sábado, 5 de janeiro de 2013



No teu amor por mim há uma rua que começa
Nem árvores nem casas existiam
antes que tu tivesses palavras
e todo eu fosse um coração para elas
Invento-te e o céu azula-se sobre esta
triste condição de ter de receber
dos choupos onde cantam
os impossíveis pássaros
a nova primavera
Tocam sinos e levantam vôo
todos os cuidados
Ó meu amor, nem minha mãe
tinha assim um regaço
como este dia tem
E eu chego e sento-me ao lado
da primavera

(Ruy Belo)

Identidade





Preciso ser um outro
Para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que desgasta

Sou pólen sem inseto

Sou areia sustentando
O sexo das árvores

Existo onde me desconheço
Aguardando pelo meu passado
Ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
No mundo por que luto nasço.

MIA COUTO
No livro “Raiz de Orvalho e Outros Poemas”
fonte : Tse-Tse

Terra que diz




 George Carver sonhou com Deus.
- Peça o que quiser - Deus oferecia.
Carver pediu que lhe revelasse os segredos do amendoim.
- Pergunte ao amendoim - desse Deus.
... George, filho de escravos, dedicou a vida à ressurreição de terras assassinadas pelas plantações escravistas.
Em seu laboratório, que parecia cozinha de alquimista, elaborou centenas de produtos derivados do amendoim e da batata-doce: óleo, queijo, manteiga, molhos, maionese, sabões, colorantes, tintas, melaço, colas, talco...
- Quem conta são as plantas - explicava. - Elas oferecem tudo a quem souber ouvir o que dizem.
Quando morreu, no dia de hoje de 1943, tinha mais de oitenta anos e continuava divulgando receitas e conselhos, e dava aulas numa universidade estranha, que tinha sido a primeira em admitir estudantes negros no Alabama.

 Galeano - 5 de janeiro

O Sol Nascerá



A sorrir
Eu pretendo levar a vida
Pois chorando
Eu vi a mocidade
Perdida...

Fim da tempestade
O sol nascerá
Fim desta saudade
Hei de ter outro alguém para amar...

A sorrir
Eu pretendo levar a vida
Pois chorando
Eu vi a mocidade
Perdida...

“O Sol Nascerá” (1974), samba de Cartola (1908–1980).



nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além
de qualquer experiência, teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto

teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a primavera abre
(tocando sutilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa

ou se quiseres me ver fechado, eu e
minha vida nos fecharemos belamente, de repente,
assim como o coração desta flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em toda a parte;

nada que eu possa perceber neste universo iguala
o poder de tua imensa fragilidade: cuja textura
compele-me com a cor de seus continentes,
restituindo a morte e o sempre cada vez que respira

(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre; só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas

e.e. cummings

Tradução: Augusto de Campos