sábado, 13 de abril de 2019

JULIAN ASSANGE É O PRIMEIRO GEEK CAÇADO GLOBALMENTE:



Finalmente conseguiram prender Julian Assange. Reproduzo, sem tirar nem pôr, o texto que escrevi em 2010, n'O Biscoito Fino e a Massa, quando começaram a caçá-lo.



 pela superpotência militar, por seus estados satélite e pelas principais polícias do mundo. É um australiano cuja atividade na internet catupultou-o de volta à vida real com outra cidadania, a de uma espécie de palestino sem passaporte ou entrada em nenhum lugar. Ele não é o primeiro a ser caçado pelo poder por suas atividades na rede, mas é o primeiro a sofrê-lo de um jeito tentacular, planetário e inescapável. 

Enquanto que os blogueiros censurados do Irã seriam recebidos como heróis nos EUA para o inevitável espetáculo de propaganda, Assange teve todos os seus direitos mais elementares suspensos globalmente, de tal forma que tornou-se o sujeito mundialmente inospedável, o primeiro, salvo engano, a experimentar essa condição só por ter feito algo na internet. Acrescenta mais ironia, note-se, o fato de que ele fez o mais simples que se pode fazer na rede: publicar arquivos .txt, palavras, puro texto, telegramas que ele não obteve, lembremos, de forma ilegal.

ASSANGE É O CRIMINOSO SEM CRIME. Ao longo dos dias que antecederam sua entrega à polícia britânica, os aparatos estatal-político-militar-jurídico dos EUA e estados satélite batiam cabeças, procurando algo de que Assange pudesse ser acusado. Se os telegramas foram vazados por outrem, se tudo o que faz o Wikileaks é publicar, se está garantido o sigilo da fonte e se os documentos são de evidente interesse público, a única punição passível, por traição, espionagem ou coisa mais leve que fosse, caberia exclusivamente a quem vazou. O Wikileaks só publica. Ele se apropria do que a digitalização torna possível, a reprodutibilidade infinita dos arquivos, e do que a internet torna possível, a circulação global da hospedagem dessas reproduções. Atuando de forma estritamente legal, ele testa o limite da liberdade de expressão da democracia moderna com a publicação de segredos desconfortáveis para o poder. Nesse teste, os EUA (Departamento de Estado, Justiça, Democratas, Republicanos, grande mídia, senso comum) deixaram claro: não se aplica a Primeira Emenda, liberdade de expressão ou coisa que o valha. Uniram-se todos, como em 2003 contra as “armas de destruição em massa” do Iraque. Foi cerco e caça geral a Assange, implacável.

O WIKILEAKS É UM RELATO DE INÉDITA HIBRIDEZ, para o qual ainda não há gênero. Leva algo de todos: épica, ficção científica, policial, novela bizantina, tragédia, farsa e comédia, pelo menos. Quem vem acompanhando a história saberá da pitada de cada uma dessas formas literárias na sua composição. O que me chama a atenção no relato é que lhe falta a característica essencial de um desses gêneros: é um policial sem crime, uma ficção científica sem tecnologia futura, uma novela bizantina sem peregrinação, comédia sem final feliz, tragédia sem herói de estatura trágica, épica sem batalha, farsa sem a mínima graça. Kafka e Orwell, tão diferentes entre si, talvez sejam os dois melhores modelos literários para entender o Wikileaks.

Como em Kafka, o crime de Assange não é uma entidade com existência positiva, para a qual você possa apontar. Assange é um personagem que vem direto d’O Processo, romance no qual K. será sempre culpado por uma razão das mais simples: SEU CRIME É NÃO LEMBRAR-SE DE QUAL FOI O SEU CRIME. Essa é a fórmula genial que encontra Kafka para instalar a culpa de K. como inescapável: o processo se instala contra a memória.

O Advogado-Geral da União de Obama, que aceitou não levar à Justiça um núcleo que durante o governo Bush planejou ilegalmente bombardeios a populações de milhões, levou à morte centenas de milhares, torturou milhares, esse mesmo Advogado-Geral que topou esquecer-se desses singelos crimes e não processá-los, peregrinava pateticamente em busca de uma lei, um farrapo de artigo em algum lugar que lhe permitisse processar Julian Assange. O melhor que conseguiram foi um apelo ao Ato de Espionagem de 1917, feito em época de guerra global declarada (coisa em que os EUA, evidentemente, não estão) e já detonado várias vezes pela Suprema Corte, mais ilustremente no caso Watergate.

De 2010, quando escrevi as linhas acima, a 2019, em que as republico, algo curioso aconteceu. Assange agora vai preso pelo crime de apropriar-se de informação que é ao mesmo tempo secreta e de interesse cidadão e torná-la pública de verdade, de graça, para todos. Enquanto isso, escrevemos em uma plataforma, o Facebook, que consiste em tomar dados pessoais que são privados, não são de interresse cidadão, e torná-los públicos para alguns CNPJs, mediante dinheiro.

