sábado, 2 de abril de 2016

"Somos todos passageiros de um trem suicida que se chama civilização capitalista moderna", argumenta Michael Löwy, citando Walter Benjamin.

A criminalização da resistência

A criminalização da resistência de apenas um dos lados dessa disputa mostra o quanto nosso sistema político é incapaz de entender o que é, de fato, uma democracia.
Chamar de chantagem toda forma de protesto com a qual não concordamos é, no mínimo, infantil.
A oposição não vai admitir, mas a quantidade de pessoas que têm ido às ruas para criticar a forma como está sendo conduzido o processo de impeachment (atenção, não confundir com ir às ruas para apoiar esse governo) foi maior que a esperada. À frente de muitas delas, está o MTST e a Frente Povo sem Medo, que se mantém bastante críticos ao governo.
A partir daí, a narrativa para a criminalização de movimentos sociais tem sido anabolizada na mídia, nas redes sociais, nos espaços políticos. Narrativas que querem inverter os sentidos das palavras e transformar resistência popular em ameaça à democracia e à governabilidade.
Guilherme Boulos é liderança do principal movimento social de massa deste país em termos de centralidade da pauta, capacidade de mobilização e visão de atuação hoje. Um movimento com uma agenda antiga, mas com uma equipe que sabe se comunicar e influenciar a disputa simbólica da narrativa, pela mídia, pelas redes sociais.
E vem exatamente do posicionamento crítico adotado contra a atual administração federal o respeito de vários setores da esquerda para com o movimento e com Boulos. Esse respeito e essa capacidade de mobilização, que consegue colocar dezenas de milhares de militantes nas ruas quando preciso, assusta muita gente. Que prefere ver ele preso do que articulando com outros movimentos ou em cima de um caminhão de som.
O pedido de investigação criminal de Guilherme Boulos é uma amostra do que acontecerá com parte da esquerda brasileira se o macarthismo à brasileira se instalar como ação sistemática de limpeza ideológica. Já estamos vendo, aqui e ali, a perseguição a quem usa roupas vermelhas e a agressão em espaços públicos contra quem defende determinado ponto de vista. Até o juramento de Hipócrates foi rasgado por médicos que acham normal não prestar atendimento a alguém que não compartilha da mesma opinião política que eles.
Daqui para a caça nas ruas, escolas e empresas é um pulo.
Apesar de conquistas sociais obtidas na última década, o governo não atendeu às pautas históricas propostas pelos movimentos sociais – o que, do meu ponto de vista, não seria nenhuma “revolução'', mas melhoraria a vida de milhões de brasileiros que se mantêm excluídos. Pelo contrário, em nome da “governabilidade'' fez alianças espúrias, apoiando forças econômicas e políticas que eram contrárias a esses interesses populares, ignorando o suporte oferecido por esses mesmos movimentos para um mandato que significasse uma mudança de paradigma.
E nada indica que, se sobreviver à convulsão, irá fazer a “guinada à esquerda'', mítico desejo da militância, que passa frio no barraco de lona na beira da rodovia, que convive com ratos em prédios ocupados em grandes cidades, que sente medo de ser despejado de sua terra tradicional, que vive as condições de trabalho precarizadas em nome do progresso.
Mas todos os movimentos sociais sabem o que é serem considerados criminosos simplesmente por lutarem pelos direitos que lhes são garantidos pela Constituição. Sabem o que é levar cacete por representar o que está em desacordo com a visão hegemônica de “progresso'' e crescimento econômico, seja no campo ou na cidade. E ainda guardam na memória as cicatrizes deixadas pelos anos de governo Fernando Henrique Cardoso, temendo que voltem a ser caçados dependendo de quem assuma o poder ou do clima político do país.
Você pode não gostar de Guilherme Boulos. Mas, se preza pela liberdade, deveria repudiar a sua criminalização e dos movimentos sociais populares, da mesma forma que deve ser repudiada a criminalização de qualquer liderança social, de direita ou esquerda.
Pois, hoje é com ele. Depois, com uns comunistas, sindicalistas, operários, jornalistas… Amanhã, quem sabe, se não vai ser com você?


(Leonardo Sakamoto -- http://jornalggn.com.br/…/a-hipocrisia-na-criminalizacao-de…)

Materialismo Dialético

"O marxismo-leninismo é uma doutrina monolítica, completa, na qual todas as partes — o comunismo científico, a economia política e a filosofia — se acham organicamente ligadas entre si. (...) O marxismo-leninismo ensina que, embora as leis objetivas da História determinem a atividade dos homens, não atuam por si mesmas, mas pressupõem a atividade dinâmica dos homens. A necessidade objetiva no desenvolvimento social não exclui, mas, ao contrário, pressupõe a participação criadora dos homens".

