segunda-feira, 11 de novembro de 2019


O Paulo Guedes e os neoliberais boys estão na zona de conforto deles porque a resistência foi pequena. Com isso vão tratorando cada vez mais até serem impedidos. O papel dos movimentos sindicais e trabalhistas deve ser o de resistência na democracia. Vejam que no Chile foram as meninas, adolescentes secundaristas, que começaram um dos maiores movimentos do Continente, no ex-paraíso latino do neoliberalismo, hoje em frangalhos. Impressionante como uma categoria experimentada e veterana em resistências e greves, como os servidores federais da educação, com mais de 40 anos de acúmulo de lutas, não conseguiu fazer o enfrentamento. Muitos professores combativos participaram das manifestações e das assembleias, o tema das lutas e das greves foram encaminhadas, mas a direção nacional do movimento, Andes e Conlutas, não fizeram o necessário, nenhum encaminhamento, só paralisia, confusão e prostração, o que motiva os Guedes boys a avançarem ainda mais nas pautas destrutivas deles. Uma hora terão que enfrentar resistências e os movimentos terão que lutar para defenderem a educação, os direitos, a aposentadoria, os recursos, as reposições, a carreira, em um ano com graves perdas e a sinalização de mais ataques contra a educação.
RCO


O fracasso do megaleilão é o completo fracasso da confiança e credibilidade internacional em um governo de milicianos como o de Bolsonaro, que pode cair em breve. Nenhuma grande petrolífera se arriscará a investir bilhões em uma situação política completamente instável como a da direita sul-americana. Somente a própria empresa controlada pelo Estado, a Petrobras salvou o fiasco total, daí os neoliberais entreguistas recorrem sempre ao Estado nos momentos de perigo.
RCO


O ciclo do golpismo autoritário político-judicial no Brasil recebeu ontem decisiva derrota. Os bolsonaristas sentiram o tamanho da derrota e a perda no mando do jogo, um jogo que vinha sendo sempre roubado pelos juízes para eles durante muito tempo. Anos de escancaradas manobras e de pérfida manipulação jurídica com lawfare golpista. As derrotas do complexo político-judicial nesta semana com a recusa da prisão ilegal e arbitrária de Dilma, a decisão constitucional do STF de aplicar a própria CF88, a liberdade de Lula, Dirceu e de outros réus políticos revelam o fim do ciclo de espetacularização oportunista e tirânica do sistema judicial, que foram operações centrais no Golpe de 2016 e nas eleições fraudadas da família miliciana no poder. Este ciclo pode ser marcado bem antes da ilegal operação de condução coercitiva de Lula, em 4 de março de 2016. Na verdade o ciclo começou em 15 de novembro de 2013, em pleno feriado, com os caprichos persecutório-seletivos de Joaquim Barbosa prendendo arbitrariamente figuras nacionais do PT, sem o devido processo legal, o que não teve respaldo popular nas eleições presidenciais de 2014, porém abrindo a porteira autocrático-golpista para oportunistas ainda piores, como a bolha curitibana de operadores e famílias político-judiciais de extrema-direita, responsáveis por administrarem o caminho para os milicianos assaltarem o poder. A liberdade de Lula encerra este ciclo opressivo e despótico em que juizecos se julgavam acima das leis e rituais do campo político. Os bolsonaristas sentiram profundamente o que significa a liberdade de Lula e sabem que se fechou um ciclo prepotente deles. Moro, o antes todo-poderoso dos juízes ladrões, hoje é visto como uma figura patética e subalterna nas intrigas nepótico-palacianas do bolsonarismo, entrando em crise cada vez mais grave. Lula Livre é o resgate da democracia, o entusiasmo da oposição e o principal oponente para o frágil bloco golpista na atual conjuntura.

RCO

Chile



Pessoal "espontanex" e romântico, anarcoides pós-modernosos de salão, que estão empolgados com as manifestações no Chile: devemos, claro, apoiar e nos solidarizar com os manifestantes, mas lembrem-se que no Egito a "primavera árabe" derrubou um presidente eleito e resultou numa ditadura militar que ainda perdura, pior ainda que a anterior. Não adianta: sem partidos organizados e fortes, lideranças politicas experientes e habeis, e bancadas parlamentares numerosas não se chega a lugar nenhum...Por piores que estas instituições sejam, não inventaram ainda nada melhor para garantir direitos sociais e melhorar a qualidade da democracia. E mesmo assim ainda não eh tarefa fácil. Eh o que a experiencia dos séculos. XX e XXI nos ensina...
Sergio Braga


Alguém se surpreendeu com o golpe na Bolívia ? Há muito tempo seguia o clássico roteiro dos golpes nas republiquetas bananeiras, da guerra fria do passado, de Gene Sharp e das guerras híbridas da contemporaneidade. Pobre América Latina condenada por sua classe dominante, elites e instituições de segurança/ judiciais ao seu repugnante atraso, imensa desigualdade social e grande vergonha internacional. Evo pensou que seria diferente na Bolívia ? Foi o único chefe de Estado de "esquerda" presente na posse do Bolsonaro e ainda confiou na central de golpes da OEA e da CIA ?

