sábado, 26 de novembro de 2011

Um olhar sobre as raízes da narrativa Latino-Americana

Livros e fotos emolduradas com escritores como Julio Cortázar (1914- 1984) disputam cada metro quadrado da parede do escritório no Departamento de Literatura, habitado pelo “segundo melhor crítico” da Universidade de Yale. O epíteto foi conferido pelo amigo e colega Harold Bloom. Será necessário dizer que Bloom, jamais acusado pelo crime de modéstia, reservou para si a vaga do primeiro lugar? Roberto González Echevarría sorri curioso com a presença da repórter, como se o reconhecimento de um livro de crítica literária com cinco edições em inglês, em 20 anos, ainda provocasse surpresa. Mesmo depois de ter recebido, em março, do presidente Barack Obama, a Medalha Nacional de Artes e Humanidades, em companhia de Philip Roth e Joyce Carol Oates. Ele se confessa feliz com a longevidade de Mito y Archivo – Una Teoría de la Narrativa Latinoamericana. Acaba de escrever Modern Latin American Literature: A Very Short Introduction (Literatura Latino-Americana Moderna: Uma Introdução Muito Curta), que será lançado em 2012. Echevarría começa o novo livro afirmando que se guiou pela “avaliação severa” de qualidade. “Avaliação é a menos admitida e uma das mais predominantes práticas em critica literária”, escreve. Para ele, o colombiano Fernando Vallejo e o chileno Roberto Bolaño (1953-2003) são dois romancistas que aproximaram a literatura latino-americana recente do lugar de proeminência que ocupou durante o boom dos anos 60. E aposta: “Sempre teremos a linguagem e as histórias, não importa o estilo da narrativa”.

O senhor ainda sustenta a tese de que o arquivo é uma fonte mais importante para a ficção latino-americana do que a origem tradicional do romance em outros continentes?

Sim. Comecei realmente a pensar na relação entre a lei e a origem da ficção ao escrever sobre o picaresco na Espanha no século 16. Ao mesmo tempo, estava refletindo sobre as crônicas da descoberta do Novo Mundo, porque eu ensinava e ainda dou cursos, tanto sobre a Idade de Ouro da literatura espanhola como sobre a literatura latino-americana colonial e moderna. Foi essa confluência fortuita que me levou a escrever o livro. E me ocorreu que La Vida de Lazarillo de Tormes y de Sus Fortunas y Adversidades, o romance anônimo de 1554, é um depoimento que um criminoso faz diante do juiz. Aquela primeira pessoa é muito parecida com a primeira pessoa em Hernán Cortés, quando ele escreve as suas Cartas de Relación. Foi quando me veio a ideia. Depois, comecei a estudar as origens de nova legislação na Espanha no século 16. Era difícil, especialmente para nós, latino-americanos, pensar na Espanha como um país moderno. Mas a Espanha teve a primeira monarquia moderna com os reis católicos, foi o primeiro Estado moderno e os monarcas reformaram a lei espanhola. A lei se tornou presente na Espanha do século 16. E os herdeiros reais criaram o primeiro grande arquivo do Estado em Simancas, perto Salamanca, num belíssimo castelo que havia se tornado uma prisão – e acabou como arquivo. Para mim, não há símbolo melhor da origem da ficção: castelo-prisão-arquivo. Daquela antiga prisão saiu Pícaro, o criminoso. Assim, os testemunhos de criminosos e dos conquistadores são as primeiras narrativas da América Latina. Elas foras escritas para o Arquivo. Claro que fui influenciado por teóricos como Michel Foucault, havia lido Vigiar e Punir. O fato é que não sou simplesmente um seguidor de teorias literárias, tento formular a minha própria. Reconheço que aprendi muito com Foucault, Derrida e outros, mas espero que esta seja minha contribuição para a teoria quando se trata de América Latina. E aprendi muito também com Jorge Luis Borges e Alejo Carpentier.

O senhor não prefere se ver como um fruto da influência da narrativa da ficção mais do que da teoria literária?

Sim, acho que quaisquer ideias que formulo vêm da leitura de ficção – Alejo Carpentier, por exemplo, que foi um dos meus professores, e acabei por escrever um livro sobre ele, The Pilgrim at Home: Alejo Carpentier. Lendo Los Pasos Perdidos, de Carpentier, tive ideias que se tornaram relevantes para escrever Mito y Archivo. Quando eu fazia pós-graduação em Yale, li O Jogo da Amarelinha, de Julio Cortázar. Ali estava: a forma de um arquivo, capítulos que podiam ser rearranjados, textos que usam recortes de jornal como fonte. E, é claro, em Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, o arquivo é uma fundação do romance. O impacto de Cem Anos foi o mais importante para a elaboração de Mito y Archivo.

