Paul Krugman : Invasão do Iraque não foi avaliação errada
foi crime premeditado .
Folha de São Paulo
Bruno P. W. Reis________É incrível como é raro ver essa
obviedade dita com todas as letras na imprensa, seja a americana, seja a de
qualquer parte. E é digno de nota que o próprio Paul Krugman hesite ao
especular sobre as razões do crime, em vez de ir logo para aquilo que seria
intuitivamente óbvio em qualquer lugar: corrupção.
Fabrício Mendes Fialho_____ Veicular isso em época
pré-eleitoral manda certamente esse sinal; mas não é nada que já não se saiba
há uns bons anos...
Bruno P. W. Reis--------Conversa fiada, Luciano. As
alegações em favor da invasão eram ostensivamente fraudulentas, e isso era
visível desde os debates na ONU, em busca de autorização. Depois (bem depois)
muito mais veio à baila na própria imprensa mainstream americana, como as
pressões sobre o pessoal de inteligência para entregar os relatórios que o
Pentágono queria. Só que, apesar disso tudo, eles não costumam extrair as
conclusões óbvias - e continuam a falar rotineiramente sobre o "erro"
que foi a invasão. A tal da "Guerra ao Terror" é uma mina imbatível
para produzir bilionários rent-seekers.
José Roberto Bonifácio __________Guerra de independencia
tambem teve episodio "false flag". Longa tradição belicista iniciada
com a Boston Tea Party...
Bruno P. W. Reis________________Mas, mesmo concedendo o benefício da dúvida de que as outras fraudes
sejam igualmente existentes, todas essas coisas faziam sentido do ponto de
vista dos interesses geopolíticos dos Estados Unidos, ou pelo menos daquilo que
a "sabedoria convencional" da época acreditava ser esses interesses
(essa ressalva é só pra incluir o imenso desastre do Vietnã). A invasão do
Iraque, não. É um ato de predação política, que compromete a segurança e os
interesses americanos e tira partido do trauma do 11/9 para enriquecer algumas
pessoas. É triste, mas é simples assim.
Estou me dando a pachorra de explicar o óbvio só porque o
assunto é importante. Os Estados Unidos saíram da depressão com a Segunda
Guerra, e ainda assim hesitaram dois anos antes de entrar. A Guerra do Iraque
comprometeu a economia, a segurança e a posição geopolítica americana (pra não
falar das vidas, que estou cinicamente aceitando tratar como detalhe
irrelevante aqui), e ainda assim foi vendida com alegações ostensivamente
implausíveis desde o início, sob o silêncio acovardado da "livre"
imprensa americana, quando o país já estava engajado no Afeganistão. Um episódio
deplorável. Sim, o ponto mais baixo da longa história da atuação militar
americana no exterior.
Andre Tavares___________A melhor coisa que aconteceu para os
iraquianos foi a invasão do Iraque e a remoção do partido Baath e de Sadam. O
problema foi a leniência da administração Obama com os movimentos insurgentes
radicais xiitas e sunitas - grupos financiados pelo Irã de um lado, e pela
Al-Qaeda, de outro. O ISIS pode ser uma boa coisa no fim das contas: os
cristãos iraquianos (o Patriarcado da Babilônia é a igreja mais antiga da
história) e os curdos estão formando batalhões e lutando por sua liberdade sem
ajuda das potências e sem ter que esperar pelo jogo de interesses no tabuleiro
internacional. É engraçado ver a posição da Turquia: está pressionada pelo
ISIS, mas não pode ajudar por medo dos curdos em seu território verem nisso uma
oportunidade de se juntarem aos curdos do outro lado da fronteira e corrigirem
com as próprias mãos um erro histórico e construírem o Curdistão. O que seria,
aliás, ótimo - são os verdadeiros muçulmanos moderados. Krugman, um esquerdista
safado, está botando na conta da administração Bush, os erros de Obama e de
Madame Satã, digo, Hillary Clinton - a mocreia sabia de Benghazi com 10 dias de
antecedência.
Bruno P. W. Reis Fácil demais, Andre, ajuizar a milhares de
quilômetros de distância o que terá sido ou não melhor para o iraquianos. O que
se sabe é que, além dos 200 mil mortos diretamente em combate, estimam 500 mil
as mortes indiretas. Que o ISIS possa ser "uma boa coisa no fim das
contas" faz caso omisso do simples horror dos assassinatos em larga escala
conduzidos contra populações civis de cidades inteiras há poucos meses.
