segunda-feira, 27 de janeiro de 2014



Sentado no pier do porto
Vendo a maré ir
Sentado no pior do porto
Deixando o tempo passar...

Otis Redding

Cidade da Garoa ...



Minha alma esta como as ruas da cidade
Paulista quando cai garoa...
Pelas suas calçadas,
De tristeza molhadas,
Caminha, à toa,
A grande multidão que minha alma povoa...

Dúvidas vão ali, murmurando sozinhas...
São velhinhas
De fichu na cabeça,
Que ficarão caducas de desgosto !...
Orgulhosos caprichos de véu no rosto,
Passeiam, nos vultos

De fidalgas damas, disfarçando
Pensamentos ocultos...
E tomando-lhe a frente,
Heroísmos calados de fronte erguida,
Seguem, feito os soldados que voltaram
Das batalhas da vida,
Cegos, gloriosamente,
Gloriosamente mancos !

Vagam crenças puras como virgens,
Esfarrapadas esperanças
Correm, tremendo, sobre a pedra fria,
Nos pézinhos descalços das crianças...
Sonhos de arranha-céus que construí, na alegria
De viver, na gloria de ser tua,
Erguem-se na garoa, em cada canto

Da rua...
Mas moram dentro deles, sombras de saudade,
Pálidas e belas,
Que se debruçam nas janelas,
Para olhar a cidade !...
Quando a tarde declina,

A cidade acende as cores dos seus cartazes..,
E se derramam na garoa fina,
Tintas que lembram lágrimas vermelhas...
Olhos de olheiras lilases...
E em cada um dos bonitos
Cartazes,
Pode-se ler um trecho dos meus poemas,
Com letras de luz escritos !
É a hora da Ave-Maria. E então, na garoa,

A cidade
Põe-se a tanger os sinos de todas as igrejas !...
E ressoa e ressoa
Soluçando o teu nome num clamor tão grande,
Que hás de ouvi-lo, por certo, aonde quer que estejas !..

Parabéns São Paulo, pelos seus 460 anos !!!
Alvaro Nicoli


Essência canibal



Devorei os motivos pelas bordas
expondo sua essência quente e volátil
mas algo no sistema se inverte:
o conteúdo me abocanha
o dia a dia me digere.

Não frequentei tanto as aulas de ciências
quer dizer, no ranço de lembrar
que agora os significados se esbanjam
como excrementos, todos
convencionalmente banais.

Roberta Tostes Daniel



TRADUZIR-SE

Ferreira Gullar.



Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?


POEMA SILENCIOSO DENTRO DA NOITE

Três fatos – um sussurro – um abandono
a faina do amor e canso.
Corre sobre a torre excusa,
espera:
nada desce ou se adianta
mais.
Por cinco copos e alguns prantos
te observo. Uísque vagabundo
em copo (daqueles a quem
não se pode negar a boca amarga)
e a mão branca e torta imiscuindo
letras
e propondo antologias
em tempo de cartilha.
amor
amado
amaria
) possuir
ser
és (
NUNCA.
Pra mim
conjugar o verbo amar
é por um nunca antes de cada tempo
e esquecer as desinências
que não sejam minhas.
EU
TU
e só.
Dois nomes se confundem no assoalho
e abraçam no escuro
e se procuram
e não se encontram.
A carne é forte, filho!
Dura.
Seca.
Sonolenta.
Dois nomes não se acham
se começam por letras diferentes
e distantes dentro do alfabeto convencional.


(Torquato Neto)

A MOÇA MOSTRAVA A COXA

Carlos Drummond de Andrade

A moça mostrava a coxa,
a moça mostrava a nádega,
só não mostrava aquilo
- concha, berilo, esmeralda -
que se entreabre, quatrifólio,
e encerrra o gozo mais lauto,
aquela zona hiperbórea,
misto de mel e de asfalto,
porta hermética nos gonzos
de zonzos sentidos presos,
ara sem sangue de ofícios,
a moça não me mostrava.
E torturando-me, e virgem
no desvairado recato
que sucedia de chofre
á visão dos seios claros,
qua pulcra rosa preta
como que se enovelava,
crespa, intata, inacessível,
abre-que-fecha-que-foge,
e a fêmea, rindo, negava
o que eu tanto lhe pedia,
o que devia ser dado
e mais que dado, comido.
Ai, que a moça me matava
tornando-me assim a vida
esperança consumida
no que, sombrio, faiscava.
Roçava-lhe a perna. Os dedos
descobriam-lhe segredos
lentos, curvos, animais,
porém o maximo arcano,
o todo esquivo, noturno,
a tríplice chave de urna,
essa a louca sonegava,
não me daria nem nada.
Antes nunca me acenasse.
Viver não tinha propósito,
andar perdera o sentido,
o tempo não desatava
nem vinha a morte render-me
ao luzir da estrela-dalva,
que nessa hora já primeira,
violento, subia o enjoo
de fera presa no Zôo.
Como lhe sabia a pele,
em seu côncavo e convexo,
em seu poro, em seu dourado
pêlo de ventre! mas sexo
era segredo de Estado.
Como a carne lhe sabia
a campo frio, orvalhado,
onde uma cobra desperta
vai traçando seu desenho
num frêmito, lado a lado!
Mas que perfume teria
a gruta invisa? que visgo,
que estreitura, que doçume,
que linha prístina, pura,
me chamava, me fugia?
Tudo a bela me ofertava,
e que eu beijasse ou mordesse,
fizesse sangue: fazia.
Mas seu púbis recusava.
Na noite acesa, no dia,
sua coxa se cerrava.
Na praia, na ventania,
quando mais eu insistia,
sua coxa se apertava.
Na mais erma hospedaria
fechada por dentro a aldrava,
sua coxa se selava,
se encerrava, se salvava,
e quem disse que eu podia
fazer dela minha escrava?
De tanto esperar, porfia
sem vislumbre de vitória,
já seu corpo se delia,
já se empana sua glória,
já sou diverso daquele
que por dentro se rasgava,
e não sei agora ao certo
se minha sede mais brava
era nela que pousava.
Outras fontes, outras fomes,
outros flancos: vasto mundo,
e o esquecimento no fundo.
Talvez que a moça hoje em dia...
Talvez. O certo é que nunca.
E se tanto se furtara
com tais fugas e arabescos
e tão surda teimosia,
por que hoje se abriria?
Por que viria ofertar-me
quando a noite já vai fria,
sua nívea rosa preta
nunca por mim visitada,
inacessível naveta?
Ou nem teria naveta...
Qualquer dia | José Afonso

No Inverno bato o queixo
Sem mantas na manhã fria
No Inverno bato o queixo
Qualquer dia
Qualquer dia

No Inverno aperto o cinto
Enquanto o vento assobia
No Inverno aperto o cinto
Qualquer dia
Qualquer dia

No Inverno vou pôr lume
Lenha verde não ardia
No Inverno vou pôr lume
Qualquer dia
Qualquer dia

No Inverno penso muito
Oh que coisas eu já via
No Inverno penso muito
Qualquer dia
Qualquer dia

No Inverno ganhei ódio
E juro que o não queria
No Inverno ganhei ódio
Qualquer dia

Qualquer dia