Pouco antes de Mito y Archivo ser concluído, O General em Seu Labirinto, de Márquez, foi lançado. Qual a importância disso?

Muito importante. Representou para mim mais um sinal de que estava no caminho certo. Porque ali está a figura do General Bolívar e a narrativa permitida por um arquivo de milhares de cartas.

O senhor se lembra quando primeiro usou a palavra arquivo como síntese da ideia do livro?

Não tenho certeza, mas gostaria de acreditar que fui inspirado pela etimologia da palavra – arch-ivo – mistério, origem. Architectura, construção que contém coisas. Desconfio que minha mente seja mais poética do que teórica.

Fale um pouco sobre a cumplicidade entre literatura e reportagem científica na América Latina, no século 19.


É o segundo momento, que veio depois do período da Lei, que estabeleceu mecanismos de narrativa. No século 19, tivemos a escrita produzida pelos exploradores científicos. Ela usava métodos que refletiam a emergência das ciências sociais, em conexão com as ciências naturais que deram origem à antropologia. Os Sertões, de Euclides da Cunha, é um livro que representa a quintessência desse fenômeno. Euclides viaja e descreve a paisagem; que livro fenomenal! E fiquei tão contente quando vi que Os Sertões inspirou Mario Vargas Llosa a escrever a Guerra do Fim do Mundo, que considero seu melhor romance.

O senhor afirma que, apesar de Euclides ter a intenção de se apoiar na tradição científica que se formava na época, ele perde o controle da própria perspectiva em Os Sertões.

Sim e acho que isso confere ao livro um molde profundamente literário. É um livro que dramatiza seu próprio fracasso ao tentar explicar Canudos. Isso, para mim, é a mais importante revelação e torna Os Sertões uma grande obra literária, além do que, suponho, o próprio Euclides imaginava. Só Guimarães Rosa descobriu a poética do sertão nesse nível. Mas Os Sertões é insuperável, umas das obras-primas da literatura.

E como o senhor vê Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, no contexto que chama de literatura da tradição antropológica?

É antropologia na medida em que mergulha na linguagem e nos mitos do sertão. Sempre me emociono com o fato de que Guimarães Rosa era um médico e aceitava que os pacientes pobres lhes contassem histórias como pagamento. Pode haver história mais bonita? Ele estava reunindo toda essa narrativa que forma Grande Sertão como um antropólogo. E a antropologia é o terceiro momento, depois da Lei e da exploração científica. O romance latino-americano moderno é essencialmente um projeto antropológico, com toda a poesia que existe na antropologia, como agora descobrimos com a antropologia pós-moderna.

Muitos consideram a prosa de Rosa, em sua invenção regionalista, à altura de Joyce.

Eu concordo plenamente com o argumento. O regionalismo, é claro, pode se tornar universal. Como dizia Miguel Unamuno, “lo universal en lo local”. O regionalismo de García Márquez não está preso a uma região específica, abraça toda a América Latina. E a comparação é justa: Rosa é um romancista tão bom quanto James Joyce, mas o português não tem a difusão literária do inglês. Ulisses é um romance regionalista e universal.

O senhor acha que sempre vamos ter a separação entre a literatura brasileira e a de língua espanhola?

A literatura brasileira é a mais rica do continente, depois da norte-americana, que é tremenda. Machado de Assis é o melhor escritor da América Latina no século 19. Mas, apesar da diferença de língua que nos separa, houve a fecundação cruzada. Nós somos quase os mesmos. Eu era muito amigo do Haroldo de Campos, que ensinava aqui, em Yale, quando eu fazia pós-graduação. Ele usou em um de seus poemas uma frase que eu tinha dito para o Severo Sarduy, também meu grande amigo. Estava na Flórida, uma vez, conversando com uma cubana exilada que havia pertencido à alta burguesia e agora tinha de trabalhar. Perguntei: “Senhora, é duro trabalhar?” Ela respondeu, “Ai, meu filho, trabalhar é a morte vestida de verde-jade”. Ela parecia ter escapado de um romance do Severo Sarduy! Mandei para o Severo, que usou como título de um capítulo de Colibri. Quando o Haroldo leu, adorou e escreveu o poema A Morte Vestida de Verde-Jade.

