segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Antínoo (trechos)

Era em Adriano fria a chuva fora



Jaz morto o jovem

No raso leito, e sobre o seu desnudo todo,

Aos olhos de Adriano, cuja cor é medo,

A umbrosa luz do eclipse-morte era difusa



Jaz morto o jovem, e o dia semelhava noite lá fora

A chuva cai como um exausto alarme

Da Natureza em acto de matá-lo.

Memória do que el´ foi não dava já deleite,

Deleite no que el´ foi era morto e indistinto.



Oh mãos que já apertaram as de Adriano quentes,

Cuja frieza agora as sente frias!

Oh cabelo antes preso p´lo penteado justo!

Oh olhos algo inquietantemente ousados!

Oh simples macho corpo feminino

qual o aparentar-se um Deus à humanidade!

Oh lábios cujo abrir vermelho titilava

os sítios da luxúria com tanta arte viva!

Oh dedos que hábeis eram no de não ser dito!

Oh língua que na língua o sangue audaz tornava!

Oh regência total do entronizado cio

Na suspensão dispersa da consciência em fúria!

Estas coisas que não mais serão.

A chuva é silenciosa, e o Imperador descai ao pé do leito.

A sua dor é fúria,

Porque levam os deuses a vida que dão

e a beleza destroem que fizeram viva.

Chora e sabe que as épocas futuras o fitam do âmago do vir a ser;

O seu amor está num palco universal;

Mil olhos não nascidos choram-lhe a miséria.



Antínoo é morto, é morto para sempre,

É morto para sempre, e os amor´s todos gemem.

A própria Vénus, que de Adónis foi amante,

Ao vê-lo então revivo, ora morto de novo,

Empresta renovada a sua antiga mágoa

Para que seja unida à dor de Adriano.



Agora Apolo é triste porque o roubador

Do corpo branco seu ´stá para sempre frio.

Não beijos cuidadosos na mamílea ponta

Sobre o pulsar silente lhe restauram

Sua vida que abra os olhos e a presença sinta

Dela por veias ter o reduto do amor.

Nenhum de seu calor, calor alheio exige.

Agora as suas mãos não mais sob a cabeça

Atadas, dando tudo menos mãos,

Ao projectado corpo mãos imploram.



A chuva cai, e el´ jaz

como alguém que de seu amor ´squeceu todos os gestos

E jaz desperto à espera que regressem quentes.

Suas artes e brincos ora são c´o a Morte.

Humano gelo é este sem calor que o mova;

Estas cinzas de um lume não chama há que acenda.



Que ora será, Adriano, a tua vida fria ?

Quão vale ser senhor dos homens e das coisas ?

Sobre o teu império a ausência dele desce como a noite.

Nem há manhã na esp´rança de um deleite novo;

Ora de amor e beijos viúvas são as tuas noites;

Ora os dias privados de a noite esperar;

Ora os teus lábios não têm fito em gozos,

Dados ao nome só que a Morte casa

À solidão e à mágoa e ao temor



Tuas mãos tacteiam vagas alegria em fuga

Ouvir que a chuva cessa ergue-te a cabeça,

E o teu relance pousa no amorável jovem.

Desnudo el´ jaz no memorado leito;

Por sua própria mão el´ descoberto jaz.

Aí saciar cumpria-lhe teu senso frouxo,

Insaciá-lo, mais saciando-o, irritá-lo

Com nova insaciedade até sangrar teu senso.



Suas boca e mãos os jogos de repôr sabiam

Desejos que seguir te doía a exausta espinha.

Às vezes parecia-te vazio tudo

A cada novo arranco de chupado cio.

Então novos caprichos convocava ainda

À de teus nervos, carne, e tombavas, tremias

Nos teus coxins, o imo sentido aquietado.







E de pensar, essa luxúria que é

memória de luxúria revive e toma-Lhe os sentidos p´la mão,

desperta a carne ao toque,

E tudo é outra vez o que era dantes.