RCO

A muleta política neoliberal


Artigo de José de Souza Martins

REVISTA IHU ON-LINE

09 Novembro 2019

"O neoliberalismo é a doutrina econômica dos que são incapazes de pensar a economia como instrumento do desenvolvimento social e de emancipação dos desvalidos dos constrangimentos da economia que os mantém aquém do que é o propriamente humano. Os mecanismos de desumanização de alguns, desumanizam a todos. Não só os outros, mas também os responsáveis por essa vitimação do outro, os que desse processo saem minimizados no riso sem graça, na festa sem alegria, no coração sem recompensas. A condição humana tratada como estorvo da economia. O homem e a humanidade do homem como defeitos em face da ideológica perfeição econômica neoliberal", escreve José de Souza Martins, sociólogo, pesquisador Emérito do CNPq e da Faculdade de Filosofia da USP, membro da Academia Paulista de Letras e autor de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34). O artigo foi enviado pelo autor.

Segundo o sociólogo, "o neoliberalismo não é apenas a ideologia política da competência para ganhar e da incompetência para distribuir. É a ideologia do homem-coisa, do homem descartável".

Eis o artigo.
Seus resultados aqui e acolá sugerem ser engano a suposição de que o chamado neoliberalismo é sólida teoria do progresso e do desenvolvimento econômico. E que o desenvolvimento social seria sua natural decorrência. Neoliberalismo, no seu uso abusivo como ideologia importada de salvação nacional, em países subdesenvolvidos e politicamente vulneráveis, como o nosso, é apenas a versão sem seriedade nem responsabilidade do liberalismo propriamente dito. Neoliberalismo é uma usurpação ideológica.

É a doutrina econômica dos que são incapazes de pensar a economia como instrumento do desenvolvimento social e de emancipação dos desvalidos dos constrangimentos da economia que os mantém aquém do que é o propriamente humano. Os mecanismos de desumanização de alguns, desumanizam a todos. Não só os outros, mas também os responsáveis por essa vitimação do outro, os que desse processo saem minimizados no riso sem graça, na festa sem alegria, no coração sem recompensas. A condição humana tratada como estorvo da economia. O homem e a humanidade do homem como defeitos em face da ideológica perfeição econômica neoliberal.

O neoliberalismo não é apenas a ideologia política da competência para ganhar e da incompetência para distribuir. É a ideologia do homem-coisa, do homem descartável.

O Brasil tornou-se nos últimos meses a laboratório das irracionalidades neoliberais para fazer-nos retroceder aos arcaísmos que levamos mais de um século para vencer e superar. As irracionalidades estão em todas as partes. Estão na desfiguração da instituição da Presidência da República, afogada nos ditos do Facebook, nas ligeirezas do Twitter, nas bravatas a granel, nos desmentidos, nos enganos cotidianos. Já não sabemos quem nos governa, de quem é de fato a faixa presidencial. Se do mercado ou da sociedade.

O neoliberalismo aplicado ao país não é científico. Toda a arrogante presunção de que não se trata de iniquidade bem  programada mal esconde a incompetência para justificar moralmente a amoralidade do poder político reduzido ao meramente econômico. Se fosse científico, seria experimentado em cobaias primeiro para, depois, se desse certo, ser aplicado em seres humanos, mediante certificação sanitária de que não é nocivo.

Expressão de grande equívoco, o neoliberalismo trata receitas de medidas econômicas toscas como doutrina social, as receitas de cortar dos que tem pouco para incrementar os ganhos de quem já tem muito. Ou cortar de quem não pode para arrumar as contas do governo, que não é empresa, que fracassa em suas responsabilidades sociais.

A economia neoliberal que supostamente criará empregos com reformas no direito laboral destinadas a empobrecer para fragilizar a classe trabalhadora, tem objetivos sociais: redução do trabalho e barateamento do trabalho. Tem também objetivos de poder: os banidos da economia são a nova base da força política do autoritarismo. O desemprego e o subemprego criam medo, insegurança, submissão. Neles, o golpe de uma nova ordem política já foi dado. É um golpe econômico com consequências políticas.

Fábricas são fechadas, trabalhadores ficam desempregados com a modernização econômica desvinculada de suas  determinações sociais. Os documentários de Michael Moore sobre os efeitos dessas concepções nos EUA, servem aqui também. A incerteza que cerca o fechamento da Ford em São Bernardo já foi descrita nos documentários sociais de Moore.

Ganhos especulativos são uma diversão de quem tem a consciência cindida. De quem se tornou agente de um sistema econômico que separou e usurpou a enorme importância das técnicas de acumulação de capital e satanizou os valores e princípios da sociedade que por largo tempo foram premissas e condições do lucro e do ganho. É preciso ter em conta que, historicamente, nosso sistema econômico atual triunfou quando a sociedade perdeu a vergonha da amoralidade do lucro pelo lucro.

Ainda nestes dias estive relendo as cartas do padre Manoel da Nóbrega, jesuíta do século XVI, quando o Brasil estava sendo inventado por gente como ele. Um dos grandes responsáveis pela obra da civilização no Brasil. Frequentemente ele menciona cautelas para evitar o deslize do ganho impróprio nas questões econômicas. A economia era regulada pela moral. O lucro indevido era sujo e pecaminoso.

Sobreviveram, não obstante o capitalismo que temos, crendices residuais que podem ser escavadas arqueologicamente na memória social e popular. A mais frequente é a do pacto com satanás para sobrepor o ganhar ao esforço do trabalho duro, de resultados demorados. Há ritos prescritos, complicados, para realização do pacto. Portanto, não é questão de mera opção dos que foram capturados pelo afã de riqueza sem ética.