O que o senhor acha do argumento de que realismo mágico é uma vertente esgotada?

É o que grupos como McCondo e La Nueva Onda acreditam. E compreendo que a literatura precisa se renovar, o jovem deve matar o velho e tudo isso. Mas quando se fazem esses pronunciamentos esperamos que eles sejam seguidos por grandes obras literárias. E isso ainda não aconteceu. Você pode fazer gozação e dizer que a América Latina não é como Macondo, é globalizada, etc. Mas cadê o novo Cem Anos de Solidão? Macondo existe como a Londres de Charles Dickens ou a Paris de Proust.

Ao final do livro o senhor pergunta: Há narrativa além do arquivo?

Tenho pensado sobre isso (suspira). O mito do arquivo em romances como Cem Anos de Solidão se repetiu em outras ficções – menores, devo dizer. E a tentativa de fugir disso não me parece bem-sucedida na América Latina. As únicas exceções que me ocorrem citar são Fernando Vallejo e Roberto Bolaño. Noturno de Chile, do Bolaño é um romance maravilhoso.

Em outra pergunta o senhor especula se os sistemas de comunicação estão se tornando a nova fonte de narrativa.

Acho que sim e acredito até na transformação da leitura como uma experiência digital. O boliviano Edmundo Paz Soldán, que leciona em Cornell, escreveu, por exemplo, sobre hackers. A questão é, se além de tema, os novos sistemas estão afetando a forma da literatura. É bom lembrar que a mídia é uma outra forma de arquivo, inclusiva e onipresente. O Paz Soldán é um dos mais interessantes entre estes autores jovens. Um outro efeito dos sistemas de comunicação é que se lê menos. Os meus alunos em Yale, que estão entre os melhores do país, leram muito menos do que as gerações anteriores. Mas, no fim das contas, acho que a narrativa é como um fênix, sempre acaba por se erguer das cinzas. Por isso, fico tão feliz quando descubro um Roberto Bolaño. A literatura sempre se renova. Sempre teremos a linguagem e as histórias, não importa o estilo da narrativa.

Fonte : O Estado de S.Paulo. 26/11/2011

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Os cogumelos do Paraíso

Minha loucura

não tem complexo

nem de Édipo, nem de Electra,

nem de qualquer puro amor

que saia das artérias.



Vivo no paraíso dos cogumelos

dias tristes, dias alegres,

mas tudo é ilusão passageira,

só não passa nesta vida

a casca estrangeira.



O doce e o amargo

do sabor da tua língua

ficou no Caribe

lá nos Portos cheios de gozo

e de prostituição.



Os cogumelos do paraíso

são adubados com a maresia

e os marujos já não são mais fêmeas,

pois as fêmeas são eternos machos

depois da ceia que consome seus rabos.



Nós não temos nada,

se temos a vida

ela ainda nos deve a morte,

portanto tudo é ilusão

dias de trabalho, outros de ócio

dias de amor, outros de ódio,

e os cogumelos são adubados

para fabricar desejos,

e onde não há alucinação

não germina gente,

nem se fabrica coração.

Cristiane Neder

terça-feira, 22 de novembro de 2011

YO NUNCA ESTUVE EN CRETA

EU NUNCA ESTIVE EM CRETA




Mas quando despertei

tinha os pés molhados

de uma luz

que atravessa

a persiana

________zarpa

e, a estas horas banha

teu rosto que flutua

- esqueceste do Nivea -

sobre as listras verdes

do Egeu



Carmen Camacho/ tradução Ricardo Pozzo



YO NUNCA ESTUVE EN CRETA



Pero cuando desperté

tenía los pies mojados

de una luz

que atraviesa

la persiana

________zarpa

y a estas horas baña

tu cara que flota

—olvidaste la Nivea—

sobre el verde a vetas

del Egeu



Carmen Camacho

sábado, 19 de novembro de 2011

Divórcio

A gente se abraçava o tempo inteiro também porque precisava conservar a pele. Abraçava meus amigos e minha pele se prendia ao resto do corpo



por Ricardo Lísias

Dor e solidão são muito diferentes. Para me sentir realmente sozinho, preciso estar longe do meu país e não compreender nem uma palavra do que dizem. Nas poucas vezes em que senti uma dor muito intensa, estava perto das pessoas com quem convivo. A solidão pode não ser ruim. Uma vez, em uma ruazinha de Bonn, me senti muito sozinho, mas a vontade de chorar veio, estranhamente, da sensação de vitalidade que me invadiu. Estou longe de todos, não entendo nada do que dizem, mas daqui a alguns dias volto para casa. Sinto-me vivo e protegido.

