sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Luís Carlos Merten O Estado de São Paulo

PRETO NO BRANCO – A associação com o nazismo é imediata, mesmo que o filme seja ambientado às vésperas da 1.ª Guerra e não da 2.ª: ideia foi ampliar a análise, em vez de limitar a um só fato histórico




Michael Haneke não anda muito receptivo para comentar a indicação de seu filme A Fita Branca, que estreia hoje no Brasil, para concorrer ao Oscar. As perguntas foram enviadas à produção, para complementar a entrevista feita em Cannes no ano passado, mas a própria assessoria avisa: “Ele está cansado.” Talvez não seja só isso. A Palma de Ouro e a dupla premiação – melhor filme e diretor – pela Academia Europeia de Cinema já referendam A Fita Branca. A Academia de Hollywood apenas confirma as possibilidades de Haneke ao indicá-lo para o Oscar de melhor filme estrangeiro. Para muitos críticos, A Fita é o filme com mais chances. O quadro poderá mudar, como sempre ocorre no Oscar, mas as bolsas de apostas estão com Haneke. Sobre o filme, leiam o que disse o diretor, em Cannes, às vésperas de receber a Palma de Ouro de 2009, que lhe foi entregue pela própria presidente do júri, a atriz – hanekiana – Isabelle Huppert.

Seus filmes sempre tratam da violência nas relações interpessoais e sociais, mas por que viajar agora ao passado, para mostrar a violência numa pequena cidade da Alemanha no começo do século passado?

Existem muitos filmes sobre a Alemanha durante o nazismo, mas quase nunca se fala no período anterior. Queria justamente tratar dessa fase ignorada, mas que é fundamental. Após a derrota na 1.ª Guerra, foi ali que a Alemanha gestou o nazismo e (Adolf) Hitler apenas se beneficiou das circunstâncias da época. Como você disse, meus filmes mostram a violência, mas não é porque eu goste disso ou tenha prazer. Como cria da civilização judaico-cristã, eu também carrego a minha culpa, e não é porque seja pessoalmente malvado e precise de redenção. Queria muito falar sobre o pré-nazismo e como uma sociedade repressora deformou a mentalidade de uma geração que aderiu sem autocrítica aos ideais de Hitler. Mas a ideia, falando de crianças, nunca foi fazer só um filme sobre as origens do nazismo. Gostaria que as pessoas vissem A Fita Branca como um filme sobre a perversão dos ideais. Uma educação muito rígida leva à deformação e ao fanatismo. Temos aí a origem não só do nazismo, mas do terrorismo, que tanto aflige o mundo moderno.

Você chegou a considerar outro título, A Mão Direita de Deus…

A Fita Branca evoca um ideal de pureza, mas A Mão Direita… é como essas crianças se achavam. Elas foram educadas assim, incorporaram todas as leis, foram preparadas para vigiar e punir. Não há nada pior que isso. É a origem do fundamentalismo.

Como se documentou para o filme?

Não é muito difícil. Hoje em dia, com as ferramentas da internet, você pode pesquisar na rede sobre não importa o quê. Naturalmente que é arriscado acreditar em tudo que se lê, mas com acuidade é possível descobrir coisas muito interessantes. A pesquisa foi mais extensa. Entrevistei historiadores, psicanalistas, li livros. O filme não pretende ser uma leitura psicanalítica sobre a origem do nazismo, mas o mito do pai autoritário o percorre, com certeza.

É seu filme mais bonito, do ponto de vista plástico. Por que escolheu o preto e branco?

Queria fazer um filme em preto e branco e este me pareceu perfeito, por vários motivos. Como você diz, o preto e branco é muito bonito, rigoroso, não distrai o olho, mas tem mais. Minhas fontes de pesquisa incluíram fotos da época e jornais. Todo esse material era em preto e branco e eu podia ver como a tessitura da imagem colava à gravidade do material. A Fita Branca não teria sido a mesma coisa, se fosse filmado em cores.