( Academia de Ciências da URSS)

"Mensagem Inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores"

Marx: 
19.03.2016

Operários,

É um fato assinalável que a miséria das massas operárias não tenha diminuído de 1848 a 1864; e, contudo, este período não tem rival quanto ao desenvolvimento da indústria e ao crescimento do comércio. Em 1850, um órgão moderado da classe média britânica, de informação superior à média, predizia que se as exportações e as importações da Inglaterra viessem a elevar-se 50 por cento, o pauperismo inglês cairia para zero. Infelizmente, em 7 de abril de 1864, o Chanceler do Tesouro Público [Chancellor of the Exchequer] deliciava a sua audiência parlamentar com a afirmação de que o comércio total de importação e exportação da Inglaterra se tinha elevado em 1863 “a 443 955 000 libras! soma assombrosa cerca de três vezes superior ao comércio da época comparativamente recente de 1843!”.

Apesar de tudo isto, foi eloquente acerca da “pobreza”. “Pensai”, exclamava ele, “nos que estão na fronteira dessa região”, nos “salários... não aumentados»; na “vida humana... que em nove casos sobre dez não é senão uma luta pela existência!” Não falou do povo da Irlanda, gradualmente substituído pela maquinaria no Norte e por pastagens de carneiros no Sul, ainda que mesmo os carneiros, nesse país infeliz, estejam a diminuir, é verdade que não a uma taxa tão rápida como os homens. Não repetiu o que tinha então acabado de ser denunciado, num súbito acesso de terror, pelos mais altos representantes dos dez mil da alta. Quando o pânico da garrotte alcançou um certo auge, a Câmara dos Lordes ordenou que se fizesse um inquérito e que se publicasse um relatório acerca da deportação e servidão penal. A verdade veio ao de cima no volumoso Livro Azul de 1863, e ficou provado por factos e números oficiais que os piores criminosos condenados, os forçados de Inglaterra e Escócia, trabalhavam muito menos arduamente e passavam de longe melhor do que os trabalhadores agrícolas da Inglaterra e da Escócia. Mas, isto não foi tudo. Quando, em consequência da Guerra Civil na América, os operários do Lancashire e do Cheshire foram lançados para as ruas, a mesma Câmara dos Lordes enviou para os distritos manufatureiros um médico encarregado de investigar qual a mais pequena quantidade possível de carbono e de nitrogénio a ser ministrada da forma mais barata e mais simples que, em média, pudesse apenas bastar para “prevenir doenças [causadas] pela fome”. O Dr. Smith, o delegado médico, averiguou que 28 000 grãos de carbono e 1330 grãos de nitrogénio eram o abono semanal que manteria um adulto médio... apenas acima do nível das doenças [causadas] pela fome e descobriu, além disso, que essa quantidade estava muito perto de coincidir com a alimentação escassa a que a pressão de uma miséria extrema tinha efetivamente reduzido os operários do algodão. Mas, vede agora! O mesmo sábio doutor foi, mais tarde, delegado de novo pelo alto funcionário médico do Conselho Privado[N5] para examinar a alimentação das classes trabalhadoras mais pobres. Os resultados das suas investigações estão contidos no Sixth Report on Public Health [Sexto Relatório sobre Saúde Pública] publicado por ordem do Parlamento no decurso do presente ano. O que é que o doutor descobriu? Que os tecelões de sedas, as costureiras, os luveiros de pelica, os tecelões de meias, etc, nem sequer recebiam, em média, a ração miserável dos operários do algodão, nem sequer [recebiam] o montante de carbono e nitrogénio "apenas suficiente para prevenir as doenças [causadas] pela fome".

“Além disso” – citamos o relatório – “no que toca às famílias da população agrícola examinadas, verifica-se que mais de um quinto tinha menos do que a estimada suficiência de alimentação carbonada, que mais de um terço tinha menos do que a suficiência estimada de alimentação nitrogenada e que em três condados (Berkshire, Oxfordshire e Somersetshire) a insuficiência de alimentação nitrogenada era a dieta local média”. “É preciso não esquecer” – acrescenta o relatório oficial – “que a privação de alimentação é muito relutantemente aguentada e que, em regra, uma grande pobreza de dieta só sobrevirá quando outras privações a precederam... Mesmo a limpeza terá sido considerada cara ou difícil e, se ainda houver esforços de respeito por si próprio para a manter, cada esforço desses representará tormentos de fome adicionais”. “Estas são reflexões dolorosas, especialmente, se não nos esquecermos de que a pobreza a que aludem não é a pobreza merecida pela ociosidade; em todos os casos, é a pobreza de populações trabalhadoras. De facto, o trabalho que fornece a escassa ração de alimento é, para a maior parte, excessivamente prolongado”.