Na última vez em que senti dor, fui descarnado. Se fosse uma tortura física, teria sido mais fácil. Minha pele se separou do resto do corpo. Eu andava lentamente em uma avenida bastante movimentada de São Paulo e estava sem pele. Também compreendia todas as palavras. Ninguém tentou conversar comigo, outra característica da dor violenta. Entrei no metrô e, em um vagão quase cheio, comecei a chorar. Tinha perdido a pele. Todo mundo ali, no vagão do metrô em que entrei descarnado, falava português. Ninguém me olhou, outra característica da dor profunda.

Também me senti sozinho na Polônia e aniquilado quando recebi uma ligação avisando que meu grande amigo André tinha se enforcado. Mas dessa vez a dor não me descarnou porque todos nós conversamos. A gente se abraçou muito no enterro do André.

Agora, nessa dor sem fim, ninguém me olha. Também não posso pedir ajuda porque a dor é tão grande que meus amigos e minha mãe não suportariam. Só poderei abraçá-los quando a dor for menor e tiver recuperado ao menos uma parte da minha pele.

Estou chorando em um vagão quase cheio do metrô de São Paulo e ninguém me olha. Não estou sozinho: fui abandonado. Minha ex-mulher roubou-me a pele depois de um mês de casamento, cheia de indiferença pelo resto do meu corpo e orgulhosa por falar um pouco de francês.

Descobri a crueldade onde eu esperava o amor.



Em Bonn me senti sozinho. Mas aqui está outra diferença da solidão para a dor: eu sabia que, de um jeito ou de outro, encontraria o caminho de volta. Agora, sem pele no metrô quase cheio de São Paulo (devem ser quatro da tarde), estou certo de que vou morrer.

Da Alemanha, arranjei uma passagem para Paris. Comprei um jornal local, sentei no trem e tive vontade de rir. Não sei nada de alemão, o que vou fazer com esse jornal? No entanto, rir de verdade, gargalhar feito um louco foi o que fiz em Paris.

Entrei no Louvre e fui direto à sala da Monalisa. Olhei aquele quadrinho e achei a mulher feia. Fiquei com vontade de rir. Mas quando vi que três ou quatro pessoas filmavam o quadro, aquela gente filmava a Monalisa, eles estavam parados e perplexos filmando um quadro!, morri de rir. Cruzei os corredores do Louvre gargalhando sem controle. Logo eu que não gosto quando as pessoas se descontrolam. Piores são os tipos bem-sucedidos que viajam para o exterior para ir a todos os museus de Paris, Nova York e Londres. Pessoas que viajam para aprender nunca vão saber nada.

Mas isso não é transcendência. Nem museu em Paris é arte. A fila na frente da Notre Dame muito menos. O esplendor não é um clichê. Transcendência é o que o Dusão, um cara que detesto, fez no funeral do meu amigo André.



Quando meu amigo se enforcou, senti de tudo. Dor, solidão, medo, culpa e arrependimento. Três dias antes bati o telefone para não ouvir mais as loucuras dele. Nessas situações, começam a voltar aqueles filminhos das coisas que fizemos juntos. Estou falando de amor.

Foi um funeral com gente nova. Muitos de nós estávamos no primeiro emprego. A gente sabia que a vida tinha acabado de mudar e, por isso, não parávamos de nos abraçar.

A gente se abraçava o tempo inteiro também porque precisava conservar a pele. Abraçava meus amigos e minha pele se prendia ao resto do corpo.

Agora, não. Estou descarnado no metrô, ninguém me abraça e a dor é grande. Queria muito estar sozinho em Bonn, ou em uma pracinha na Cracóvia, olhando o letreiro de um ônibus naquele alfabeto estranho e me perguntando: Onde estou?

Aceito ficar sozinho, mas quero minha pele de volta. Solidão é um sentimento que suporto, mas não posso ser descarnado.

Eu e os amigos do André nos abraçávamos para manter a pele. A 1 metro da gente o corpo enforcado do André parecia me dizer: a sua pele está aí. Já não lembro se o abracei, mas até hoje sinto o momento em que segurei, no funeral, as mãos mornas do meu grande amigo enforcado.