Como você escolheu os atores, as crianças especialmente?

Foi o trabalho de casting mais extenso da minha carreira. Na realidade, passei mais de seis meses só entrevistando crianças. O primeiro critério foi buscar atores, infantis e adultos, que se assemelhassem, fisicamente, às pessoas das fotos que serviam como fontes de pesquisas. Mas, naturalmente, só a semelhança não basta. É preciso testar a sensibilidade, o talento. Testamos milhares de crianças até chegar à seleção. Para os papeis dos adultos, escolhi atores com quem já havia trabalhado ou cujo trabalho conhecia. E mesmo assim foi preciso integrar os profissionais e os não profissionais. Foi um dos desafios de A Fita Branca, mas creio que o resultado superou a expectativa.



Crítica de A Fita Branca

Luiz Zanin Oricchio – O Estado SP
Com A Fita Branca, Michael Haneke nos convida a pensar na eficácia da alegoria em matéria de arte. O processo consiste em apresentar um objeto ou conjunto de fatos para, na verdade, simbolizar outra coisa. É uma maneira indireta de pensar, muito útil sob regimes fortes, quando a “mensagem” explícita pode custar a pele ao seu autor. Filmes alegóricos pulularam no Brasil da ditadura, como também em outros países que viveram períodos obscuros. O surpreendente é que, muitas vezes, esse falar enviesado surte mais efeito do que se tudo fosse dito às claras. O que levou Jorge Luis Borges a dizer que a censura era útil porque obrigava o artista a apurar o estilo. Provocação, claro.

É interessante ter isso em mente quando se for analisar este belo filme. Isso porque os acontecimentos descritos em preto e branco impecável e técnica narrativa rigorosa têm sido associados com demasiada facilidade à ascensão do nazismo. Na trama, há um barão poderoso e seus empregados submissos ao extremo, um médico quase tão autoritário quando o proprietário de terras, uma parteira e seu filho doente, o pastor protestante de moral rígida, crimes, muito falatório, e uma população infantil cheia de tédio e rancor.

A Fita Branca parece mesmo descrever esse caldo de cultura propício a regimes fortes. A associação com o nazismo é imediata, mesmo que o filme seja ambientado às vésperas da 1ª Guerra Mundial e não da 2ª. O que talvez seja uma sugestão para ampliar a análise, expandi-la ao invés de circunscrevê-la a um fato histórico determinado. Mesmo porque ninguém até hoje foi capaz de circunscrever “causas” da ascensão de Hitler, origem da maior tragédia do século passado. Essas causas são múltiplas e, entre elas, provavelmente, estaria uma determinada disposição psicológica do povo alemão naquele período específico.

Mas é possível que, ao tirar os fatos que narra da vizinhança imediata da ascensão de Hitler, Haneke tenha em mente buscar as raízes não do nazismo apenas, mas de outras formas de totalitarismo. Nesse formato geral, entrariam manifestações do mesmo fenômeno do qual o nazismo foi protótipo. Nazismo de um lado, stalinismo de outro, e também formas arcaicas e contemporâneas de intolerância, civil ou religiosa ? todas elas bebendo na fonte comum do ressentimento, manipulado pelo dono do poder na ocasião.

Com essa visão ampliada em mente, o filme também cresce. Não mais o consideramos como alusão a um fato datado e que, por terrível que tenha sido, com pouca chance histórica de se repetir. Ele nos serve também como lembrete e dica sobre o presente. Ainda mais que esse presente se mostra tão contraditório quanto o de períodos turvos do passado. Por um lado, temos a ilusão de uma sociedade livre, permeável e mesmo permissiva. Porosa por todos os meios, incluindo a moderna tecnologia de informação. Por outro lado, porém, essa mesma sociedade “aberta” apresenta uma propensão ao controle social (em nome da segurança) ao moralismo e à intriga que nada fica a dever ao ambiente do vilarejo alemão de começo do século 20 descrito por Haneke em A Fita Branca.