domingo, 22 de janeiro de 2012

O premiado Yu Hua fala de Crônica de Um Vendedor de Sangue e da realidade do país

Sob o signo da política

Filho de médicos, o escritor Yu Hua passou a infância em um hospital e todos os dias via filas de camponeses que vendiam sangue para complementar sua escassa renda e sustentar suas famílias nos turbulentos anos do regime maoista.

Dessa visão saiu o personagem principal de Crônica de Um Vendedor de Sangue, Xu Sanguan, que descobre nas visitas regulares a bancos de sangue o caminho para sobreviver e alimentar seus três filhos.

O pano de fundo da saga do camponês são os anos do Grande Salto Adiante (1958-1962) – quando 30 milhões de pessoas morreram de fome – e a Revolução Cultural (1966-1976), que fechou escolas, queimou livros e deixou o tecido social chinês à beira da ruptura.

“A venda de sangue era extremamente comum naquela época e ainda é hoje, apesar de ser ilegal”, disse Yu Hua em entrevista ao Estado. Entre os mais festejados escritores chineses contemporâneos, ele nasceu em 1960 e cresceu durante a Revolução Cultural, quando o mais inocente gesto ou frase poderia ser tachado de “burguês” ou “contrarrevolucionário” e dar margem a uma perseguição implacável pelos temidos guardas vermelhos de Mao Tsé-tung (1893-1976).

“Foi um período deprimente e muito repressivo. É por isso que na minha obra não há enredos muito felizes”, disse o escritor, que fuma cigarros Panda e se veste com simples sobriedade.

Mas Yu Hua é hábil no uso do humor, que ganha um tom ligeiramente negro em meio à precariedade em que vivem seus personagens. Em Crônica de Um Vendedor de Sangue, a saga de Xu Sanguan é temperada por traições, intrigas e a diversidade dos habitantes de uma típica vila rural chinesa em um período de alta voltagem política.

Editada pela Companhia das Letras, a obra é a terceira de Yu Hua a ser lançada no Brasil, depois de Viver e Irmãos, seu mais ambicioso trabalho, que apresenta de maneira épica a trajetória de dois irmãos dos anos 60 até o período de abertura econômica nos quais o enriquecer passou a ser glorioso.

A improvável sucessão de eventos que marcaram a história chinesa das décadas de 1950 a 1980 são o pano de fundo da maior parte da obra do escritor, que trabalha em um novo livro ambientado no mesmo período, que viu o igualitarismo maoista ser substituído pela busca desenfreada da prosperidade material.

Na sua mais recente obra, China in Ten Words (sem tradução para o português), Yu Hua provoca risos no leitor ao lembrar da impossibilidade de acesso a livros durante a Revolução Cultural. Os únicos disponíveis eram as Obras Selecionadas de Mao Tsé-tung e o Livro Vermelho, que trazia citações do líder comunista.

Quando a loucura daqueles dez anos chegou ao fim, Yu Hua mergulhou na leitura de obras estrangeiras, que exerceram influência determinante sobre seu trabalho. Sua primeira fonte de inspiração foi o japonês Yasunari Kawabata (1899-1972), vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1968, a quem ele tentou imitar na habilidade de descrever detalhes e ainda deixar espaço para a imaginação do leitor.

A fase durou até 1986, quando Yu Hua conheceu a obra de Franz Kafka (1883-1924), que segundo ele “libertou” sua maneira de criar. “Aprendi com Kafka que o ato de escrever não deve ter limites e que eu deveria escrever qualquer coisa que quisesse.”

Fiel a esse princípio, Yu Hua disse não se influenciar pela existência da censura chinesa, que impediu a publicação de China in Ten Words, um trabalho de não ficção que tenta fazer um retrato de temas fundamentais do país. “Nunca mudei nada por causa da censura. Se um livro é proibido, eu sempre posso lançá-lo em Taiwan”, observou.

O principal motivo do veto à obra é a maneira explícita com que o autor relata os protestos pró-democracia realizados em 1989 na praça Tiananmen, que terminaram em uma sangrenta repressão no dia 4 de junho daquele ano.

“Essa é a diferença entre ficção e não ficção. Na China não se pode falar do dia 4 de junho, mas em uma obra como Irmãos eu posso me referir ao mesmo evento como o dia 35 de maio”, exemplifica, mencionando a data fictícia que muitos chineses usam para se referir ao massacre de Tiananmen.

Com 14 milhões de seguidores em uma das versões chinesas do Twitter, Yu Hua é um ativo crítico do governo chinês na internet, onde vários de seus posts acabam deletados pela censura. “O futuro político da China é muito claro e só há uma opção: ou o país caminha na direção da democracia ou haverá outra revolução.”

Em sua opinião, a disseminação de informação na rede e o crescente número de chineses que desafiam os limites impostos pelo governo tornam insustentável a manutenção de um regime autoritário. “Mais e mais pessoas estão dispostas a manifestar suas opiniões e não é possível controlar todas elas.”

A censura também afetou de maneira oblíqua Viver, a obra que projetou Yu Hua internacionalmente e que o autor considera como o trabalho que lhe trouxe sorte. “Quase 20 anos depois de sua publicação, o livro ainda vende 100 mil cópias ao ano na China, o que é extraordinário”, ressaltou.

Parte do sucesso se deve à adaptação para o cinema realizada pelo mais célebre diretor chinês, Zhang Yimou. Mesmo com uma série de mudanças no roteiro, o filme até hoje é proibido na China, mas pode ser encontrado em qualquer das inúmeras lojas de DVDs piratas do país.


Cláudia Trevisan – O Estado de S.Paulo. 21 de janeiro de 2012