No leito o corpo morto se soergue e vive

E vem com el´ deitar-se, junto, muito junto,

E uma invisível mão e rastejante e sábia

A cada uma do corpo entrada da luxúria

Vai murmurar carícias que se esvaem, mas

Se demoram que sangre a derradeira fibra.

Oh doces, cruéis da Párthia fugitivas!



Assim um pouco se ergue, olhando o amante

Que ora não pode amar senão o que se ignora.

Vagamente, mal vendo o que comtempla tanto,

Perpassa os frios lábios pelo corpo todo.

E tão de gelo insensos são os seus lábios que, ai!

Mal à morte lhe sabe o frio do cadáver,

E é qual mortos ou vivos que ambos foram

E amar inda é presença e é motor.

Na dos do outro incúria fria os lábios param

O hálito ausente aí recorda-lhe a seus lábios

Que de pra lá dos deuses uma névoa veio

Entre ele e o jovem. Mas as pontas de seus dedos,

Ainda ociosas perscrutando o corpo, aguardam

Uma reacção da carne ao despertante jeito.

Mas não é compreendida essa de amor pergunta:

É morto o deus que era seu culto o ser beijado!



Levanta a mão pra onde o céu estaria

E pede aos deuses mudos que sua dor lhe saibam.

Que a súplica lhe atendam vossas faces calmas,

Oh poder´s outorgantes! Dá em troca o reino

Nos desertos quietos viverá sequioso,

Nos longes trilhos bárbaros mendigo ou escravo,

Mas a seus braços quente o jovem devolvei!

Renunciai ao espaço que entendeis seu túmulo!



Tomai da terra a graça feminina toda

E num lixo de morte o que restar vertei!

Mas, pelo doce Ganímedes, distinguido

Por Jove acima de Hebe para encher-lhe

A taça nos festins e pra instilar

O amor de amigos que enche o vácuo do outro,

O nó de amplexos femininos resolvei

Em poeira, oh pai dos deuses, mas poupai o jovem

E o alvo corpo e o seu cabelo de oiro!

Ganímedes melhor talvez tu pressentiste

Seria acaso, e por inveja essa beleza

Dos braços de Adriano para os teus roubaste.



Era um gato brincando co´a luxúria,

A de Adriano e a sua própria, às vezes um

E às vezes dois, ora se unindo, ora afastado;

A luxúria largando, ora o àpice adiando;

Ora fitando-a não de frente mas de viés

Ladeando o sexo que semi não espera;

Ora suave empolgado, ora agarrando em fúria,

Ora brinca brincando, agora a sério, ora

Ao lado da luxúria olhando-a, agora espiando

O modo de tomá-la no aparar da sua.



Assim as horas se iam das mãos dadas de ambos,

E das confusas pernas momentos resvalam.

Seus braços folhar mortas, ou cintas de ferro;

Agora os lábios taças, agora o que liba;

Olhos fechados por de mais, de mais fitantes;

Ora o vai-vém frenético operando;

Ora suas artes pluma, ora um chicote.



Viveram esse amor como religião

Oferta a deuses que, em pessoa, aos homens descem.

Às vezes adornado, ou feito enfiar

Meias vestes, então numa nudez de estátua

Imitava algum deus que de homem ser parece

Pela do mármore virtude exacta.

Agora Vénus era, alva dos mar´s saindo:

E agora Apolo ele era, jovem e dourado;

E agora Júpiter julgando em troça

A presença a seus pés do escravizado amante;

Agora agido de rito, por alguém seguido,

Em mistérios que são sempre repostos.



Agora é algo que qualquer ser pode.

Oh, crua negação da coisa que é!

Oh de aurea coma sedução fria de lua!

Fria de mais! De mais! E amor como ela frio!

O amor pelas memórias do amor seu vagueia

Como num labirinto, alegre, louco, triste,

E ora clama o seu nome e lhe pede que venha,

E ora sorrindo está à sua imagem-vinda

Que está no coração quais rostos na penumbra,

Meras luzentes sombras das formas que tinham…







Erguer-te-ei uma estátua que será

Prova, para o contínuo das futuras eras,

Do meu amor, tua beleza e do sentido

Que à divindade p´la beleza é dado.