Um pouco depois, o Dusão transcendeu. A gente estava se abraçando, ele olhou para o alto e começou a berrar: Senhor Papa, senhor Deus, senhor Buda e todos vocês, Senhores Sagrados, o André se enforcou sim, ele se matou mesmo, mas ele vai para o Céu. O André se matou, mas ele vai para o Céu.

Todos concordamos.

Não me sinto sozinho. A minha pele me abandonou. Perdi o controle da minha vida. Por isso, gosto quando estou comedido: o mundo se fecha e a minha pele não foge. A verdadeira arte é silenciosa, como a literatura. Não há nada de artístico no que estou fazendo no vagão quase cheio do metrô de São Paulo. Estou descontrolado, chorando sem parar.

Pessoas controladas gostam de se fechar em um quarto. Depois que se trancam, a pele perde a tensão. Eu a abraço. Aos poucos vamos nos soltando. Demora, mas contemplo quem me controla. Nós dois nos olhamos e aos poucos o controle diminui. Então por fim a pele explode e nos descontrolamos. Ejaculo.

Agora, porém, estou na rua chorando com o corpo inteiramente descarnado.



Tenho que sair do metrô. Não estou sozinho: minha ex-mulher me descarnou. Nada disso tem ligação com o André. Tem sim: se estivesse vivo, eu telefonaria e, depois de duas frases, meu amigo me interromperia: Ricardo, fica onde você está, vou pegar um táxi para te encontrar. O meu amigo André nunca me abandonou, mas o deixei sozinho no pior momento da vida dele.

Na rua, procurando minha pele e sem ninguém para olhar para mim, começo a me lembrar do André. A lembrança mais forte é a de como ele era bonito. O André era um homem lindo. Eu não me importava de andar ao lado dele: tinha orgulho. Ele é meu grande amigo. As meninas olhavam doidas para ele. Esse cara é meu amigão.

Minha pele está mais perto. Penso em como o André era bonito e finalmente sinto algum calor. Antes de ficar medonho por causa dos remédios, o André era um homem lindo. Minha pele talvez volte.

A gente às vezes ia a uma casa de massagem. O André sempre escolhia a mesma garota. Aline, digamos assim. Para respeitá-lo, nunca quis que ela me massageasse. Minha pele está voltando.

Na terceira ou quarta vez, quando chegamos, a moça da portaria, mal conseguindo disfarçar, pegou o interfone e avisou: Meninas, aquele cara voltou. Aquele cara era o meu amigo André. Acho que elas se ouriçaram. Quem será que o homem lindo vai escolher? Ele escolheu a Aline.

Estou imaginando onde deve estar hoje essa Aline, cinco anos depois, quando perdi a minha pele e o André morreu.



Na rua, sinto-me um pouco melhor. O metrô de São Paulo é limpo, mas nivela todo mundo. Museus fazem isso com a arte. Eu amei o metrô de Paris. Estava apaixonado. Estou sem pele.

Se encontrasse a Aline do André, talvez ela pudesse me falar dele. Faz cinco anos, mas ele era bonito o suficiente para que uma mulher jamais o esquecesse. Qualquer mulher. Concentro-me para segurar os soluços e lembrar o endereço da casa de massagens. Meia década apaga muita coisa, mas não tudo. Tenho medo de que nem uma vida apague tudo.

Na recepção, pergunto se a Aline ainda trabalha aqui. Temos uma Aline. Meu coração dispara. Vou para o quarto e, como ela demora, pego essa folha para escrever. Estou sem chorar há quase uma hora.

A porta se abriu. A Aline me olha através do espelho. Escrevendo aqui? Tenho medo de responder. Como todas, ela aparece com uma roupinha vulgar, mas tem um sorriso ingênuo. Está se aproximando aos poucos. Não me viro e sinto seus dedos e os seios arranhando levemente minhas costas. Como estou sem pele, dói um pouco. Ela percebe e para.

Você trabalha aqui há muito tempo? Uns seis meses, responde. Então não é a Aline do André… Fico com vontade de chorar. Paguei, posso fazer tudo com você? Nem tudo. Ela se deita e me olha. Deito-me ao lado e ela curva o corpo, deixando as costas para mim. Abraço-a e ela ensaia um movimento erótico que, na mesma hora, interrompo.