O relatório exibe o facto estranho, e bastante inesperado, de que: “De entre as partes do Reino Unido” – Inglaterra, Gales, Escócia e Irlanda –, “a população agrícola da Inglaterra”, a parte mais rica, “é consideravelmente a mais mal alimentada”; mas, de que mesmo os operários agrícolas do Berkshire, Oxfordshire e Somersetshire passam melhor do que grande número de hábeis operários do Leste de Londres que trabalham a domicílio.

São estas as declarações oficiais publicadas por ordem do Parlamento em 1864, durante o milénio do comércio livre, numa altura em que o Chanceler do Tesouro Público disse à Câmara dos Comuns que “a condição média do trabalhador inglês melhorou num grau que sabemos que é extraordinário e sem exemplo na história de qualquer país ou qualquer idade”.

Destas congratulações oficiais destoa a seca observação do Relatório oficial sobre a Saúde Pública:

“A saúde pública de um país significa a saúde das suas massas, e as massas dificilmente serão saudáveis, a menos que, até na sua própria base, sejam pelo menos moderadamente prósperas”.

Deslumbrado pelo “Progresso da Nação”, com as estatísticas a dançar diante dos seus olhos, o Chanceler do Tesouro Público exclama num êxtase impetuoso:

“De 1842 a 1852 o rendimento coletável do país aumentou 6 por cento; nos oito anos de 1853 a 1861, aumentou 20 por cento, na base tomada em 1853! o fato é tão espantoso que é quase inacreditável!... Este inebriante aumento de riqueza e poder”, acrescenta o Sr. Gladstone, “está inteiramente confinado às classes possuidoras!”

Se se quiser saber em que condições de saúde arruinada, de moral manchada e de ruína mental esse “inebriante aumento de riqueza e poder inteiramente confinado às classes possidentes” foi e está a ser produzido pelas classes do trabalho, olhe-se para o quadro das oficinas de alfaiates, impressores e costureiras traçado no último Relatório sobre a Saúde Pública! Compare-se com o Report of the Children's Employment Commission de 1863, onde é afirmado, por exemplo, que:

“Os oleiros como classe, tanto os homens como as mulheres, representam uma população muito degenerada, tanto fisicamente como mentalmente”, que “a criança não saudável é, por sua vez, um pai não saudável”, que “uma deterioração progressiva da raça tem de continuar” e que “a degenerescência da população de Staffordshire ainda seria maior se não fosse o recrutamento constante da região adjacente e os casamentos mistos com raças mais saudáveis”.

Dê-se uma olhadela ao Livro Azul do Sr. Tremenheere sobre os “Agravos de que se queixaram os oficiais de padaria”. E quem é que não estremeceu com a declaração paradoxal feita pelos inspetores de fábricas, e ilustrada pelo Registrar General, de que os operários do Lancashire estavam efetivamente a melhorar em saúde, quando ficaram reduzidos à ração miserável de alimento, em virtude da sua exclusão temporária da fábrica de algodão por falta de algodão e de que a mortalidade das crianças estava a diminuir porque agora, enfim, era às suas mães permitido darem-lhes em vez do cordial de Godfrey, os seus próprios peitos.