O fundador do Wikileaks vai para a cadeia e o fundador do Facebook habita as capas de Time e cia. como homem do ano, da década, do século.

Aí ele pensou: a vida não tem sentido. Aí ela sorriu. Aí ele pensou: mas vai que de repente tem...

Otto Leopoldo Winck


Não se submeter




VLADIMIR SAFATLE

"Quem controla o passado, controla o futuro?" Esta frase de "1984", de George Orwell, descreve bem um dos fundamentos do Estado autoritário.

Pois, no autoritarismo, trata-se sempre de compreender o passado como objeto de controle do Estado. Seus ocupantes vestem as roupas de historiadores, apagam mais uma vez o sangue dos mortos, profanam suas sepulturas, negam compulsivamente as violências que o poder praticou. Depois disso, eles criam relações negadas por todas as testemunhas, por todos os historiadores reais, na esperança de que um delírio repetido infinitamente possa se transformar em realidade.

Nesta semana, descobrimos que o senhor que ocupa a cadeira de ministro da Educação está disposto a literalmente reescrever os livros de história fornecidos aos nossos alunos, apagando o golpe de 1964 e a ditadura.

No romance de Orwell, havia um Ministério da Verdade responsável por reescrever os jornais do passado e apagar notícias a fim de adequar o que ocorreu aos desejos, sempre cambiantes, do poder em curso. Sugiro então que esse desgoverno seja honesto ao menos uma vez e troque o nome do Ministério da Educação para aquilo que ele realmente é — a saber, o Ministério da Verdade (que é conveniente ao poder).

O problema são os números. Segundo pesquisa Ibope realizada em março de 1964, 59% da população era a favor das medidas anunciadas por Jango no famoso comício da Central do Brasil. Na mesma época, 49,8% admitiam votar em Jango caso ele pudesse concorrer à próxima eleição. Por fim, outra pesquisa mostrava que seu governo era considerado ótimo por 15%, bom por 30%, regular por 24% e ruim por apenas por 16%. Isso depois de anos de tentativas de desestabilizá-lo.

Onde estava então o "clamor" do povo contra um governo eleito e suas medidas? Que tal ensinar aos nossos alunos esses números e deixá-los tirar suas próprias conclusões sobre o que ocorreu?

Mas talvez esteja na hora de tirar as conclusões de todas as consequências da exposição do verdadeiro núcleo autoritário deste governo. Pois vale lembrar que, mesmo em um democracia liberal, a legitimidade de um governo não vem do fato de ele ter ganho uma eleição.

Os nazistas também venceram as eleições e começaram por constituir legalmente governos de coalização. Isso serve para nos lembrar que a legitimidade vem de outro lugar: do fato de se mostrar capaz de ser o guardião do exercício do dissenso. A primeira função de um governo é garantir que o dissenso opere.

No entanto, um governo que nega golpes de Estado em seu próprio país e que afirma que um regime que prendeu arbitrariamente, assassinou, estuprou, ocultou cadáveres, censurou, exilou, perseguiu seus opositores é um regime "normal" está a dizer que ele também pode fazer o mesmo.

Afinal, se o golpe não foi golpe, se a ditadura não foi ditadura, por que o governo atual também não poderia dar golpes que não são golpes e agir como ditaduras que não são mesmo ditaduras?

Ao fazer isso, ele legitima quem clama por golpes na rua e gostaria de abraçar as mesmas ações que caracterizam uma ditadura, além de sinalizar à sociedade que não vê problema algum em fazer o mesmo caso julgue necessário.

O fato de Bolsonaro ter sido deputado por várias legislaturas não implica comprometimento com os limites da "democracia parlamentar", mas diz simplesmente que ele não se sentia forte o suficiente para operar da maneira que sempre sonhou.

Ou seja, uma sociedade que permite um governo destes cava sua própria cova. Este governo já saiu de qualquer limiar do que mesmo uma democracia liberal aceitaria. Ele já não tem mais legitimidade alguma para continuar a ocupar os lugares do poder. É composto por quem aplaudiu quando éramos exilados, assassinados e torturados. Eles farão o mesmo novamente, assim que a oportunidade lhes for dada.

Sendo assim, não há razão alguma para reconhecê-lo nem para obedecê-lo. A sociedade brasileira deve desobedecer sistematicamente a este governo até que ele caia. Ela não deve reconhecer o poder de quem dá provas sistemáticas de que desrespeita o comprometimento elementar contra o arbítrio.

Ao insultar a história brasileira, este governo quebra qualquer pacto possível.

Vladimir Safatle
Professor de filosofia da USP, autor de “O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo”.

FSP 5.04.2019