Liberalismo fora do lugar.


 Artigo de Bruno Cava
  
 11 Novembro 2019
"Todas as ideias estão no seu lugar. Os liberais no governo estão no seu lugar. Os anarcoliberais estadofóbicos de Chicago também estavam durante a ditadura Pinochet. Ou os social-democratas durante o auge do Petrolão. Ou a esquerda socialista quando da remoção de favelas no Rio de Janeiro. Ou o socialismo do século 21. E por aí vai. Todas as ideias estão no seu lugar", escreve Bruno Cava, pesquisador associado à rede Universidade Nômade (uninomade.net) e professor de Filosofia, em artigo publicado por Uninomade, 09-11-2019.

Segundo ele, "todas as ideias estão no seu lugar. O que muda é a relação entre as ideias e o lugar, o complexo entrelaçar que engloba múltiplas dimensões e camadas. Sem explicar isso, sem explicar no que o atual governo participa de uma ampla modernização em suas dimensões global e local, ficaremos apenas na superfície dos eventos, no anedótico casamento da cobra d´água com o jacaré".

Eis o artigo.

Causa consternação a presença de ideias liberais num governo de direita? Seria estranho se não estivessem presentes. O liberalismo político e econômico foi uma arquitrave de todos os governos da redemocratização. Liberais e neoliberais estiveram nos três governos do PT, durante a era FHC, no período Collor. Na realidade, a história do liberalismo brasileiro é vasta, profunda, complexa, admite dezenas de correntes. Participou com relevância central de praticamente todos os episódios marcantes. Estavam organizados politicamente na Independência, na Abolição, na primeira República, na Revolução de 1930, na Nova República. Não deveria despertar nenhuma surpresa que, mais uma vez, seja um protagonista da conjuntura nacional.

É que as ideias liberais costumam acompanhar, lado a lado, os projetos de modernização. E não se iludam: a força do governo atual está calcada num programa modernizador – econômico, político e social – que boa parte da população entende como imperativo. Não tem nada de regressivo, se por tal qualificação entendermos um contraste ao que seriam, de FHC a Dilma, governos progressistas. O nó do problema é o sentido que se confere à modernização.

Na literatura, existem gêneros propriamente nacionais que conseguem repercutir o gênio de um determinado país. São livros que, agrupados, enchem estantes inteiras das livrarias e bibliotecas de uma sociedade. Na Argentina, seria a estante peronista; na Itália, a operaísta. Aqui, no Brasil, dispomos do paradigma da Formação Nacional. Uma literatura pátria que investiga a gênese social, política e econômica do Brasil na sua longa duração, por meio de uma síntese de diferentes áreas do conhecimento: filosofia, sociologia, economia política, história, crítica literária e antropologia.

Um dos maiores esforços dessa literatura formativa foi reabrir o dossiê do liberalismo brasileiro. Fez isso, exatamente, porque o caso suscita uma surpresa inicial. No período do Império, as ideias liberais eram predominantes e a maior parte da elite política professava o liberalismo clássico. E não era simplesmente um liberalismo de salão ou academia. A Constituição de 1824, outorgada por Pedro I, era das mais avançadas do mundo. Exibia um rol de direitos liberais de dar inveja a qualquer nação civilizada e chegou a ser chamada, à época, de “revolução libertadora”. Até hoje monarquistas e admiradores da monarquia se orgulham do arcabouço moderno da que é a Constituição brasileira mais longeva, 65 anos de vigência até a proclamação republicana. Enquanto isso, no restante da América Latina, se alternavam períodos de estabilidade republicana e ditadura caudilhesca.

A surpresa está no fato que um país onde o liberalismo era forte e efetivo se baseava na escravidão e no tráfico negreiro. É verdade que, na segunda metade do século, ideias liberais foram um reforço à luta de escravos e abolicionistas, o que demonstra a complexidade do liberalismo. Porém, o dado concreto é que, em sua maioria, a elite liberal brasileira era escravocrata. Não só os políticos eram proprietários de outros seres humanos, como defendiam teoricamente a escravidão. Mas como conciliar liberalismo e escravidão? O argumento principal era o das “ideias fora do lugar”, que é um alicerce do pensamento conservador. É que as ideias de liberdade e igualdade que valiam na Europa deviam ser aclimatadas em solo nacional, antes de aqui ganharem curso. Para muitos liberais tupiniquins, seria primeiro preciso nacionalizar essas ideias tão avançadas, sob pena de provocar uma desorganização geral do país e prejudicar, inclusive, os próprios escravos.

Os defensores nacionalistas da escravidão eram parecidos com esses críticos contemporâneos do ambientalismo pela via do social: ideias ecológicas como as de Greta Thunberg até teriam a sua pertinência numa sociedade avançada como da Suécia, mas cá no Brasil, importá-las seria inviabilizar a mais urgente agenda contra a pobreza…

Neste ponto, uma maneira de resolver a discussão sem nem mesmo começá-la seria arrematar que o liberalismo é meramente um mascaramento do real. As ideias liberais não passariam de um véu acobertador das práticas reais. Na Europa, confere um verniz civilizado à dominação por meio da exploração do trabalho assalariado e, no Brasil, além daquela, a escravidão. Bastaria, portanto, com um gesto desmascarador, denunciar a função do liberalismo como cortinado ideológico para a dominação real.