Veja-se mais uma vez o reverso da medalha! Os Relatórios do Imposto sobre Rendimento e Propriedade, apresentados perante a Câmara dos Comuns em 20 de Julho de 1864, mostram-nos que às pessoas com rendimentos anuais avaliados pelo coletor de impostos em 50 000 libras e mais se tinham juntado, de 5 de Abril de 1862 a 5 de Abril de 1863, uma dúzia mais uma, tendo o seu número crescido nesse único ano de 67 para 80. Os mesmos Relatórios desvendam o facto de que cerca de 3000 pessoas dividem entre si um rendimento [income] anual de cerca de 25 000 000 de libras esterlinas, bastante mais do que o rendimento [revenue] total repartido anualmente por toda a massa dos trabalhadores agrícolas de Inglaterra e Gales. Abri o censo de 1861, e descobrireis que o número dos proprietários de terras masculinos de Inglaterra e Gales diminuiu de 16 934 em 1851 para 15 066 em 1861, de tal modo que a concentração de terras cresceu em dez anos 11 por cento. Se a concentração do solo do país em poucas mãos se processar à mesma taxa, a questão da terra ficará singularmente simplificada, tal como ficou no Império Romano, quando Nero sorriu com a descoberta de que metade da Província de África era possuída por seis senhores. Insistimos tanto tempo nestes «factos tão espantosos que são quase inacreditáveis », porque a Inglaterra está à cabeça da Europa do comércio e da indústria. Estaremos lembrados de que, há uns meses atrás, um dos filhos refugiados de Louis Philippe felicitou publicamente o trabalhador agrícola inglês pela superioridade da sua sorte sobre a do seu camarada menos florescente do outro lado do Canal. Na verdade, com as cores locais alteradas e numa escala algo contraída, os factos ingleses reproduzem-se em todos os países industriosos e progressivos do Continente. Em todos eles, teve lugar, desde 1848, um inaudito desenvolvimento da indústria e uma inimaginável expansão das importações e exportações. Em todos eles, «o aumento de riqueza e poder inteiramente confinado às classes possidentes» foi verdadeiramente «inebriante». Em todos eles, tal como em Inglaterra, uma minoria das classes operárias viu os seus salários reais algo aumentados; embora, na maioria dos casos, a subida monetária dos salários denotasse tanto um acesso real ao conforto como o facto do hóspede do asilo de mendicidade ou do orfanato da metrópole, por exemplo, em nada ser beneficiado por os seus meios de primeira necessidade custarem 9£ 15s. e 8d. em 1861 contra 7£ 7s. e 4d. em 1852. Por toda a parte, a grande massa das classes operárias se estava a afundar mais, pelo menos à mesma taxa que as acima delas subiam na escala social. Em todos os países da Europa, tornou-se agora uma verdade demonstrável a todo o espírito sem preconceitos e apenas negada por aqueles cujo interesse está em confinar os outros a um paraíso de tolos que nenhum melhoramento da maquinaria, nenhuma aplicação da ciência à produção, nenhuns inventos de comunicação, nenhumas novas colónias, nenhuma emigração, nenhuma abertura de mercados, nenhum comércio livre, nem todas estas coisas juntas, farão desaparecer as misérias das massas industriosas; mas que, na presente base falsa, qualquer novo desenvolvimento das forças produtivas do trabalho terá de tender a aprofundar os contrastes sociais e a agudizar os antagonismos sociais. A morte por fome, na metrópole do Império Britânico, elevou-se quase ao nível de uma instituição, durante esta época inebriante de progresso económico. Essa época fica marcada nos anais do mundo pelo regresso acelerado, pelo âmbito crescente e pelo efeito mais mortífero da peste social chamada crise comercial e industrial.

Após o fracasso das Revoluções de 1848, todas as organizações partidárias e jornais partidários das classes operárias foram, no Continente, esmagados pela mão de ferro da força, os mais avançados filhos do trabalho fugiram desesperados para a República Transatlântica e os sonhos efémeros de emancipação desvaneceram-se ante uma época de febre industrial, de marasmo moral e de reação política. A derrota das classes operárias continentais, em parte, devida à diplomacia do Governo inglês, agindo, então tal como agora, em solidariedade fraterna com o Gabinete de São Petersburgo, cedo espalhou os seus efeitos contagiosos para este lado do Canal. Enquanto a derrota dos seus irmãos continentais desanimou as classes operárias inglesas e quebrou a sua fé na sua própria causa, restaurou para o senhor da terra e para o senhor do dinheiro a sua confiança algo abalada. Retiraram insolentemente concessões já anunciadas. As descobertas de novas terras auríferas conduziram a um imenso êxodo, que deixou um vazio irreparável nas fileiras do proletariado britânico. Outros dos seus membros anteriormente ativos foram apanhados pelo suborno temporário de mais trabalho e salários melhores e tornaram-se «fura-greves políticos» [political blacks]. Todos os esforços feitos para manter ou remodelar o Movimento Cartista falharam assinalavelmente; os órgãos de imprensa da classe operária foram morrendo um a um pela apatia das massas e, de facto, nunca antes a classe operária inglesa tinha parecido tão inteiramente reconciliada com um estado de nulidade política. Se, então, não tinha havido qualquer solidariedade de ação entre as classes operárias britânica e continental, havia, para todos os efeitos, uma solidariedade de derrota.

E, contudo, o período que passou desde as Revoluções de 1848 não deixou de ter os seus aspectos compensadores. Apontaremos aqui apenas para dois grandes fatos.

