quinta-feira, 24 de abril de 2014

"Não existiriam Fleurys sem Suplicys"


O editorial da Gazeta do Povo desta segunda-feira, dia 21 de abril, retomou o debate sobre a retirada do busto do ex-reitor Flávio Suplicy de Lacerda pelos estudantes, no último dia 1.º de abril. Para o jornal, a atitude dos estudantes é “extemporânea” e “questionável em um cenário de estabilidade institucional como o que vivemos agora”. Será?
O próprio editorial comprova que não. Há um encontro interditado, ainda hoje, sobretudo por aqueles que apoiaram a ação dos militares em 1964, da nossa democracia com a verdade. A ditadura varreu seus crimes para debaixo do tapete, em especial com a lei da autoanistia de 1979, impedindo a condenação formal dos seus atos, bem como a elaboração desse período na memória coletiva nacional.
Mesmo que a historiografia tenha se debruçado exaustivamente sobre o tema, suas conclusões ainda ficam circunscritas aos muros das universidades. Prevalece no imaginário popular a tese, sempre reforçada pela grande imprensa, da “ditabranda”, na qual se admite ter ocorrido “alguns excessos”, mas o golpe é justificado pela defesa da pátria contra a ameaça dos comunistas “terroristas”.
É exatamente isso que o editorial da Gazeta ratifica quando afirma que alguns ícones da ditadura deixaram um “legado misto, de atos condenáveis e também louváveis”. É isso que está implícito quando dizem que Suplicy é mais uma “vítima”, assim como os ex-ditadores Costa e Silva, Castello Branco e Garrastazu Médici, daqueles que querem “remover da vista do cidadão os sinais da ditadura militar”.
Os editores da Gazeta acham compreensível que uma pessoa se sinta constrangida por morar em uma rua com o nome do delegado Sérgio Fleury, conhecido torturador da época da ditadura. Todavia, não veem nenhum constrangimento em se deparar todos os dias, na entrada da universidade, com o busto em homenagem ao ministro da Educação do governo do ex-ditador marechal Humberto Castello Branco. Curioso.
Suplicy foi o responsável pela primeira lei que extinguiu a UNE e proibiu as manifestações estudantis (Lei 4.464/64), dando início a uma longa batalha contra os jovens que lutavam pela democracia. Quando era ministro, foi ele quem operou os primeiros acordos brasileiros com a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), com o objetivo de desmontar o ensino público básico, que em duas décadas passou de referência para sinônimo de ineficiência. Também naquela época, escancarou a educação superior para o mercado privado, formatando o modelo que temos ainda hoje no país. Quando Suplicy saiu do ministério e voltou a ser reitor da UFPR, em 1966, criou o curso pago de Engenharia e estabeleceu a cobrança de anuidades aos calouros de 1968.
As medidas de Suplicy na UFPR somente foram revertidas após a ocupação da Reitoria pelos estudantes em maio daquele ano, assim como a ditadura somente não foi mais longe na eliminação das universidades públicas porque houve muita resistência nesse período. Justamente esses jovens, que lutaram em defesa da soberania nacional e da educação, foram taxados pelos agentes da ditadura como “subversivos” e “criminosos”.
O próprio Suplicy, após as manifestações dos estudantes em 1968, teve encontros reservados com o general José Campos de Aragão, comandante das Forças Armadas na região do Paraná e Santa Catarina, para pedir a intervenção militar na captura de lideranças estudantis, denominando-os de “bandidos”.
Ora, se é verdade que Fleury é uma figura deplorável na história brasileira, foi através das leis que cercearam as liberdades de organização e expressão, instituídas por políticos como Suplicy, que os jovens foram enquadrados pela Lei de Segurança Nacional e levados às suas salas de tortura. Cada qual ocupando o seu papel, tanto os agentes civis quanto os militares sustentaram a ditadura no Brasil.
Não existiria Fleury sem Suplicy.
A retirada do busto é a condenação de um sistema que Suplicy apoiou e ajudou a operar. Não é, portanto, uma ação de negação a eventuais realizações ou mesmo de uma avaliação de seu caráter – como mau ou bom –, como levam a crer os editores da Gazeta quando retomam os argumentos falaciosos do atual reitor, Zaki Akel, ou diferenciam Suplicy de Fleury. Não tem nada a ver com essa “fulanização”. A ação dos estudantes faz parte de uma disputa, bem atual, para revelar a verdade que ainda está soterrada e silenciada por detrás desses monumentos.

André Machado, historiador formado pela UFPR e mestre pela UTFPR, é secretário de Imprensa do Sindicato dos Bancários de Curitiba e suplente de vereador em Curitiba pelo PT. Ana Lúcia Canetti é psicóloga formada pela UFPR e mestre pela UFSC.

Fonte :Gazeta do Povo . 24042014