Por que isso seria fulminar o problema sem entrar nele? Porque não explica o principal: por qual razão é que as classes dominantes precisariam da mediação das ideias liberais para exercer a dominação em primeiro lugar? Por que não o fazem diretamente? No caso europeu, teóricos críticos ainda no século 19 expuseram como as ideias liberais eram um dado estrutural do funcionamento da economia moderna. As revoluções inglesa, francesa e americana puseram fim ao Antigo Regime, quando a sociedade passou a ser organizada por meio do trabalho livre, isto é, assalariado. A cada ser humano era reconhecida uma igualdade e liberdade essenciais, de maneira que poderiam contratar voluntariamente a sua atividade no mercado de trabalho. Essa é uma base das ideias liberais: cada um dotado de autonomia da vontade para desenvolver livremente as suas potencialidades, na medida em que, fazendo-o, desenvolve a sociedade como um todo, levando o conjunto ao máximo rendimento.

Uma linha fraca de contestação seria afirmar que essas ideias são máscaras. Que a igualdade e a liberdade seriam prédicas metafísicas de um liberalismo formal, resumindo-se à pregação de formas ocas a fim de camuflar a dominação e a desigualdade reais. É o velho atalho do portrasismo, haveria algo por trás das categorias liberais, um complô para enganar as massas e vender gato por lebre. Mas esta postura não passa de uma miragem tranquilizadora. Pois instaura o benefício do locutor: aquele que denuncia essas ideias, simetricamente, se coloca num púlpito de superioridade epistêmica, o qual transpira de moralidade. As percepções diferentes às suas encontrariam explicação em desvios da reta razão, oriundos de ignorância, cegueira (“não querem ver!”), ou má fé e interesse.

Um teórico da Revolução Industrial, Karl Marx, escreveu que o trabalho livre não era simplesmente uma forma camaleônica para prolongar o trabalho escravo ou servil. Havia uma diferença de natureza entre o escravo e o assalariado. Marx concordava com os críticos dos liberais que, no cenário geral, a liberdade para trabalhar só encontrava a sua condição sistêmica para existir na medida em que havia uma situação induzida de penúria que constrangia a pessoa a trabalhar. Noutras palavras, a situação social coagia as pessoas a buscar os meios de sua subsistência e, por essa lei da sobrevivência, tinha que trabalhar, apresentando-se ao mercado do trabalho em posicionamento desvantajoso, de frágil negociação. A escolha do trabalho, portanto, se dava em estado de necessidade, limitando não só as opções de trabalho como também os termos do contrato.

Não é diferente, na sua lógica, do que acontece hoje. Sabemos que temos algumas opções de trabalho, mais ou menos restritivas, mais ou menos negociáveis, mas ninguém se ilude. Em última instância, trabalhamos porque as contas teimam em chegar no fim do mês. A inovação de Marx não é demarcar esse fato notório, para isso não precisaríamos de filosofia. O que Marx diz é que o modo como o trabalho *aparece* como livre é fundamental. Embora saibamos que, no fundo, há um grau de exploração no trabalho que fazemos (mesmo que se dê indiretamente, digamos, pelo imposto de renda), nos comportamos mesmo assim como trabalhadores livres: aceitamos o salário e tocamos a vida. Ou seja, para Marx, na esteira de La Boètie, o trabalho assalariado é um tipo social de servidão voluntária, com a diferença de ser mediada pelo dinheiro. O capitalismo, para Marx, se define justamente pelo salário. O capitalismo é a sistematização da conversão da liberdade em bem vendável, comensurado pelo dinheiro.

O trabalho livre, que é uma ideia do liberalismo, é uma mediação ancorada na realidade social. Tomada isoladamente, se poderia dizer que é uma aparência, pois na base há a dominação do homem pelo homem. Porém, na medida em que essa mediação faz funcionar o sistema, tomada em seu dinamismo social, ela é real. Não é uma ideologia fátua, pelo contrário, as ideias liberais são a força motriz do sistema econômico, o que produz a riqueza social, o que define as hierarquias de poder entre as nações. O liberalismo não é uma pasteurização da exploração do trabalho, mas um eixo de transmissão, para impelir o movimento do conjunto da sociedade.

Qual é a inovação de Marx? É que o sujeito passa a estar fraturado entre o ser e o aparecer. Coexiste em seu âmago uma ambivalência constitutiva, uma reserva existencial em relação à atividade socialmente útil de contribuir para o movimento de conjunto. Essa fissura tanto pode ser alargada por meio da organização dos trabalhadores, no que Marx apostou como superação da dualidade, quanto numa infinidade de outros usos. Por exemplo, estudar filosofia ou escrever críticas literárias, como faziam os operários fabris do oitocentos, de que o filósofo Jacques Rancière nos conta em A noite dos proletários (1988).