Após uma luta de trinta anos, travada com a mais admirável perseverança, as classes operárias inglesas, aproveitando uma discórdia momentânea entre os senhores da terra e os senhores do dinheiro, conseguiram alcançar a Lei das Dez Horas. Os imensos benefícios físicos, morais e intelectuais daí resultantes para os operários fabris, semestralmente registados nos relatórios dos inspetores de fábricas, de todos os lados são agora reconhecidos. A maioria dos governos continentais teve de aceitar a Lei Fabril [Factory Act] inglesa em formas mais ou menos modificadas e o próprio Parlamento inglês foi cada ano compelido a alargar a sua esfera de ação.

Mas, para além do seu alcance prático, havia algo mais para realçar o maravilhoso sucesso desta medida dos operários. Através dos seus órgãos de ciência mais notórios — tais como o Dr. Ure, o Professor Sénior e outros sábios desse cunho —, a classe média tinha predito, e a contento dos seus corações, provado, que qualquer restrição legal às horas de trabalho teria de dobrar a finados pela indústria britânica que, qual vampiro, não podia senão viver de chupar sangue, e ainda por cima sangue de crianças. Em tempos idos, o assassínio de crianças era um rito misterioso da religião de Moloch, mas só era praticado em algumas ocasiões muito solenes, uma vez por ano, talvez, e, mesmo assim, Moloch não tinha uma propensão exclusiva para os filhos dos pobres. Esta luta acerca da restrição legal das horas de trabalho enfureceu-se tanto mais ferozmente quanto, à parte a avareza assustada, ela se referia, na verdade, à grande contenda entre o domínio cego das leis da oferta e da procura que formam a economia política da classe média e a produção social controlada por previsão social, que forma a economia política da classe operária. Deste modo, a Lei das Dez Horas não foi apenas um grande sucesso prático; foi a vitória de um princípio; foi a primeira vez que em plena luz do dia a economia política da classe média sucumbiu à economia política da classe operária.

Mas, estava reservada uma vitória ainda maior da economia política do trabalho sobre a economia política da propriedade. Falamos do movimento cooperativo, especialmente, das fábricas cooperativas erguidas pelos esforços, sem apoio, de algumas «mãos» ousadas. O valor destas grandes experiências sociais não pode ser exagerado. Mostraram com factos, em vez de argumentos, que a produção em larga escala e de acordo com os requisitos da ciência moderna pode ser prosseguida sem a existência de uma classe de patrões empregando uma classe de braços; que, para dar fruto, os meios de trabalho não precisam de ser monopolizados como meios de domínio sobre e de extorsão contra o próprio trabalhador; e que, tal como o trabalho escravo, tal como o trabalho servo, o trabalho assalariado não é senão uma forma transitória e inferior, destinada a desaparecer ante o trabalho associado desempenhando a sua tarefa com uma mão voluntariosa, um espírito pronto e um coração alegre. Em Inglaterra, os gérmenes do sistema cooperativo foram semeados por Robert Owen; as experiências dos operários, tentadas no Continente, foram, de facto, o resultado prático das teorias, não inventadas, mas proclamadas em alta voz, em 1848.

Ao mesmo tempo, a experiência do período de 1848 a 1864 provou fora de qualquer dúvida que o trabalho cooperativo – por mais excelente que em princípio [seja] e por mais útil que na prática [seja] –, se mantido no círculo estreito dos esforços casuais de operários privados, nunca será capaz de parar o crescimento em progressão geométrica do monopólio, de libertar as massas, nem sequer de aliviar perceptivelmente a carga das suas misérias. É talvez por esta precisa razão que nobres bem-falantes, filantrópicos declamadores da classe média e mesmo agudos economistas políticos, imediatamente se voltaram todos com cumprimentos nauseabundos para o preciso sistema de trabalho cooperativo que em vão tinham tentado matar à nascença, ridicularizando-o como Utopia do sonhador ou estigmatizando-o como sacrilégio do Socialista. Para salvar as massas industriosas, o trabalho cooperativo deveria ser desenvolvido a dimensões nacionais e, consequentemente, ser alimentado por meios nacionais. Contudo, os senhores da terra e os senhores do capital sempre usarão os seus privilégios políticos para defesa e perpetuação dos seus monopólios económicos. Muito longe de promover, continuarão a colocar todo o impedimento possível no caminho da emancipação do trabalho. Lembremo-nos do escárnio com o qual, na última sessão, Lord Palmerston deitou abaixo os defensores da Lei dos Direitos dos Rendeiros Irlandeses [Irish Tenants' Right Bill]. A Câmara dos Comuns, gritou ele, é uma casa de proprietários de terras.