Andre Tavares_________Bruno, é fácil pra mim, mas difícil e
muito consciente pro Krugman, né? O ISIS ser uma boa coisa foi uma ironia. Pode
não ter ficado claro, mas foi. O que quero dizer é que o que deveria ter sido
feito até o final, não foi. Os EUA sempre se sabotam no final - na Segunda
Guerra, no Vietnam, na Guerra do Golfo, e agora. A segunda administração Bush
foi um desastre, e a pior consequência foi a eleição do Obama. Deixemos pra lá
a questão se Obama é ou não agente islâmico, o fato é que ele é fraco, leniente
e inconsequente com o Oriente Médio. Precisou tomar um puxão de orelha em casa
dada pelo Netanyahu. Voltando ao ISIS, como os EUA nem ninguém sequer entendem
o que é o ISIS (é, na verdade, a consequência da Primavera Árabe, patrocinada
pelo Obama e a esquerda intelectual europeia, que adora o nacionalismo de
esquerda árabe, desde a década de 40), e não entraram em combate contra a
ameaça que constitui, salvo a Jordânia, foram os nativos que tiveram que pegar
em armas. O melhor que pode acontecer disso, são nações ou territórios
autônomos surgirem - de curdos e cristãos, principalmente.
Quem é omisso com o que faz o ISIS não sou eu - é todo
mundo. Armaram o circo, um bando de covardes sem culhões, e outro bando de
covardes com culhões (pra fazer atrocidades) estão fazendo o que estão
fazendo...
Bruno P. W. Reis_________À exceção da dupla Nixon-Kissinger,
é provável que os EUA nunca tenham tido, antes ou depois, uma aproximação
estratégica sofisticadamente articulada para a política externa, para além de
certa retórica embromatória para consumo interno. Obama não é exceção, mas o
inevitável "restraint" que ele teve de exercer no pós-Bush acaba
tornando ele alvo fácil da retórica mais maniqueísta dos falcões. Duvido que eu
te acompanhe na singeleza do diagnóstico da auto-sabotagem no final. Mas essa
propensão a não se engajar até as últimas consequências será sempre favorecida
se houver pressa em entrar numa guerra evitável no início. A fragilidade
política da posição inicial certamente comprometerá a disposição em se pagar um
preço alto adiante. E é sensível que a Casa Branca de Bush foi longe demais na
sua determinação em contratar guerras. Os presidentes que vierem depois acabam
tendo sua posição enfraquecida também por isso.
Quanto à primavera árabe, com todos os desastres que se
seguirem, deve ser tida permanentemente no horizonte das possibilidades. A
política de simplesmente manter um ditador de estimação em posições convenienetes
traz no horizonte a sua contestação, cedo ou tarde. É bom ter uma tática
construtiva pra se lidar com isso. Os americanos se deixaram surpreender e não
souberam o que fazer - seja com os amigos, seja com os inimigos.
Andre Tavares ___________________Aliás, por que ninguém diz
o óbvio ululante sobre o Obama?
Bruno P. W. Reis__________________"Não alimente o seu
troll." Hoje cometi o clássico erro de ignorar esse sábio conselho da vida
em internet ao interagir com meu nobre Luciano Dias. Eis o resultado. Retórica
por retórica, transcrevo abaixo algo que já tinha circulado antes, como resumo
de meu ponto de vista. Feito isso, I rest my case.
A invasão do Iraque foi (e ainda é) uma catástrofe quase sob
qualquer ponto de vista - incluindo os interesses estratégicos dos Estados
Unidos na região e no mundo. A lista das razões é interminável, nem sei por
onde começar.
1. A invasão desestabilizou, talvez irreversivelmente, um
país-chave no mapa geopolítico do já explosivo Oriente Médio, posicionado
exatamente entre as duas potências locais rivais, Irã e Arábia Saudita. Ao
remover um governante sunita e inimigo do Irã de um país de maioria xiita,
reforçou drasticamente a influência do Irã na região (não chego a achar isso
ruim, mas o aliado americano é a Arábia Saudita...).
