domingo, 24 de agosto de 2014

Magma

Saudade
Saudade de tudo!...
Saudade, essencial e orgânica,
de horas passadas,
que eu podia viver e não vivi!...
Saudade de gente que não conheço,
de amigos nascidos noutras terras,
de almas órfãs e irmãs,
de minha gente dispersa,
que talvez até hoje ainda espere por mim...
Saudade triste do passado,
saudade gloriosa do futuro,
saudade de todos os presentes
vividos fora de mim!...
Pressa!...
Ânsia voraz de me fazer em muitos,
fome angustiosa da fusão de tudo
sede da volta final
da grande experiência:
uma só alma em um só corpo,
uma só alma-corpo,
um só,
um!...
Como quem fecha numa gota
o Oceano
afogado no fundo de si mesmo...

- João Guimarães Rosa, em 'Magma'.

Os signos em rotação

"Os signos em rotação
A história da poesia moderna é a história de uma desmedida. Todos os seus grandes protagonistas, depois de desenhar um sinal breve e enigmático, se estatelaram contra a rocha. O astro negro de Lautréamont rege o destino dos nossos mais altos poetas. Mas esse século e meio foi tão rico em infortúnios como em obras: o fracasso da aventura poética é o lado opaco da esfera; o outro feito é da luz dos poemas modernos. Assim, a indagação sobre as possibilidades de encarnação da poesia não é uma pergunta sobre o poema, e sim sobre a história; será quimérico pensar numa sociedade que reconcilie o poema e o ato, que seja palavra viva e palavra vivida, criação da comunidade e comunidade criadora?"

[Octavio Paz. “O arco e a lira”. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. São Paulo: Cosac Naify, 2012. Pg. 259/ Imagem: Tumblr, sem referências na pesquisa de imagens]

O arco e a lira

"As imagens do poeta têm sentido em diversos níveis. Em primeiro lugar, possuem autenticidade: o poeta as viu ou ouviu, são uma expressão genuína de sua visão e experiência do mundo. Trata-se, então, de uma verdade de ordem psicológica, que evidentemente nada tem a ver com o problema que nos preocupa. Em segundo lugar, essas imagens constituem uma realidade objetiva, válida em si mesma: são obras. Uma paisagem de Góngora não é o mesmo que uma paisagem natural, mas ambas têm realidade e consistência, embora vivam em esferas diferentes. São duas ordens de realidade paralelas e autônomas. Nesse caso, o poeta faz algo mais que dizer a verdade; ele cria realidades possuidoras de uma verdade: as da sua própria existência. As imagens poéticas têm sua própria lógica e ninguém se escandaliza se o poeta diz que a água é cristal ou que “el pirú es primo del sauce” (Carlos Pellicer). Mas essa verdade estética da imagem só vale dentro do seu próprio universo. Por fim, o poeta afirma que as suas imagens nos dizem algo sobre o mundo e sobre nós mesmos e que esse algo, embora pareça um disparate, nos revela o que somos de verdade. Terá algum fundamento objetivo essa pretensão das imagens poéticas? O aparente contrassenso ou sem-sentido do dizer poético conterá algum sentido?"

[Octavio Paz. “O arco e a lira”. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. São Paulo: Cosac Naify, 2012. Pgs. 113 e 114 /

Solo de laúd


Aburrida de hablar siempre de Yo
quiero ahora hablar un poco de Ud.
Ud.
que debería colgar su tristeza en el ropero
y entender que la poesía no se hace en el escritorio
Ud.
que necesita reparar su cerebro apolillado
por donde se cuela el mar y sale
a Ud. le digo
con su cuerpo no superado de coleóptero en otoño
a Ud. señor
que no lo soporta su familia
y sin embargo
es un rey en los burdeles
Ud. y yo señora
mezcladas en este ruido del siglo veinte
que bosteza con el vientre repleto
despertando de su ebriedad de dos guerras
Ud. que no se sacia todavía
que no sabe ni llover dentro de la lluvia
amárrese por favor mis poemas inútiles al cuello
y húndase conmigo
en el sueño que tenga más a mano
trágueme a mí que moriré cantando
este viejo mundo que pasará de moda.

RAQUEL JODOROWSKY (CHILE)