Conquistar poder político tornou-se, portanto, o grande dever das classes operárias. Parecem ter compreendido isto, porque em Inglaterra, Alemanha, Itália e França tiveram lugar renascimentos simultâneos e estão a ser feitos esforços simultâneos para a reorganização política do partido dos operários.

Possuem um elemento de sucesso – o número; mas o número só pesa na balança se unido pela combinação e guiado pelo conhecimento. A experiência passada mostrou como a falta de cuidado por este laço de fraternidade, que deve existir entre os operários de diferentes países e incitá-los a permanecer firmemente ao lado uns dos outros em toda a sua luta pela emancipação, será castigada pela derrota comum dos seus esforços incoerentes. Este pensamento incitou os operários de diferentes países, congregados em 28 de setembro de 1864 numa reunião pública em St. Martin's Hall, a fundar a Associação Internacional.

[Uma] outra convicção influenciou [ainda] esta reunião.

Se a emancipação das classes operárias requer o seu concurso fraterno, como é que irão cumprir essa grande missão, com uma política externa que persegue objetivos criminosos, joga com preconceitos nacionais e dissipa em guerras piratas o sangue e o tesouro do povo? Não foi a sabedoria das classes dominantes, mas a resistência heroica das classes operárias de Inglaterra à sua loucura criminosa, que salvou o Ocidente da Europa de mergulhar de cabeça numa cruzada infame pela perpetuação e propagação da escravatura do outro lado do Atlântico. A aprovação desavergonhada, a simpatia trocista ou a indiferença idiota com que as classes superiores da Europa assistiram a que a fortaleza de montanha do Cáucaso caísse como presa da Rússia e a heroica Polônia fosse assassinada pela Rússia; as imensas e irresistidas usurpações desse poder bárbaro, cuja cabeça está em São Petersburgo e cujos braços estão em todos os Gabinetes da Europa, ensinaram às classes operárias o dever de dominarem elas próprias os mistérios da política internacional, de vigiarem os atos diplomáticos dos seus respectivos Governos, de os contra-atacarem, se necessário, por todos os meios ao seu dispor, [o dever de,] quando incapazes de o impedirem, se juntarem em denúncias simultâneas e de reivindicarem as simples leis da moral e da justiça, que deveriam governar as relações dos indivíduos privados, como as regras supremas do comércio das nações.

O combate por semelhante política externa faz parte da luta geral pela emancipação das classes operárias.

Proletários de todos os países, uni-vos!


Documento escrito por Karl Marx para a fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores, em 28 de Setembro de 1864 numa reunião pública, realizada em St. Martin's Hall, Long Acre, Londres
TEMAS:
Karl Marx

Marxismo-leninismo

"O Partido Socialista e o Revolucionarismo sem Partido"

Lenin: 
02.04.2016
O movimento revolucionário da Rússia, ao abarcar rápidamente novos e novos setores da população, está criando toda uma série de organizações à margem dos partidos. A necessidade de união manifesta-se com força tanto maior quanto mais tempo foi contida e perseguida. As organizações, de uma ou de outra forma, se bem que frequentemente ainda não cristalizadas, surgem sem cessar, o seu caráter é extremamente original. Aqui não há limites nitidamente assinalados semelhantes aos das organizações europeias. Os sindicatos adquirem caráter político. A luta política funde-se com a econômica — por exemplo, sob a forma de greves —, criando tipos mistos de organizações temporárias ou mais ou menos permanentes.

Qual é o significado desse fenômeno? Qual deve ser a atitude da social-democracia diante dele?

O rigoroso espírito de partido é consequência e resultado de uma luta de classes altamente desenvolvida. E, ao contrário, no interesse de uma ampla e aberta luta de classes é necessário o desenvolvimento de um rigoroso espírito de partido. Por isso, o partido do proletariado consciente, a social-democracia, combate sempre com absoluta razão a ideia de se situar à margem dos partidos, esforçando-se invariavelmente para criar um Partido Operário Socialista coeso e fiel aos princípios. Esse trabalho tem êxito entre as massas à medida em que o desenvolvimento do capitalismo divide todo o povo, cada vez mais profundamente, em classes, aguçando as contradições entre elas.