Fica em silêncio e tenta dormir, peço. Ela me olha espantada através do espelho, e fecha os olhos. Cubro-a com um lençol que tinham deixado ali. Não estou chorando, minha pele não voltou, mas sinto afeto por uma mulher de novo. É uma puta. A mortalha está bem colocada, mas protejo um pouco mais o pescoço da Aline. Ela sorri como minha ex-mulher fazia. Fico olhando-a fingir o sono.


Fonte: Revista Píaui

Emma Zunz

EMMA ZUNZ


JORGE LUIS BORGES (1899-1986 )

No dia 14 de janeiro de 1922, Emma Zunz, ao voltar da fábrica de tecidos Tarbuch e Loewenthal, encontrou no fundo do vestíbulo uma carta, datada do Brasil, pela qual soube que seu pai tinha morrido. Enganaram-na, à primeira vista, o selo e o envelope; depois, inquietou-a a letra desconhecida. Nove ou dez linhas mal traçadas quase enchiam a folha; Emma leu que o senhor Maier tinha ingerido por engano uma forte dose de Veronal e tinha falecido a 3 do corrente no hospital de Bagé. Um companheiro de pensão de seu pai assinava a notícia, um tal Fein ou Fain, de Rio Grande, que não podia saber que se dirigia à filha do morto.

Emma deixou cair o papel. A primeira sensação foi de mal-estar no ventre e nos joelhos; depois, de cega culpa, de irrealidade, de frio, de temor; depois, quis já estar no dia seguinte. Imediatamente, compreendeu que essa vontade era inútil, porque a morte de seu pai era a única coisa que tinha sucedido no mundo e que continuaria sucedendo para sempre. Pegou o papel e foi para o quarto. Furtivamente, guardou-o na gaveta, como se, de alguma forma, já conhecesse os fatos ulteriores. Talvez já começasse a vislumbrá-los; já era a que seria.

Na crescente escuridão, Emma chorou até o fim daquele dia o suicídio de Manuel Maier, que nos velhos dias felizes fora Emanuel Zunz. Recordou veraneios numa chácara, perto de Gualeguay, recordou (procurou recordar) sua mãe, recordou a casinha de Lanus que lhes arremataram, recordou os amarelos losangos de uma janela, recordou o auto de prisão, o opróbrio, recordou as cartas anônimas com o comentário sobre “o desfalque do caixa”, recordou (mas isso ela nunca esquecia) que seu pai, na última noite, jurara que o ladrão era Loewenthal. Loewenthal, Aaron Loewenthal, antes gerente da fábrica e agora um dos donos. Emma, desde 1916, guardava o segredo. A ninguém o revelara, nem sequer a sua melhor amiga, Eisa Urstein. Talvez evitasse a profana incredulidade; talvez acredi¬tasse que o segredo fosse um vínculo entre ela e o ausente. Loewenthal não sabia que ela sabia; Emma Zunz tirava desse fato ínfimo um sentimento de poder.

Não dormiu aquela noite, e, quando a primeira luz definiu o retângulo da janela, já estava perfeito seu plano. Procurou fazer com que esse dia, que lhe pareceu interminável, fosse como os outros. Havia na fábrica rumores de greve; Emma, como sempre, declarou-¬se contra qualquer violência. Às seis, concluído o trabalho, foi com Eisa a um clube para mulheres, com ginásio e piscina. Inscreveram-se; teve de repetir e soletrar seu nome e sobrenome, teve de achar graça das brincadeiras vulgares com que é comentado o exame médico. Com Eisa e com a mais moça das Kronfuss discutiu a que cinema iriam no domin¬go à tarde. Depois, falou-se de namorados e ninguém esperou que Emma falasse. Comple¬taria dezenove anos em abril, mas os homens lhe inspiravam ainda um temor quase patológico… Na volta, preparou uma sopa de tapioca e uns legumes, comeu cedo, deitou-¬se e obrigou-se a dormir. Assim, laboriosa e trivial, passou a sexta-feira, dia 15, a véspera.