2. O Iraque não tinha nada a ver com o 9/11, nem abrigava
qualquer célula operacional da Al-Qaeda. Estava claríssimo, desde antes da
invasão, que ele não tinha as tais "armas de destruição em massa"
alegadas. Isso era fácil de adivinhar porque em 1991, depois de dez anos
adotado como queridinho do Ocidente por guerrear com o Irã, Saddam Hussein foi
varrido do Kuwait em semanas; como é que em 2003, depois de dez anos sob
bloqueio aéreo e comercial, ele ia se tornar uma ameaça crível?
3. Neste momento, porém, metade do território iraquiano é
controlado (com apoio do exército sunita treinado e armado pelos americanos)
pelos lunáticos genocidas do ISIS, que se beneficiaram também do apoio
ocidental à rebelião na Síria. Perto do poder de fogo e das ambições políticas
do ISIS, a al-Qaeda parece uma célula de adolescentes anarquistas - por maior
que seja o gosto deles por ações espetaculares.
4. A guerra ao terror, em si mesma, na sua natureza de
guerra sem quartel ou território contra um inimigo potencial e, portanto,
indefinidamente temível, já é um monumento ao desperdício de recursos - e
custou até hoje a cifra quase inimaginável de cerca de US$ 5 trilhões. Quase a
metade disso, porém, foi consumido pela invasão do Iraque sozinha, que já
custou aos americanos mais de US$ 2 trilhões. Além de prejudicar a ação no
Afeganistão (que se arrasta até hoje, e onde o Talibã permanece ativo e
poderoso), a aventura da guerra ao terror, principalmente no Iraque, produziu
danos palpáveis à economia dos Estados Unidos, com desdobramentos sensíveis
sobre o mundo todo.
5. A invasão do Iraque, anunciada unilateralmente à revelia
dos aliados europeus e depois perseguida com ostensivo desrespeito a decisão
contrária da ONU, desfez em um ano a rede quase universal de solidariedade aos
americanos que se formou após o 9/11. Foram perseguir sozinhos propósitos
unilaterais, comprometendo as redes de colaboração diplomática e de
inteligência, tão desejáveis para um combate eficaz a ações terroristas
internacionais.
6. Saldo humanitário: segundo o que se conseguiu apurar na
mídia, cerca de 200 mil iraquianos sofreram morte violenta como consequência
direta da guerra. A Universidade de Washington (em Seattle), porém, estima em
quase meio milhão o número de mortes, se incluirmos as mortes
"naturais" registradas em epidemias e na degradação das condições de
vida entre refugiados. Além disso, morreram cerca de 5 mil combatentes entre
americanos e seus aliados - número que sozinho, já supera a conta das vítimas
do 9/11.
Depois de tanto "esforço", porém, pelo menos
controlou-se o terrorismo? Quem dera: segundo a Universidade de Maryland, a
atividade terrorista é hoje aproximadamente 6 vezes maior que em 2001, no que
toca ao número de mortos: http://www.start.umd.edu/gtd/features/GTD-Data-Rivers.aspx
Eu costumo dizer para os meus alunos que, em análise
política, se alguém cometeu uma grande burrice, então é você que não está
entendendo. Na premissa caridosa de que eles sabiam o que estavam fazendo,
então sobra apenas a possibilidade de que pessoas suficientemente próximas dos
nichos decisórios nos Estados Unidos viram boas possibilidade de ir ganhar
dinheiro no Iraque, e então foram. E de fato ganharam-se fortunas na operação -
como já está abundantemente documentado na imprensa americana. Pra isso, não se
importaram de instrumentalizar o trauma dos cidadãos americanos e comprometer a
segurança dos próprios contribuintes que pagaram os impostos de onde saiu sua
fortuna.
Na minha cabeça, a invasão do Iraque em 2003 é o ponto mais
baixo da história dos Estados Unidos. Mais que a guerra com o México, mais que
a limpeza étnica feita com os cherokees na Geórgia, mais que o Vietnã, mais que
Hiroshima e Nagasaki. Os Estados Unidos têm metade do gasto em defesa do mundo.
Deveriam ter responsabilidades com todos nós, mas pelo menos têm
responsabilidade com seus eleitores. Em todos esses episódios horríveis, algum
argumento plausível (ainda que falso) poderia ser alegado estabelecendo o
vínculo com o interesse (pelo menos) dos eleitores americanos. Desta vez, nem isso.
Eu espero mais deles.