É perfeitamente compreensível que a presente revolução na Rússia tenha engendrado e engendre tantas organizações situadas à margem dos partidos. Por seu conteúdo econômico-social, esta revolução é democrática ou, melhor, burguesa. Essa revolução derruba o regime autocrático-feudal, abrindo campo livre ao regime burguês, satisfazendo assim as reivindicações de todas as classes da sociedade burguesa, sendo, nesse sentido, uma revolução de todo o povo. Isso não significa, é claro, que nossa revolução não tenha caráter de classe; naturalmente que o tem. Mas esta revolução é dirigida contra as classes e castas que caducaram ou estão caducando do ponto de vista da sociedade burguesa, classes e castas estranhas a essa sociedade e que impedem o seu desenvolvimento. E como toda a vida econômica do país já é burguesa em todos os seus traços fundamentais, como a imensa maioria da população já vive de fato em condições burguesas de existência, os “contrarrevolucionários são, portanto, insignificantes em número, são na realidade “um punhado” em comparação com “o povo”. O caráter de classe da revolução burguesa manifesta-se, pois, inevitavelmente, no seu caráter “popular”. E por isso, à primeira vista, sem caráter de classe, mas como luta de todas as classes da sociedade burguesa contra a autocracia e a servidão.

A época da revolução burguesa distingue-se, tanto na Rússia como em outros países, por um desenvolvimento relativamente incompleto das contradições de classe da sociedade capitalista. É verdade que na Rússia o capitalismo está, hoje, muito mais desenvolvido do que na Alemanha de 1848, sem falar da França de 1789; mas não há dúvida de que as contradições puramente capitalistas ainda estão bastante encobertas em nosso país pelas contradições entre a “cultura” e o asiatismo, o europeísmo e o tartarismo, o capitalismo e o regime de servidão, isto é, no primeiro plano se apresentam reivindicações cuja satisfação impulsionará o desenvolvimento do capitalismo, o depurará da escória do feudalismo e melhorará as condições de vida e de luta, tanto do proletariado como da burguesia.

Com efeito, se examinarmos o número infinito de reivindicações, exigências e doléances (queixas) hoje formuladas na Rússia em cada fábrica ou escritório, em cada regimento, seção da guarda municipal, paróquia, centro de ensino, etc, etc, comprovaremos facilmente que a imensa maioria delas são, se é possível exprimir-se assim, reivindicações de caráter estritamente “cultural”. Quero dizer que não são, propriamente falando, reivindicações específicas de classe, mas exigências de sentido fundamentalmente jurídico, exigências que, longe de destruir o capitalismo, colocam-nos nos marcos do europeísmo e libertam-no da barbárie, da selvageria, do suborno e de outros restos “russos” do regime de servidão. Na realidade, também as reivindicações proletárias limitam-se, na maioria dos casos, a exigir transformações plenamente realizáveis nos limites do capitalismo. O proletariado da Rússia reclama, hoje, de maneira imediata, não o que mina o capitalismo, mas o que o purifica e o que acelera e impulsiona seu desenvolvimento.

Naturalmente, a situação especial do proletariado na sociedade capitalista faz com que a inclinação dos operários para o socialismo, a união dos operários com o partido socialista, abra caminho espontaneamente nas próprias fases iniciais do movimento. Mas as reivindicações nitidamente socialistas são ainda coisa do futuro, e na ordem-do-dia figuram as reivindicações democráticas dos operários na política; bem como as reivindicações econômicas dentro dos limites do capitalismo, no terreno da economia. Inclusive o proletariado faz a revolução, por assim dizer, dentro dos limites do programa mínimo e não do programa máximo. Não é nem mesmo preciso falar do campesinato, dessa gigantesca massa da população, esmagadora por seu número. Seu “programa máximo”, seus objetivos finais, não vão além das fronteiras do capitalismo, que se desenvolveria com mais amplitude e força se toda a terra passasse às mãos dos camponeses e de todo o povo. A revolução camponesa é atualmente uma revolução burguesa, por muito que essas palavras “ofendam” o ouvido sentimental dos cavalheiros sentimentais de nosso socialismo pequeno-burguês.