No sábado, a impaciência despertou-a. A impaciência, não a inquietude, e o singu¬lar alívio de estar finalmente naquele dia. Já não tinha que tramar e imaginar; dentro de algumas horas, atingiria a simplicidade dos fatos. Leu em La Prensa que o navio Nordstjarnan, de Malmo, zarparia nessa noite do cais 3; telefonou para Loewenthal, insinuou que dese¬java comunicar, sem que as outras soubessem, algo sobre a greve e prometeu passar pelo escritório, ao anoitecer. Tremia-lhe a voz; o tremor convinha a uma delatora. Nenhum outro fato memorável ocorreu nessa manhã. Emma trabalhou até as doze e marcou com Eisa e com Perla Kronfuss os pormenores do passeio de domingo. Deitou-se depois de almoçar e recapitulou, de olhos fechados, o plano que tramara. Pensou que a etapa final seria menos horrível que a primeira e que lhe proporcionaria, sem dúvida, o sabor da vitória e da justiça. De repente, alarmada, levantou-se e correu à gaveta da cômoda. Abriu-a; debaixo do retrato de Milton Sills, onde a deixara na noite anterior, estava a carta de Fain. Ninguém podia tê-la visto; começou a ler e rasgou-a.

Narrar com alguma realidade os fatos dessa tarde seria difícil e talvez improceden¬te. Um atributo do infernal é a irrealidade, um atributo que parece diminuir seus terrores e que talvez os agrave. Como tornar verossímil uma ação na qual quase não acreditou quem a executava, como recuperar esse breve caos que hoje a memória de Emma repudia e confunde? Emma vivia em Almagro, na rua Liniers; consta-nos que nessa tarde foi ao porto. Talvez no infame Paseo de Julio se tenha visto multiplicada em espelhos, anunciada por luzes e despida pelos olhos famintos, porém mais razoável é conjeturar que a princípio errou, inadvertida, pela indiferente galeria… Entrou em dois ou três bares, viu a rotina ou os modos de outras mulheres. Por fim, deu com homens do Nordstjéirnan. Temeu que um deles, muito jovem, lhe inspirasse alguma ternura e optou por outro, talvez mais baixo que ela e grosseiro, a fim de que a pureza do horror não fosse diminuída. O homem conduziu-¬a a uma porta e depois a um turvo saguão e depois a uma escada tortuosa e depois a um vestíbulo (em que havia uma vidraça com losangos idênticos aos da casa em Lanus) e depois a um corredor e depois a uma porta que se fechou. Os fatos graves estão fora do tempo, seja porque neles o passado imediato fica como que separado do futuro, seja porque não parecem consecutivas as partes que os formam.

Naquele tempo fora do tempo, naquela desordem caótica de sensações inconexas e atrozes, Emma Zunz pensou uma única vez no morto que motivava o sacrifício? Tenho para mim que pensou uma vez e que nesse momento correu perigo seu desesperado propósito. Pensou (não pôde deixar de pensar) que seu pai tinha feito à sua mãe a coisa horrível que lhe faziam agora. Pensou com débil assombro e se refugiou, em seguida, na vertigem. O homem, sueco ou finlandês, não falava espanhol; foi um instrumento para Emma como esta o foi para ele, mas ela serviu para o gozo e ele para a justiça.

Quando ficou sozinha, Emma não abriu em seguida os olhos. Na mesa de cabecei¬ra estava o dinheiro deixado pelo homem. Emma sentou-se e o rasgou como antes rasga¬ra a carta. Rasgar dinheiro é uma impiedade, como jogar fora o pão; Emma arrependeu¬-se, tão logo o fez. Um ato de soberba, e naquele dia… O medo perdeu-se na tristeza de seu corpo, no asco. O asco e a tristeza prendiam-na, mas Emma lentamente se levantou e começou a vestir-se. No quarto não restavam cores vivas; o último crepúsculo se adensava. Ela pôde sair sem que a percebessem; na esquina, pegou um Lacroze que ia para o oeste. Escolheu, conforme seu plano, o banco mais da frente para que não lhe vissem o rosto. Talvez a tenha consolado verificar, no insípido movimento das ruas, que o acontecido não contaminara as coisas. Passou por bairros decrescentes e opacos, vendo-os e esquecen¬do-os no ato, e desceu numa das esquinas de Warnes. Paradoxalmente, seu cansaço vinha a ser uma força, pois a obrigava a concentrar-se nos pormenores da aventura e lhe ocultava o fundo e o fim.

Aaron Loewenthal era, para todos, um homem sério; para seus poucos íntimos, um avarento. Vivia nos altos da fábrica, sozinho. Estabelecido no desmantelado arrabalde, temia os ladrões; no pátio da fábrica havia um grande cachorro e na gaveta do escritório, ninguém o ignorava, um revólver. Chorara com decoro, no ano anterior, a inesperada morte da mulher – uma Gauss, que lhe trouxe um bom dote! –, mas o dinheiro era sua verdadeira paixão. Com íntima vergonha, sabia ser menos apto para ganhá-lo que para conservá-lo. Era muito religioso; acreditava ter com o Senhor um pacto secreto, que o eximia de agir bem a troco de orações e devoções. Calvo, corpulento, enlutado, de óculos escuros e barba ruiva, esperava de pé, junto à janela, a informação confidencial da operá¬ria Zunz.

