domingo, 2 de fevereiro de 2014

A Fuga



A criança põe a boneca na mala.
A mãe põe a criança na mala.
O pai põe a mãe e a casa na mala.

O exterior põe o pai com a mala na mala.
E envia tudo de volta.

Escondem-se na floresta:

1 boneca
1 criança
1 mãe
1 pai
1 casa
2 malas
1 fuga.

Poema de Aglaja Veteranyi


Tradução de Fabiana Macchi
Esse homem esqueceu o próprio nome.
O importante, diz ele, é ter um passado. Isto é
fundamental.
Ele bebe chá de uma garrafa térmica vermelha.
A sala de espera está vazia, sempre vazia.
As pessoas não têm tempo para esperar o trem, pensa ele.

Quando criança, certa vez ele escreveu uma redação.
Com uma frase.
Minha meta, escreveu, é o asilo de velhos.

O sem-nome sorri. Ele olha o grande relógio na parede
e pensa em todos os trens que já perdeu hoje.
Minha profissão, diz ele, é ficar aqui sentado neste banco.
Minha profissão é perder trens.
Minha profissão é esquecer o meu nome.

Aglaja Veteranyi

Tradução Fabiana Macchi

Publicado na revista Coyote N. 11, 2005

PRESENTES


Um homem parou na beira de uma mulher e atirou uma pedra para dentro dela.

4 anos depois a mulher disse: eu amo pedras.
4 anos depois o homem disse: quero minhas pedras de volta.
A mulher deixou-se operar.
O homem embrulhou as pedras em papel de seda vermelho e deu-as de presente à mulher.
A mulher deu de presente ao homem a conta do hospital.
O homem deu de presente à mulher de 1 a 2 filhos.
Os filhos deram de presente ao casal 1,6 kg de alegria.
O casal, de alegria, pulou da janela.

A repartição de enterros deu de presente aos filhos um caixão duplo.
Os filhos deram de presente aos seus filhos a história de seus alegres pais.
Um filho deu ao outro filho uma lágrima.
O filho chorou-se todo e afogou-se no choro.

120 anos depois uma mulher parou na beira de um homem e
atirou uma pedra para dentro dele.
O homem disse: não gosto de pedras.
A mulher tentou com um pedaço de pau.
A felicidade deles tornou-se insuportavelmente bela.

Aglaja Veteranyi

Tradução Fabiana Macchi

(publicado na Sibila - Revista de Poesia e Cultura N. 2, 2002)

O Livro



Ontem Ângela sonhou com seus pais. Não tenham
medo, disse ela, antes de ir, vou cozinhar uma cova
para vocês. Ontem os pais de Ângela morreram. On-
tem Ângela ganhou um filho, e o filho completou on-
tem 59 anos. Ontem Ângela disse:
a pele não sabe quando deve parar de morrer.
Ontem saiu no jornal: Ontem Ângela mor-
reu.

Ontem a filha disse: eu quero um livro cheio de
neve.

Aglaja Veteranyi

Tradução Fabiana Macchi

Publicado na revista Coyote N. 11, 2005

O CONTRATO



Ele a traía sempre às terças-feiras. Ela o traía às quintas.
Certo sábado ele pediu: ponha percevejos no meu arroz.
Ela fez uma comida picante. Acendeu velas azuis. Colocou um tango.
Eles se abraçaram. Sem sentidos.
E aí veio o sangue.
Na sua boca.
Das suas entranhas.
Ela raramente o achara tão sensual.
No domingo ela pediu: espanque-me.
Ele bateu de cinta no seu rosto. Arrancou-lhe um dedo
com o alicate.
Às 10 em ponto eles apagaram as luzes.
Segunda-feira ambos tinham de levantar cedo.

Aglaja Veteranyi

Tradução Fabiana Macchi

Publicado na revista Coyote N. 11, 2005

A MORTE O AMOR A VIDA



Paul Éluard

Julguei que podia quebrar a profundeza a imensidade
Com o meu desgosto nu sem contacto sem eco
Estendi-me na minha prisão de portas virgens
Como um morto razoável que soube morrer
Um morto cercado apenas pelo seu nada
Estendi-me sobre as vagas absurdas
Do veneno absorvido por amor da cinza
A solidão pareceu-me mais viva que o sangue

Queria desunir a vida
Queria partilhar a morte com a morte
Entregar meu coração ao vazio e o vazio à vida
Apagar tudo que nada houvesse nem o vidro nem o orvalho
Nada nem à frente nem atrás nada inteiro
Havia eliminado o gelo das mãos postas
Havia eliminado a invernal ossatura
Do voto de viver que se anula


Paul Èluard
algumas palavras (antologia)
tradução antónio ramos rosa e luiza neto jorge
dom quixote

1977

Mandarim

"Ideias exatas, expressas numa forma sóbria, não nos interessam: o que nos encanta são emoções excessivas traduzidas com um grande fausto plástico de linguagem.

Espíritos assim formados devem sentir necessariamente um distanciamento por tudo o que é realidade, análise, experimento, certeza objetiva. O que os atrai é a fantasia, sob todas as formas, desde a canção até a caricatura; também em arte, somos sobretudo, líricos e satíricos. Ou ficamos com os olhos voltados em direção às estrelas, deixando nossos corações murmurar; ou, se lançamos um olhar para o mundo que nos rodeia, é para rir dele com amargura. Somos homens de emoções e não de raciocício."


(Eça de Queirós, em carta que seria prefácio do Mandarim, 1884)