (Não Comprender Cultura), organizado por diversos teóricos de língua alemã, compreende diferentes visões deste dilema entre comunicação e incompreensão. As contribuições abordam as questões mais diversas, desde as formas de lidar com a denomimnação de Deus na teologia medieval até a historiografia do fenômeno pop Elvis Presley, passando pela função do riso em O Nome da Rosa, de Umberto Eco, e pela linguagem corporal das artes marciais.

Eliminando qualquer dissociação entre uma "alta cultura" incompreensível e uma cultura de entretenimento acessível, esta publicação compreende uma grande diversidade de repertórios, do pop ao erudito, através da abordagem de uma questão que poderá vir a mudar a forma de apreciar e criticar arte.

Data 27.01.2006
Autor Simone de Mello

Poesia na rede e a malha da palavra

Coluna de Literatura 2006
Após uma fase de experimento com a internet como mídia lúdica de poesia, a rede passa a servir de suporte para projetos literários de maior consistência.


A internet oferece um milhão de respostas para perguntas que ninguém jamais fez (Sir Peter Ustinov)
Doze poetas de língua alemã se juntaram há mais de um ano na plataforma neuedichte.de (novadensidade), para gerar um intercâmbio espontâneo de reflexões circunstanciais e experimentos poéticos. Cada texto se linca a outras contribuições, compondo um diálogo em off, por assim dizer. Em off, porque nem sempre são referências explícitas e frontais que coligam os textos, mas sim contingências e detalhes, nem sempre transparentes ao leitor / usuário à primeira vista.

Ao penetrar neste labirinto, fica claro que o processo de contínua lincagem na internet é correlato ao movimento da linguagem poética, que sempre adia o significado, como se as palavras fossem escorregadias. Estas "afinidades seletivas" entre uma dúzia de poetas geram uma textura bem amarrada, uma consistência densa, lembrando que a palavra Dichtung (poesia, literatura) provém de dicht (denso).

Poesia como resposta à globalização



Cybercafé na Arábia Saudita, 2000
"Este mundo novo [no início do terceiro milênio] não deve e não pode ser descrito apenas por processos econômicos, estratégias de mercado e pelas mídias globais de entretenimento. Ele precisa, na mesma medida, de vozes individuais que se manifestem no singular potencial lingüístico e reflexivo do poema."

"Estas vozes falam a todos. Queremos localizá-las, tanto em sua inovação como em seu vínculo com todas as línguas do mundo, inserindo-as numa mídia mundial a ser acessada de quase todos os cantos da Terra", diz o programa da neuedichte.de.

A iniciativa reúne os poetas Ulrike Draesner, Oswald Egger, Elke Erb, Birgit Kempker, Ursula Krechel, Brigitte Oleschinski, Ilma Rakusa, Monika Rinck, Ferdinand Schmatz, Kathrin Schmidt, Ulf Stolterfoht e Peter Waterhouse.

Antologia poética in progress



Fontshop International, em Berlim, desenvolve novas fontes do alfabeto cirílico
Enquanto os poetas parecem perder gradativamente o interesse pelo potencial meramente lúdico da internet, aumenta a importância da rede como banco de dados e suporte para works in progress. De fevereiro de 2003 a final de 2005, o poeta alemão Ron Winkler (33) criou a antologia online Lyrik.Log, lançando um poema a cada semana.

A coletânea, publicada na revista eletrônica satt.org, inclui quase cem poetas. Encerrada em dezembro passado, é uma amostragem relativamente representativa da produção poética contemporânea de língua alemã.

Ao lado de alguns nomes estrangeiros, a antologia inclui autores como Friederike Mayröcker, Kurt Drawert, Gerhard Falkner, Franzobel, Günter Kunert, Marcel Beyer, Oskar Pastior, Mirko Bonné, Raoul Schrott, Marion Poschmann, entre muitos outros.

Ron Winkler – mestre em literatura alemã com uma tese sobre o poeta Durs Grünbein, editor da revista intendenzen desde 1997 e autor de vereinzelt Passanten (isolados passantes, kookbooks 2004) – resume a intenção do projeto: "O que originalmente foi pensado como um esboço temporário, a Lyrik.Log acompanhou os caminhos e sinais da poesia contemporânea, tornando-se uma pequena biblioteca, não apenas da poesia de língua alemã".

