sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Exercícios ao piano


O calor cola. A tarde arde e arqueja.
Ela arfa, sem querer, nas leves vestes
e num é tudo enérgico despeja
a impaciência por algo que está prestes
a acontecer: hoje, amanhã, quem sabe
agora mesmo, oculto, do seu lado;
da janela, onde um mundo inteiro cabe,
ela percebe o parque arrebicado.
Desiste, enfim, o olhar distante; cruza
as mãos; desejaria um livro; sente
o aroma dos jasmins, mas o recusa
num gesto brusco. Acha que á faz doente.

- Rainer Maria Rilke, em "Novos poemas II" (1908). In: CAMPOS, Augusto de (organização e tradução). Coisas e anjos de Rilke. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 276-277.


Humilde surdina

Humilde surdina
Deixa falar, deixa falar:
basta o mistério do amor,
minha ternura tão mansa
e o teu jeito de querer.
Nós seremos como os pequenos:
sabem tanto, sem saber.
Voa o olhar no fundo olhar,
mão na mão, o amor pousou.
Tarde boa, morre calma...
Brinca o sino da igrejinha.
Alguém diz palavras velhas
como um sonho que passou.
Meu amor, a vida é grande
quando o olhar encontra o olhar:
mão na mão, o amor chegou.
- Augusto Meyer, em “Poesias (1922-1955)". Rio de Janeiro: Livraria São José, 1957.
http://www.elfikurten.com.br/2013/08/augusto-meyer-o-modernista-lirico-dos.html

É o êxtase langoroso...


Le vent dans la plaine Suspend son haleine.
(Favart)

É o êxtase langoroso,
É o cansaço amoroso,
É todo o bosque a vibrar
Ao enlace das aragens,
São, nas grisalhas ramagens,
Mil vozes a cochichar.
Ó o fino e fresco ciclo!
É chilreio e murmúrio,
Parece esses doces ais
Que a relva móvel suspira...
Dirias, na água que gira,
Rolar de seixos causais.
Essa alma que se lamenta
Nessa queixa sonolenta
Não seria a nossa, ai de nós?
A minha à tua enlaçada,
Exalando a humilde toada
Nesta tarde, a meia-voz?

- Paul Verlaine, em “A Voz dos Botequins e Outros Poemas”. [tradução Guilherme de Almeida]. São Paulo: Editora Hedra, 2010, p. 60-61.


As fontes


Um dia quebrarei todas as pontes
Que ligam o meu ser, vivo e total,
À agitação do mundo do irreal,
E calma subirei até às fontes.
Irei até às fontes onde mora
A plenitude, o límpido esplendor
Que me foi prometido em cada hora,
E na face incompleta do amor.
Irei beber a luz e o amanhecer,
Irei beber a voz dessa promessa
Que às vezes como um voo me atravessa,
E nela cumprirei todo o meu ser
- Sophia de Mello Breyner Andresen, em "Poesia I", 1944.
http://www.elfikurten.com.br/2014/07/sophia-de-mello-breyner-andresen.html

O Abraço(excerto)

O Abraço(excerto)
Não vês inda, de gosto sufocados,
Um noutro nossos peitos esculpidos?
Não sentes nossos rostos tão chegados
E ainda mais os corações unidos?
Oh! Mais, mais do que unidos!
Tu fizeste, Doce encanto, que eu fosse mais que teu.
Lembra, lembra-te quando me disseste:
- Meu bem, eu não sou tu?... Tu não és eu?
Goza, de todo goza o teu amante;
E unidos ambos... -Oh!... e estás tão perto!...
Meu bem, deliro, sonho ou estou desperto?
Ambos unidos em mimoso laço,
Faces, bocas unidas... Ah! que faço?...
É ar... Quando que a abraço me parece,
A mim me abraço e em ar se desvanece.
Mas que duvido com abraço estreito
Cingir-me?... Dize, não és seu, meu peito?...
[...]
Goza, meu bem (enquanto a Sorte avara
Com tanta crueldade nos separa)
Goza do alívio, que nos concedeu,
De dizer com certeza: É minha! - É meu!...

José Anastácio da Cunha (1744 // 1787)

As romãs


Duras romãs entreabertas
Pelo excesso dos grãos de ouro,
Eu vejo reis, todo um tesouro
Nascer de suas descobertas!
Se os sóis de onde ressurgis,
Ó romãs de entrevista tez,
Vos fazem, prenhes de altivez,
Romper os claustros de rubis,
E se o ouro sece cede enfim
Ante a demanda ainda mais dura
E explode em gemas de carmim,
Essa luminosa ruptura
Faz sonhar uma alma que há em mim
De sua secreta arquitetura.


- Paul Valéry, em "Charmes". (1922)..[tradução Augusto de Campos].