Que a Morte com subtis mãos desnudantes tire

A nosso amor as vestes do império e da vida,

Ainda a dele estátua que só tu inspiras,

As futuras iades, quer queiram, quer não,

Hão-de, qual dote por um deus imposto,

Inevitavelmente herdar.







Como o amante que agurada, assim ele ia de

Canto a canto do em dúvida confuso de espírito.

Ora sua esperança um grande intento era

De que o anseio fosse, ora ele cego se

Sentia algures no visto indefinido anseio.

Se o amor conhece a morte, que sentir se ignora.

Se a morte frustra amor, que saber não sabemos.

A dúvida esperava, ou duvidava a esp´rança;

Ora o de sonhar senso ao que sonhava anseio

Escarnecia e congelava em vácuo

De novo os deuses sopram a mortiça brasa.



A tua morte deu-me alta luxúria mais

Um carnal cio em raiva por eternidade.

No meu imperial fado a confiança ponho

Que os altos deuses, por quem César fui,

Não riscarão de vida mais real

Meu voto de que vivas para sempre e sejas

Na deles melhor terra uma carnal presença,

Amável mais, mais amorável não, pois lá

Não coisas impossíveis nossos votos jaçam

Nem corações nos ferem com a mudança e tempo.



Amor, amor, Oh, meu amor! Já és um Deus.

Minha esta ideia, que por voto eu tomo,

Voto não é, mas vista que me é permitida

Pelos grãos deuses, que amor amam e dar podem

A corações mortais, sob a forma de anseios,

De anseios que alvos têm indescobertos,

Uma visão reais coisas para além

De nossa vida em vida aprisionada, nosso sentido no sentido preso

Ai, o que anseio que tu sejas, és tu já.

Pois já o Olimpo o território tu pisaste e és perfeito, sendo tu embora

Pois excesso de ti não precisas vestir

Perfeito para ser, a perfeição que és.







Amor, meu amor-deus! Que eu beije, em frios teus

Lábios, teus quentes lábios imortais agora,

Saudando-te beato nos portais da Morte.

Pois que pra deuses são portais da Vida.







E aqui, memória ou estátua, ficaremos

O mesmo um só, qual de mãos dadas éramos

Nem as mãos se sentiam por sentir sentir.

Ver-me-ão os homens quando o que és entendam.

Podiam ir-se os deuses, no vasto rodar

Das curvas eras. Só por ti apenas,

Que, um deles, no ido bando houveras ido,

Viriam, qual dormissem, para despertar







E se a nossa memória a pó se reduzisse,

Uma divina raça do fim das idades

Nossa unidade dual ressuscitava.



Ainda chovia. Em leves passos veio a noite

Fechando as pálpebras cansadas dos sentidos.

A mesma consciência de eu e de alma

Tornou-se, qual paisagem vaga em chuva, vaga.

O Imperador imóvel jaz, e tanto que

Semiesqueceu onde ora jaz, ou de onde vem

A dor que era inda sal nos lábios seus.

Algo distante fora tudo: um manuscrito

Que se enrolou. E o que sentira a fímbria era

Que halo é em torno à lua quando a noite chora.



A cabeça pousava sobre os braços, estes

No baixo leito, alheios a senti-lo, estavam.

Os seus olhos fechados cria abertos, vendo

O nu chão negro, frio, triste, sem sentido.

Doer-lhe o respirar tudo era que sabia.

Do tombante negrume o vento ergueu-se

E tombou; lá no pátio ecoou uma voz;

E o Imperador dormia…

Os deuses vieram….

E algo levaram, qual não senso sabe,

Em braços de poder e de repouso invisos.

Fernando Pessoa


(poesia originalmente escrita em inglês, tradução de Jorge de Sena)