Viu-a empurrar a grade (que ele deixara entreaberta, de propósito) e cruzar o pátio sombrio. Viu-a dar uma pequena volta quando o cachorro amarrado latiu. Os lábios de Ernma se atarefavam como os de quem reza em voz baixa; cansados, repetiam a sentença que o senhor Loewenthal ouviria antes de morrer.

As coisas não ocorreram como previra Emma Zunz. Desde a madrugada anterior, sonhara, muitas vezes, apontando o firme revólver, forçando o miserável a confessar a miserável culpa e expondo o corajoso estratagema que permitiria à Justiça de Deus triun¬far sobre a justiça humana. (Não por medo, mas por ser um instrumento da justiça, ela não queria ser castigada.) Depois, um só balaço no meio do peito rubricaria a sorte de Loewenthal. Mas as coisas não ocorreram assim.

Diante de Aaron Loewenthal, mais que a urgência de vingar o pai, Emma sentiu a de castigar o ultraje sofrido por isso. Não podia deixar de matá-lo, depois dessa minuciosa desonra. Tampouco tinha tempo a perder com teatralidades. Sentada, tímida, pediu des¬culpas a Loewenthal, invocou (à maneira de delatora) as obrigações da lealdade, pronun¬ciou alguns nomes, deu a entender outros e calou-se como se o medo a vencesse. Conse¬guiu que Loewenthal saísse para buscar um copo d’água. Quando ele, incrédulo de tal agitação, mas indulgente, voltou da sala de jantar, Emma já tinha tirado da gaveta o pesado revólver. Apertou o gatilho duas vezes. O considerável corpo caiu como se os es¬tampidos e a fumaça o tivessem rompido, o copo se partiu, o rosto olhou-a com assombro e cólera, a boca injuriou-a em espanhol e em iídiche. Os palavrões não cessavam; Emma teve de fazer fogo outra vez. No pátio, o cachorro acorrentado pôs-se a ladrar, e uma efusão de sangue repentino brotou dos lábios obscenos e manchou a barba e a roupa. Emma iniciou a acusação que tinha preparada (”Vinguei meu pai e não me poderão castigar…”), mas não a concluiu, porque o senhor Loewenthal já estava morto. Não soube nunca se ele chegou a compreender.

Os tensos latidos lembraram que ela não podia, ainda, descansar. Desordenou o divã, desabotoou o paletó do cadáver, tirou-lhe os óculos salpicados e deixou-os sobre o fichário. Em seguida, pegou o telefone e repetiu o que tantas vezes repetiria, com essas e com outras palavras: “Aconteceu uma coisa inacreditável. O senhor Loewenthal me fez vir com o pretexto da greve… Abusou de mim, eu o matei”

A história era inacreditável, de fato, mas se impôs a todos, pois substancialmente era certa. Verdadeiro era o tom de Emma Zunz, verdadeiro o pudor, verdadeiro o ódio. Verdadeiro também era o ultraje que padecera; só eram falsas as circunstâncias, a hora e um ou dois nomes próprios.





Tradução de Flávio José Cardozo

ESTADO DE ACEPCIÓN Gaza.

(de origen y fin incierto).





uno. femenino.

Nudo en llanto, desatado

en el extremo. Obligado a doblarse,

a des-ser, mordaza en sangre.

Sirve para enganchar o ceñir

el cebo de Occidente,

una carnada de rabia,

la espada de Israel



y suspenderlas luego desde ninguna parte.





dos. femenino.

Circundar el alambre,

abrirse las manos, caminar

el polvo hasta alcanzar

el templo o despacho



o como se llame

el lugar donde el Hombre del Lobby

aventa cenizas

de la Zarza Ardiente.

Enmarcar el albarán de su misil.





tres. femenino.

Pájaro negro que al surcar

la Franja esta noche

y me despierta

y me dice su graznido



que ha llovido metralla,

que a tanto el kilo de paloma blanca,

que mi silencio mata.





Quise llegar hasta tu puerta, Palestina.

A devolverte mi calma vengo.



Carmen Camacho