"Autores australianos, poloneses, lituanos, dinamarqueses, russos, ingleses e americanos se inscreveram neste espaço. E como um projeto como este jamais pode prometer ser completo, sua forma fechada pode ser entendida como janela para um universo maior."

Poesia na escrita e na fala

Um outro work in progress poético, porém mais enciclopédico, é o site lyrikline.org. A escolha de poetas representados neste banco de dados é submetida à curadoria de autores alemães e estrangeiros. O repertório ainda não pode ser considerado representativo, dado o caráter progressivo do projeto.



Poesia Digital, Giselle Beiguelmann, Poétrica
As grandes lacunas nas literaturas estrangeiras se devem ao fato de o site ter se iniciado em 1999 exclusivamente como plataforma de língua alemã. O interessante é o foco multilingual do projeto, que inclui poemas na língua original, oferecendo traduções existentes em outros idiomas.

Cada poeta é representado com uma breve biografia, uma lista de publicações e uma seleção de textos acompanhados de áudio. Este é um dos poucos sites em que é possível conferir a sonoridade dos textos lidos, um pressuposto fundamental na apreciação de poesia.

Autor Simone de Mello

via oral perde a fala

Tradição experimental da poesia perde um de seus maiores porta-vozes, o decompositor de palavras Oskar Pastior.

Oskar Pastior

Duas semanas antes de receber oficialmente o prêmio literário Georg-Büchner, um dos mais renomados da Alemanha, o poeta romeno-alemão Oskar Pastior morreu aos 78 anos. Com Pastior, a literatura alemã perde um dos mais radicais representantes da poesia experimental.

O romeno de língua alemã nascido na Transilvânia e residente em Berlim desde 1969 marcou a poesia alemã com sua escrita lúdica de vanguarda, consagrando-se como um dos mais apreciados recitadores contemporâneos. Pertencente a uma geração que cresceu durante a Segunda Guerra, Pastior foi deportado em 1945 para um campo de trabalho forçado soviético na Ucrânia, onde passou cinco anos.

Retornando à Romênia, completou seus estudos secundários e cursou Letras Germânicas, tornando-se radialista. Em 1968, Pastior aproveitou uma estadia como bolsista em Viena para fugir para o Ocidente. Após ter passado por Munique, ele se instalou em Berlim Ocidental, onde viveria até sua morte, no dia 4 passado.

Desde seus dois primeiros livros, escritos na Romênia ainda sob pressão de fidelidade ao realismo socialista, Oskar Pastior já demonstrava sua preferência pela poesia das vanguardas modernistas. Enquanto sua obra inicial foi marcada pela linguagem mais simbólica da poesia expressionista e surrealista, os livros escritos depois de sua migração para a Alemanha demonstram cada vez mais um gosto pelo absurdo, o nonsense, a tautologia, inserindo-se na tradição dadaísta com sua denúncia à ausência de lógica na linguagem.

Membro do grupo literário francês OULIPO (Ouvroir de Littérature Potentielle), ao qual também pertenceram escritores como Georges Perec e Italo Calvino, Pastior enveredou de forma cada vez mais decidida pela poesia fonética, com a qual passou a ser diretamente identificado.

Apesar de a língua alemã, com suas possibilidades combinatórias, ter sido seu maior material de experimento, o poliglota Pastior explorou com ímpeto investigativo um amplo universo interlingual. Em suas próprias palavras, sua Babel particular se constituía do "dialeto transilvânio e saxão dos avós, o alemão levemente arcaico dos pais, o romeno das ruas e das repartições públicas, um pouquinho de húngaro, um russo primitivo adquirido no campo de trabalho, um resto de latim de escola, grego de bula de remédio, alemão antigo da universidade, francês e inglês de leituras". Pastior também fez traduções inovadoras de Petrarca, Velimir Khlebnikov e Gertrude Stein.

Cracking molecular

"Cracking molecular" era a expressão que Pastior usava para descrever seus procedimentos de desintegração da linguagem. Sua grande predileção por listas de palavras de sonoridade análoga, por palíndromos, anagramas e outros jogos autopoéticos de linguagem perpassa quase toda sua produção poética.

Diferentemente da vertente mais radical da poesia fonética, que reduz a linguagem à pura sonoridade, Pastior compunha textos híbridos, nos quais uma ponta de sentido se fazia escutar em meio ao expressivo ruído da fala. O mérito de Pastior foi ter mantido com insistência uma tradição da poesia experimental alemã bastante esquecida, fazendo a ponte entre as inovações das vanguardas do início do século 20 e o revival da poesia oral nos poetry slams desde década de 90.