E o que dizer do liberalismo transplantado aos trópicos, onde havia escravidão? A literatura de formação nacional comparece nessa discussão para explicar como aqui era o contrário do que acontecia na Europa que se industrializava. Na economia da Monarquia Brasileira de Pedro I e II, o que propiciava a modernização do país eram os lucros da exportação de gêneros primários no regime escravista do latifúndio monocultor, assim como o grosso capital implicado no tráfico negreiro. Não somente a estruturação econômica do país se deu na franja de expansão do capitalismo comercial-financeiro capitaneado pela Europa Atlântica, — e nesse sentido a escravidão brasileira era um fato da modernidade, — como o que permitia a existência de uma elite liberal era o regime escravocrata. No Brasil, a escravidão e o capitalismo marchavam juntos, numa dualidade integrada. E mais: foram as fontes de acumulação de capitais gerados nesse comércio triangular uma das alavancas para a construção do primeiro parque industrial europeu.

É por isso que autores da Formação Nacional insistem que, sim, o liberalismo escravocrata tinha um aspecto modernizador. O sentido da modernização é que deveria ser colocado em xeque. O trabalho livre e as ideias liberais eram viabilizadas graças ao tráfico e à escravidão e não apesar deles. Crise dos modelos explicativos dualistas: o arcaico-agrário-exportador não é nenhum empecilho ou obstáculo aos projetos de modernização, mas o seu pressuposto. Não há sequer contradição aí, senão numa camada bastante superficial de um discurso retrospectivo, que nem mesmo era o da época. Assim como, no liberalismo do Império, o pressuposto social das ideias era a própria escravidão.

Isso explica também como, na Abolição, liberais radicais foram relevantes para reforçar a luta dos escravos e abolicionistas, no entanto, quando da reacomodação do sistema, o efeito foi ambivalente. Abolida formalmente a escravidão, não houve nenhum movimento revelador da responsabilidade social pela situação degradada do negro, nem redefinição de atitudes e expectativas da sociedade dos brancos em relação a eles. Sim, o negro liberto não era comparável à situação do escravo, no entanto, tampouco se equiparava ao trabalhador livre. Assim como o proletário europeu, um sistema subjetivo dual se implantava no interior de cada um, entre o ser e o aparecer. Os autores da Formação Nacional vão desenvolver em vários pontos como a estrutura da Colônia e do Império se prolonga, em novos arranjos e esquemas, ao longo do período republicano, até a atualidade das respectivas obras.

É nesse panorama teórico-político que um crítico paulista, Roberto Schwarz, escreveu o ensaio As ideias fora do lugar (1973). Para o crítico literário, a discussão vai mais longe. É que, no Brasil, devido às muitas camadas históricas, aos muitos esquemas interpretativos, é inevitável que o autor nacional não deixe de pressentir uma sensação bastante característica. Que é uma mistura de inquietação e mal-estar. É o que Raymond Williams chama de “estrutura do sentimento”. Essa estrutura repercute a estrutura desconcertante da formação brasileira. Ao tomar posse de ideias americanas ou europeias, tem-se o pressentimento de que sejam ideias postiças, mal aplicáveis ao disforme da matéria local. Aqui, afinal, o jogo seria outro, seríamos o filhote da cobra d´água com o jacaré, o videogame nível very hard, o lugar desconcertante em que governos de esquerda montam cartéis de grandes empreiteiras e liberais caminham de mãos dadas com a extrema-direita. Todo um rol de esquisitices nacionais, que se revela num arsenal de expressões jocosas.

Para Schwarz, isso provoca uma segunda redobra da dualidade entre ser e aparecer, uma nova ambivalência ideológico-moral. Daí ele chamar o liberalismo brasileiro de ideologia de segunda ordem. É um pensamento ao quadrado, porque aqui, sequer tivemos (em período algum) o predomínio do trabalho livre que marcou a Revolução Industrial no Velho Mundo. Eis por que o crítico recomenda que o método mais adequado para conceitualizar as formações nacionais, no que elas têm de específico, envolve percorrer os mesmos ziguezagues e revezamentos de sua gênese histórica. O que exige a paciência do conceito e um espírito de finesse. O estilo alusivo, machadiano, se infiltra na crítica por necessidade formal. Somente assim, se pode começar a deslindar o ‘hard’ embutido nas bizarrices brasileiras, como também apreender o seu posicionamento no interior da globalização e, por tabela, compreender o global a partir de um sistema concreto de mediações dado pelo local.

Novamente, não se trata de cortina ideológica a esconder as relações reais de dominação. Tome-se, por exemplo, outro item do ideário liberal, a ideia de meritocracia. Não só a escravidão se desdobrou em inúmeros gradientes de alforrias e mestiçagens, como o próprio trabalho livre nunca se dissociou da prática clientelista no país. Se, na Europa, surgiram os profissionais liberais, aqueles que, sem patrões fixados, vendem os seus serviços no mercado aberto e não devem nada a ninguém; no Brasil, tais trabalhadores mais autônomos sempre dependeram de um extenso repertório de favorecimentos e acertos. O exercício da profissão, amiúde, estava condicionado a favores na burocracia pública, jeitinhos, ajudinhas, permissões informais para atuar de tal modo ou em tal lugar. Numa palavra, o favor, que desde os primórdios coloniais acompanha o funcionamento do mercado de trabalho, com seus QIs (Quem Indica) e empurrãozinhos.

E isso se dissemina por todo o tecido social da experiência, num degradê. O que não significa que o mérito inexista. É claro que existe. Só que o mérito é um hemisfério da realidade, que tem de conviver com outro. Isto provoca, na mente brasileira, uma reserva de hesitação, uma desconfiança íntima. Quando alguém passa no vestibular e, com justeza, lhe reconhecemos o mérito, não deixamos de pressentir que, avizinhado, há outros elementos partícipes. Talvez o suco de laranja trazido pela empregada doméstica enquanto estudava o material do cursinho poderia também ter algo a ver.