Data 11.10.2006
Autor Simone de Mello

bolero libido bolero Libido

bolero libido

do bobi le liro

rodo libo lebi

biro ledo boli

libi borodo le

leli do bi robo

dobile.

Oskar Pastior

sempre

o poema não existe. só

existe este poema que

estás te lendo. mas como

tu podes dizer neste poema

vide acima que não existe

o poema e só existe mesmo

este poema que estás te lendo

também pode ser que o poema

que tu não lês possa te ler e

este poema aqui não existir

mesmo. ambos tu e tu lêem

isso e aquilo. trate ambos por

tu pois eles te lêem mesmo se

tu não existires só aqui.

Oscar Pastior.poeta romeno de expressão alemã

Criticada por erros de informação

Coluna de Literatura 2006

Será que o saber enciclopédico pode manter a credibilidade num projeto de escritura coletiva e numa mídia tão dinâmica como a internet? Imprensa alemã lança caça aos erros da Wikipédia.


Enciclopédia coletiva em mais de 220 línguas
A discussão internacional relativamente contida em torno da inconfiabilidade da Wikipédia escalou na Alemanha nas últimas semanas. A enciclopédia coletiva online entrou na mira da grande imprensa, decidida a denunciar a falta de seriedade com que os verbetes são escritos e a gravidade dos erros conseqüentemente veiculados.

O Süddeutsche Zeitung inseriu propositalmente erros em diversos verbetes, a fim de controlar quanto tempo eles permaneceriam online, chegando à conclusão de que parte deles não foi corrigida até hoje. E o Bild, fazendo jus a seu registro populista, resolveu convocar seus leitores a ajudar a redação a denunciar os erros da Wikipédia.

"Vocês podem imaginar que alguém invada a redação da [enciclopédia] Brockhaus à noite, adultere alguns volumes e eles então passem a ser impressos assim?", polemizou o Bild, o maior órgão da imprensa marrom alemã, listando informações errôneas e absurdas na maior enciclopédia da internet.

"Maoísmo cultural"

Não é por acaso que a Alemanha, uma cultura em que a palavra escrita tem grande autoridade e a crítica à mídia tem longa tradição, se mostre vigilante em relação aos riscos de uma produção coletiva de saber enciclopédico numa mídia de informações efêmeras e mutantes.



Qualquer um pode intervir no conteúdo da Wikipédia
O que mais parece incomodar a opinião pública não é o desmando que impera na internet, um dos efeitos colaterais do livre fluxo de informação sem precedentes que esta mídia permite, mas sim o fato de esta falta de controle ter atingido o saber enciclopédico, um âmbito de produção de saber ainda pouco questionado em seu teor de "veracidade".

O teórico da realidade virtual Jaron Lanier, um dos críticos da Wikipédia, qualificou como "maoísmo cultural" a predominância da informação produzida pela massa anônima na internet, em detrimento da individualização do saber. Fato, no entanto, é que os erros mais graves e comprometedores da enciclopédia online são evidentemente uma sabotagem deliberada ou uma contribuição errônea ainda não corrigida, ou seja, uma interferência individual na dinâmica da escritura coletiva.

"Nenhum monstro descontrolado"

Ao contrário do que possa parecer, a Wikipédia é um projeto bastante individualizado. A metade dos 750 mil verbetes da versão alemã, por exemplo, foi escrita por cerca de 500 autores, o que contraria a idéia de uma produção inteiramente massificada da informação. Isso não altera, no entanto, o fato de este canal permitir a rápida propagação de informação não comprovada e manipulada.



Jimmy Wales, um dos fundadores da Wikipédia
Mesmo não sendo um "monstro descontrolado" – um argumento usado em defesa da Wikipédia por seu fundador Jimmy Wales –, o que distingue a maior enciclopédia online da Brockhaus, por exemplo, é naturalmente a ausência de um cânon. A relevância da informação não é determinada pela tradição cultural, mas pela dinâmica da mídia.

Isso aumenta evidentemente o risco de desequilíbrios, a margem para escolhas arbitrárias e supervalorização de contingências. A ausência de hierarquia na estruturação das informações veiculadas pela internet se choca com o repertório bem mais canonizado da cultura escrita.

Wiki wiki

Talvez o dilema da Wikipédia esteja contido no próprio nome: "wiki wiki" significa "rápido" em idioma havaiano. Mas será que o saber enciclopédico não se configura apenas com o tempo, após as irrelevâncias caírem em esquecimento? Além do mais, como localizar fontes confiáveis para acontecimentos contemporâneos, dificilmente arquiváveis em sua mobilidade?



Estande da Brockhaus na Feira de Livros de Frankfurt 2005
O que pode assustar na Wikipédia é seu potencial de divulgar dados errôneos com eficiência máxima e de se tornar uma fonte de informação hegemônica apesar da inconfiabilidade. A versão inglesa, com 1,4 milhão de verbetes, é 12 vezes maior que a Enciclopédia Britânica; a alemã, a segunda maior com 750 mil entradas, tem o triplo de informação da enciclopédia DTV e um terço a mais que a Brockhaus.

De acordo com o ranking de tráfico da Alexa, a Wikipédia é o 15º link mais acessado na internet; na busca do Google, não é raro ela constar entre as primeiras entradas.

Compêndio do cidadão x tradição

Com uma nova enciclopédia online, a Citizendium, o co-fundador da Wikipédia Larry Sanger, que abandonou o projeto original por discordar da excessiva liberdade na produção das informações, pretende garantir a qualidade dos verbetes veiculados. Na Alemanha, a própria Wikipédia já reagiu às denúncias de falta de credibilidade, anunciando a criação de uma categoria extra de verbetes bem revisados. Se a iniciativa der certo, deverá ser implementada em inglês.

No entanto, o risco continua existindo mesmo se o controle de qualidade dos verbetes se tornar mais rígido. O problema não é a Wikipédia veicular informações errôneas, pois este risco é imanente ao projeto, mas sim o fato de ela passar a ser usada como fonte de informação autorizada – e muitas vezes como única fonte de informação.

Usar a Wikipédia como fonte de trabalhos acadêmicos não é nenhuma raridade na Alemanha. Justamente na universidade, onde teoricamente se deveria produzir o saber a ser compilado numa enciclopédia. O problema, portanto, é delegar a autoridade do saber enciclopédico a um experimento que, apesar de sua legitimidade, está naturalmente exposto a manipulações e propagação de erros.

Neste ponto, as editoras de enciclopédias impressas já vêm despertando para a necessidade de explorar todas possibilidades digitais e a internet, a fim de não serem desbancadas por sua concorrente online.

Data 24.11.2006

Autor Simone de Mello

Interculturalidade na criação literária

Especial: Idiomas e variedade


Literatura 'nacional' ou 'universal'?
Aos escritores "cuja língua materna não é o alemão", embora escrevam no idioma do país, é destinado anualmente o Prêmio Adelbert von Chamisso, concedido desde 1985. Os autores em questão, embora tematizem com freqüência, em suas obras, questões relacionadas à construção da identidade cultural, costumam demonstrar uma certa resistência a rótulos como Migrantenliteratur (literatura de migrantes).

Essa denominação certamente pareceria absurda nos países vizinhos França e Reino Unido, onde não seria bem visto categorizar a obra de um escritor nascido no país, que domine perfeitamente o idioma, de "literatura de migrante".

Transição de culturas



Wladimir Kaminer: 'Meus leitores gostam do que escrevo. A eles não importa minha origem'
"Decisivo para a concessão do Prêmio Adelbert von Chamisso é, além da qualidade literária, o câmbio de idioma e cultura pelo qual estes autores, via de regra, passaram. Há também casos limítrofes, como o de escritores que nasceram na Alemanha, mas cresceram bilíngues, como o de Zsuzsa Bánk [filha de imigrantes húngaros nascida em Frankfurt]. E outros que, embora tenham vindo ainda na infância para a Alemanha, mantêm o outro idioma, como [o turco-alemão] Feridun Zaimoglu", diz Klaus Hübner, um dos organizadores do prêmio concedido pela Fundação Bosch.

Ser considerado "escritor alemão não-alemão", apesar do toque aburdo da denominação, acaba muitas vezes se tornando um bônus para estes autores no mercado. O russo Wladimir Kaminer, que se mudou já adulto para Berlim e é autor de diversos livros publicados no país, acredita que rotular um autor pela sua origem é mais uma tendência da mídia que da opinião pública.