Em suma, todas as ideias estão no seu lugar. Os liberais no governo estão no seu lugar. Os anarcoliberais estadofóbicos de Chicago também estavam durante a ditadura Pinochet. Ou os social-democratas durante o auge do Petrolão. Ou a esquerda socialista quando da remoção de favelas no Rio de Janeiro. Ou o socialismo do século 21. E por aí vai. Todas as ideias estão no seu lugar. O que muda é a relação entre as ideias e o lugar, o complexo entrelaçar que engloba múltiplas dimensões e camadas. Sem explicar isso, sem explicar no que o atual governo participa de uma ampla modernização em suas dimensões global e local, ficaremos apenas na superfície dos eventos, no anedótico casamento da cobra d´água com o jacaré.



Destronar o império das narrativas


Artigo de Bruno Cava


"O funcionamento escolástico do tomismo é assim: você pode falar à vontade e multiplicar os modos de dizer, desde que não haja dúvida na comunidade dos falantes sobre a mesma coisa do que se diz: é fascismo, é golpe, é neoliberalismo, é violência etc. A liberdade e boa consciência de falar no interior do guarda-chuva da doutrina das analogias é proporcional à sensação de impotência que vem junto, porque os modos de dizer não deixam de ratificar a mesma coisa, que jamais muda", afirma Bruno Cava, pesquisador associado à rede Universidade Nômade (uninomade.net), professor de Filosofia, em artigo publicado por Uninomade, 05-05-2019.
Numa aula sobre Deleuze, apresentava a filosofia de Duns Scoto e um ouvinte lançou a seguinte pergunta: com tantas urgências contemporâneas, qual seria o sentido de perder tempo com um filósofo medieval? Não seria apequenar as preocupações como na velha escolástica, quando se debatia sobre quantos anjos caberiam na ponta de uma agulha?
Eu disse: não. Na verdade, o conceito de univocidade de Duns Scoto é o antídoto para o caráter escolástico-medieval das discussões que é justamente o caráter predominante das nossas discussões contemporâneas.
Tome por exemplo a oposição pela esquerda ao novo governo brasileiro. O que se lê nos muitos artigos acadêmicos ou de jornal, nas redes sociais ou na mesa de bar, são incontáveis variações da mesma proposição: é o fascismo. É um concurso de calouros em que cada concorrente tem 15 minutos para dizer do seu jeito porque Bolsonaro e seu governo são, de fato, fascistas. Você vai multiplicando maneiras de dizer a mesma coisa, num ciclo interminável ao redor do mesmo.
Outro exemplo é neoliberalismo. Foi um conceito relevante na época de sua formulação, nos anos 70, mas não tardou para passar pelo que Willard Quine chama de ascese semântica. Neoliberalismo virou uma válvula de regulagem, uma categoria para clivar o âmbito do discurso. No seu núcleo semântico está sempre a mesma coisa e os usos daí por diante devem atrelar-lhe novos modos de dizer esse mesmo, agregando conteúdos e incidências. Agora, quando “fascismo” se eleva como significante reinante, é preciso conciliá-lo com “neoliberalismo”, tarefa capciosa, pois exige construir uma diarquia de equivocidades.
Ou então o feminismo da segunda geração, surgido nos EUA durante os anos 60, que tem por foco a violência estrutural contra as mulheres. Aqui, uma das palavras ascéticas é “estupro”. As clivagens dependem da fixação do significante: toda manifestação machista embute, enquanto emulação, o ato do estupro. Daí falar-se em cultura do estupro. A operação semântica consiste em ir agregando-lhe referentes: o abuso sexual também se enquadra como estupro, a violência simbólica idem, e isto e aquilo também e assim por diante. Até que o menor gesto de masculinidade performada, por exemplo, um olhar, um comentário, até mesmo um pensamento íntimo, contenha o gérmen do significante mestre, isto é, uma manifestação de um estupro equívoco e onipresente.
Para entender como o conceito de univocidade rompe esse ciclo da linguagem é preciso antes compreender o jogo de forças no século 13. Aquele foi o século do Pequeno Renascimento, um período de uma efervescência cultural no interior da Idade Média, relacionado à intensificação das interações com povos árabes muçulmanos e asiáticos, à tradução de obras clássicas do grego, e à relativa prosperidade econômica decorrente de inovações técnicas e da paz que precedeu a Guerra dos Cem Anos.
O século 13 foi de desenvolvimento extraordinário das universidades e da informal república das letras que se estendia por toda a Europa cristã. Se, por um lado, levou ao florescimento da teologia e da filosofia; por outro lado, suscitou riscos para o monopólio intelectual mantido pela Igreja Católica. Como a autoridade religiosa não tinha mais como conter a produção e distribuição do discurso, a solução encontrada foi deslocar o regime de controle para o interior da própria proliferação de falas e linguagens. Nisso, a obra de Tomás de Aquino (1225-74) — ou talvez certa interpretação oficialista do tomismo — caiu como uma luva.
O debate circundava a questão da relação metafísica entre Deus e o mundo, mas as consequências dele iam muito além da teologia. Uma concepção era a de que o que se falava de Deus não se falava do mesmo modo como se falava das coisas. Se eu digo que Deus é bom, eterno e perfeito, isto não é a mesma coisa do que falar que Manoel é bom, eterno e perfeito. Haveria uma equivocidade em Deus que confere à autoridade religiosa um monopólio absoluto e dogmático. Mas isto estava se tornando insustentável, graças ao Pequeno Renascimento.
A solução salomônica de Tomás é a seguinte: o que se diz de Deus, se diz analogamente das coisas humanas e mundanas. Simplificando bastante: dizemos as mesmas coisas de maneiras diferentes. Ou seja, acolho a liberdade de falar de muitos modos, desde que se aceite a premissa da Mesma Coisa do que falamos. Nossos discursos são análogos ao redor do Mesmo que já estaria dado em primeiro lugar. Os ideólogos da Igreja, que não eram nada burros, homologaram essa doutrina e em consequência o tomismo galgou duradoura fortuna crítica no âmbito das instituições eclesiásticas daí por diante. Isso contemplou um imenso espectro de muitas discussões (muitos modos de dizer), mas os muitos modos de dizer permanecem regulados de dentro do discurso. O tomismo é uma válvula interna de regulagem, a partir do que o exercício do poder de veto e interdição se exercerá, tanto na Primeira quanto na Segunda Escolástica (contrarreformista).