Mudança de percepção



Adel Karasholi: 'significados e associações comuns'

Alteridade e estranhamento



Terézia Mora
Alguns dos escritores que receberam o Prêmio Chamisso no passado pertencem a minorias alemãs fora do país, como é o caso da húngara radicada em Berlim, Terézia Mora. A família da mãe da escritora é de croatas que falam alemão. Mesmo tendo crescido em um pequeno povoado húngaro, Mora falou alemão em casa e freqüentou uma escola onde aperfeiçoou o aprendizado do idioma.

Talvez por isso a escritora, que vive há 16 anos em Berlim, reaja com uma certa hostilidade ao ser questionada sobre seu nome entre os de escritores "não-alemães" que publicam no país. "Não tenho tempo para questões deste tipo", reage Mora, que em seus livros, porém, tematiza com freqüência a alteridade e o estranhamento desencadeados pelo trânsito entre culturas.

Em Alle Tage (Todos os dias), por exemplo, o protagonista Abel Nema domina com perfeição dez idiomas, embora não consiga dialogar com ninguém, vivendo no limiar da sociedade, entre traficantes de drogas e músicos outsiders. Uma figura sem origem, incapaz de se comunicar e de se sentir em casa em qualquer lugar.

Influências formais

A lista dos "escritores estrangeiros" é grande e o assunto chegou no decorrer das últimas décadas à vida acadêmica. Nas universidades, cresce também o interesse pela literatura daqueles considerados "de língua não-alemã", principalmente pelo caráter estético e formal, muitas vezes influenciado pelo "outro idioma" do escritor em questão.



Yoko Tawada: 'sons estranhos'
Yoko Tawada é outro exemplo. A japonesa vive há 24 anos na Alemanha e é autora de diversos livros no idioma do país. O estranhamento da língua estrangeira é explícito na obra de Tawada. "Todo som estranho, todo olhar estranho e todo sabor estranho surtiam efeitos desconfortáveis em meu corpo. Havia também provérbios dos quais eu sentia arrepios", escreve a autora de, entre outros, Das Fremde aus der Dose (O Outro que vem da lata).

Apesar das trajetórias de interculturalidade, é evidente que o rótulo "literatura da migração" acaba sendo pertinente apenas em relação a poucos escritores. "Literatura é literatura. A literatura é capaz de quebrar fronteiras despreocupadamente. Ela não precisa de visto ou nacionalidade. Sua identidade é estética e não sociológica", observa Karasholi.

O brasileiro Zé do Rock, por exemplo, vive há vários anos em Munique e tem livros publicados no país, nos quais cria neologismos unidos sob os rótulos de ultradoitsh ou wunschdoitsh. No entanto, Zé do Rock acredita que seus livros tenham pouco ou nada a ver com a situação dos imigrantes na Alemanha. "Eu cataloguizaria meus livros como deutsche Literatur, já que são escritos em alemão", diz.

Sem chão



Vilém Flusser (1920–1991): 'sem chão'
Ignorar as dores de uma transição cultural seria tão estúpido, porém, quanto fechar os olhos para a riqueza da herança cultural presente nas gerações de migrantes. O filósofo Vilém Flusser, que passou sua vida transitando entre pelo menos quatro idiomas (tcheco, alemão, português e francês) e vários países, descreve em sua autobiografia Bodenlos (Sem chão), que ao passar de um universo cultural e lingüístico a outro, o "novo" idioma acaba reprimindo, passo a passo, a língua materna como estrutura de pensamento. Para Flusser, quando o indivíduo "paira sobre um complexo de culturas", ele perde o chão.

Uma situação de dualidade que pode também ser vista com menos pessimismo, como observa Adel Karasholi, que hoje escreve tanto em árabe quanto em alemão: "No fim dos anos 70, tentei não ler mais o livro do mundo, mas como diz Proust, o meu livro interior. O destinatário do que escrevo se tornou menos importante e, com isso, também a escolha do idioma. Aí surgiram até mesmo ciclos poéticos como os presentes em meu último livro de poemas Also sprach Abdulla (Assim falou Abdulla), escrito parcialmente em árabe, parcialmente em alemão. Pois, no íntimo, vocifera não apenas uma luta contínua entre os dois pólos, mas também, depois de tanto tempo, um abraço entre eles".

Fonte Deutche welle