O funcionamento escolástico do tomismo é assim: você pode falar à vontade e multiplicar os modos de dizer, desde que não haja dúvida na comunidade dos falantes sobre a mesma coisa do que se diz: é fascismo, é golpe, é neoliberalismo, é violência etc. A liberdade e boa consciência de falar no interior do guarda-chuva da doutrina das analogias é proporcional à sensação de impotência que vem junto, porque os modos de dizer não deixam de ratificar a mesma coisa, que jamais muda.
Duns Scoto (1265-1308), ao contrário da concepção análoga ou equívoca, afirmava a univocidade do ser. Quer dizer, o que se diz de Deus e o que se diz das coisas finitas e mundanas, se diz do mesmo modo. Só há um modo de dizer das coisas. O que parece restringir a produção do discurso, na verdade provoca uma mutação interna no seu funcionamento. Só existe um modo de dizer das coisas, o que muda, justamente, são as coisas! Cai o imperialismo do significante, a narratocracia escolástica. Deixamos de disputar o significado das mesmas coisas em seus muitos modos de dizer (ascese semântica de Quine), para disputar as coisas mesmas. Não estamos tão preocupados com a narrativas sobre as coisas, mas com elas próprias. A fala e o lugar de fala, os modos de dizer o mesmo, importam menos do que sobre o que se fala em primeiro lugar.
É toda uma inversão. Quando 250 anos depois de Scoto, o furiosamente herético Giordano Bruno afirma a pluralidade de mundos, ele não está simplesmente fazendo uma tese astronômica na esteira de Copérnico. Ele está dizendo que as outras Terras, os outros planetas povoados, são efetivamente outros mundos, de pleno direito, que não podem ser reduzidos a novas versões de nós mesmos, da humanidade cristã. O universo é populoso, porém, mais do que isso, é populoso de diferença, e não de um Mesmo que se repete com variações de narrativa.
É o que Deleuze, afinal, arremata: monismo = pluralismo. O único modo de escapar dos círculos viciosos e imperialismos escolásticos (que ele chama de opiniocracia) não consiste em mudar e multiplicar os modos de dizer, mas em mudar e multiplicar as próprias coisas. Recriá-las novas. Se, para Scoto, tudo o que se diz, se diz do mesmo modo; em Deleuze, o “tudo que se diz” é a própria diferença. O Mesmo é a Diferença.

A era do neoliberalismo totalitário



Ele impôs uma ortodoxia intelectual cujos guardiões eram totalmente intolerantes à dissidência. Os fatos a derrotaram — mas a teoria debate-se para sobreviver: as más ideias, uma vez estabelecidas, geralmente têm morte lenta

OUTRASMÍDIAS

MERCADO X DEMOCRACIA

por Project Syndicate
Publicado 08/11/2019 às 17:07 - Atualizado 08/11/2019 às 17:11


Por Joseph E. Stiglitz, no Project Syndicate

No final da Guerra Fria, o cientista político Francis Fukuyama escreveu um famoso ensaio chamado “The End of History?”. Ele argumentou que a queda do comunismo eliminaria o último obstáculo que separava o mundo inteiro do seu destino de democracia liberal e economia de mercado. Muita gente concordou.

Hoje, à medida que enfrentamos uma retirada da ordem global liberal baseada em regras, com governantes autocráticos e demagogos à frente de países que contêm bem mais da metade da população do mundo, a ideia de Fukuyama parece peculiar e ingênua. Mas reforçou a doutrina econômica neoliberal que prevaleceu nos últimos 40 anos.

A credibilidade da fé do neoliberalismo em mercados desenfreados como sendo o caminho mais seguro para a prosperidade partilhada está na unidade dos cuidados intensivos nos dias de hoje. E com razão. O declínio simultâneo da confiança no neoliberalismo e na democracia não é coincidência ou uma mera correlação. O neoliberalismo prejudica a democracia há 40 anos.

A forma de globalização prescrita pelo neoliberalismo deixou indivíduos e sociedades inteiras incapazes de controlar uma parte importante de seu próprio destino, tal como Dani Rodrik da Universidade de Harvard explicou de forma tão clara e tal como afirmo nos meus recentes livros Globalization and Its Discontents Revisited e People, Power, and Profits. Os efeitos da liberalização do mercado de capitais foram particularmente odiosos: se o principal candidato à presidência num mercado emergente “perdesse a graça” em Wall Street, os bancos retirariam o seu dinheiro do país. Os eleitores enfrentavam então uma escolha dolorosa: ceder a Wall Street ou enfrentar uma grave crise financeira. Era como se Wall Street tivesse mais poder político do que os cidadãos do país.

Mesmo nos países ricos, era dito aos cidadãos comuns: “Vocês não podem defender as políticas que desejam” – fosse ela a proteção social adequada, os salários decentes, a tributação progressiva ou um sistema financeiro bem regulamentado – “porque o país perderá competitividade, os empregos desaparecerão e vocês sofrerão”.

Tanto nos países ricos como nos pobres, as elites prometeram que as políticas neoliberais levariam a um crescimento econômico mais rápido e que os benefícios iriam ser repartidos para que todos, inclusive os mais pobres, ficassem em melhor situação. Para se chegar a esse patamar, os trabalhadores teriam, contudo, de aceitar salários mais baixos e todos os cidadãos teriam de aceitar cortes em importantes programas governamentais.

As elites alegaram que as suas promessas eram baseadas em modelos econômicos científicos e na “investigação com base em provas”. Bem, após 40 anos, os números estão aí: o crescimento diminuiu e os frutos desse crescimento foram na sua esmagadora maioria para um punhado que está no topo. À medida que os salários estagnavam e o mercado de ações subia, o rendimento e a riqueza espalhavam-se para os mais ricos, em vez de se espalharem para os mais pobres.

Como é que a restrição salarial – para alcançar ou manter a competitividade – e a redução dos programas governamentais podem resultar em padrões de vida mais elevados? Os cidadãos comuns sentiram como se lhes tivessem vendido uma lista de artigos. Estavam certos em sentirem-se enganados.Agora estamos a enfrentar as consequências políticas deste grande artifício: desconfiança das elites, da “ciência” econômica em que se baseava o neoliberalismo e do sistema político corrompido pelo dinheiro que tornou tudo isso possível.

A verdade é que, apesar do nome, a era do neoliberalismo estava longe de ser liberal. Impôs uma ortodoxia intelectual cujos guardiães eram totalmente intolerantes à dissidência. Os economistas com perspetivas heterodoxas eram tratados como hereges a ser evitados ou, na melhor das hipóteses, desviados para algumas instituições isoladas. O neoliberalismo continha poucas semelhanças com a “sociedade aberta” que Karl Popper defendia. Tal como George Soros enfatizou, Popper reconheceu que a nossa sociedade é um sistema complexo e em constante evolução, no qual quanto mais aprendemos, mais o nosso conhecimento muda o comportamento do sistema.

Em nenhum lugar essa intolerância foi maior do que na macroeconomia, onde os modelos predominantes descartaram a possibilidade de uma crise como a que vivemos em 2008. Quando o impossível aconteceu, foi tratado como se fosse uma inundação em 500 anos – um fenômeno insólito que nenhum modelo poderia ter previsto. Ainda hoje, os defensores dessas teorias recusam-se a aceitar que a sua crença nos mercados autorregulados e a sua rejeição de externalidades como inexistentes ou sem importância levaram à desregulamentação que foi essencial para alimentar a crise. A teoria continua a sobreviver, com tentativas ptolomaicas de ajustá-las aos factos, o que atesta a realidade de que as más ideias, uma vez estabelecidas, geralmente têm uma morte lenta.

Se a crise financeira de 2008 não conseguiu fazer-nos perceber que os mercados sem restrições não funcionam, a crise climática certamente deveria conseguir: o neoliberalismo acabará literalmente com a nossa civilização. Mas também está claro que os demagogos que querem que viremos as costas à ciência e à tolerância só pioram as coisas.

O único caminho a seguir, o único caminho para salvar o nosso planeta e a nossa civilização, é um renascimento da história. Temos de revitalizar o Século das Luzes e reafirmar o nosso compromisso de honrar os seus valores de liberdade, respeito pelo conhecimento e democracia.


Tumba de Lorca






En ti lloramos todos los demás muertos
Los que fueron fusilados en vigilias sin fecha
Los que se pierden sin nombre en la sombra de las prisiones
Tan ignorados que ni siquiera podemos
Preguntar por ellos imaginar sus rostros
Lloramos sin consuelo aquellos que sucumben
Entre los cuernos de rabia bajo el peso de la fuerza

No podemos aceptar. Tu sangre no se seca
No descansamos en paz en tu muerte
La hora de tu muerte continúa cercana y vehemente
Y la tierra donde abrieron tu sepultura
Semeja una herida que no cierra

Tu sangre no halló embocadura ni salida
De norte a sur de este a oeste
Estamos viviendo ahogados en tu sangre
La lisa cal de cada muro blanco
Escribe que tú fuiste asesinado

No podemos aceptarlo. El proceso no cesa
Pues ni tú te libraste de la patada de la bestia
La noche no puede beber nuestra tristeza
Y por más que te escondan aún no estás sepultado

Sophia de Mello Breyner Andresen

Geografía, 1967