O caráter bem delimitado da revolução em desenvolvimento origina organizações à margem dos partidos, em um processo inteiramente natural. Todo o movimento, em seu conjunto, adquire inevitavelmente o selo da independência externa em relação aos partidos, a aparência da falta de filiação política; mas, está claro, somente a aparência. A necessidade de uma vida “humana” e culta, da união, da defesa da própria dignidade e dos direitos do homem e do cidadão abarca tudo e todos, agrupa todas as classes, diminui com gigantesco ímpeto qualquer limite partidário, perturba as pessoas que ainda estão muito longe de ser capazes de se elevar até às posições partidárias. A urgência da conquista dos direitos e reformas imediatas, fundamentalmente necessárias, relega, por assim dizer, a segundo plano, qualquer ideia e pensamento sobre o que virá mais tarde. A paixão pela luta atual, necessária e legítima, sem o que não seria possível o êxito, obriga a idealizar esses objetivos imediatos e elementares, pinta-os de cor-de-rosa e inclusive envolve-os às vezes em roupagem fantástica; o simples democratismo, o vulgar democratismo burguês, é confundido com o socialismo e classificado como socialismo. Tudo é, ao que parece, “independente dos partidos”; tudo se funde, por assim dizer, em um só movimento “libertador” (que, na realidade, liberta toda a sociedade burguesa); tudo adquire um leve verniz superficial de “socialismo”, principalmente graças ao papel de vanguarda do proletariado socialista na luta democrática.

A ideia da posição independente na luta dos partidos não pode deixar de, pelo menos, alcançar, em tais condições, determinadas vitórias passageiras. A independência em relação aos partidos não pode, pelo menos, deixar de passar a ser uma palavra de ordem da moda, pois a moda se agarra impotente ao reboque dos acontecimentos, e uma organização sem cunho partidário aparece precisamente como o fenômeno mais “comum” da superfície política; democratismo à margem dos partidos, movimento grevista à margem dos partidos, revolucionarismo à margem dos partidos.

Pergunta-se agora: qual tem que ser, diante desse fato, a posição independente com respeito aos partidos, e diante dessa ideia da independência com respeito aos partidos, a atitude dos partidários e representantes das diferentes classes? Não no sentido subjetivo, mas objetivo, isto é, não no sentido de qual deva ser a atitude diante desse fato, e sim no sentido de que atitude se impõe inevitavelmente subordinada aos interesses e aos pontos de vista das diferentes classes.

II

Como já indicamos, a independência a respeito dos partidos é um produto ou, se quereis, uma expressão do caráter burguês de nossa revolução. A burguesia não pode deixar de, pelo menos, tender para essa independência, pois a ausência de partidos entre os que lutam pela liberdade da sociedade burguesa significa a ausência de uma nova luta contra esta mesma sociedade burguesa. Quem desenvolve uma luta “independente dos partidos” pela liberdade, ou não compreende o caráter burguês da liberdade, ou consagra esse regime burguês, ou adia para as calendas gregas a luta contra ele, o “aperfeiçoamento” do referido regime. E, pelo contrário, quem consciente ou inconscientemente se mantém ao lado da ordem de coisas burguesas, não pode deixar de, pelo menos, sentir inclinação pela ideia de se situar à margem dos partidos.

Numa sociedade baseada em classes, a luta entre as classes hostis converte-se de maneira infalível, numa determinada fase de seu desenvolvimento, em luta política. A luta entre os partidos é a expressão mais perfeita, completa e acabada da luta política entre as classes. A falta de cunho político significa indiferença diante da luta dos partidos. Mas essa indiferença não equivale à neutralidade, à omissão na luta, pois na luta de classes não pode haver neutros, na sociedade capitalista não é possível “abster-se” de participar da troca de produtos ou da força de trabalho. E essa troca engendra infalivelmente a luta econômica e, a seguir, a luta política. Por isso, a indiferença diante da luta não é, na realidade, inibição diante da luta, abstenção dela ou neutralidade. A indiferença é o apoio tácito ao forte, ao que domina. Quem era indiferente na Rússia diante da autocracia antes de sua queda durante a Revolução de Outubro apoiava tacitamente a autocracia. Quem é indiferente na Europa contemporânea diante do domínio da burguesia, apoia, tacitamente, a burguesia. Quem mantém uma atitude de indiferença diante da ideia do caráter burguês da luta pela liberdade, apoia, tacitamente, o domínio da burguesia nesta luta, o domínio da burguesia na nascente Rússia livre. A indiferença política não é outra coisa senão a saciedade política. Aquele que está farto é “indiferente” e “insensível” diante do problema do pão de cada dia; porém o faminto será sempre um homem “de partido” nessa questão. A “indiferença e insensibilidade” de uma pessoa diante do problema do pão de cada dia não significa que não necessite de pão, mas que o tem sempre garantido, que nunca precisa dele, que se acomodou bem no “partido” dos que estão saciados. A posição negativa diante dos partidos na sociedade burguesa não é senão uma expressão hipócrita, velada e passiva de quem pertence ao partido dos que estão empanturrados, o partido dos que dominam, o partido dos exploradores.

A posição negativa diante dos partidos é uma ideia burguesa. O espírito de partido é uma ideia socialista. Essa tese, em geral, é aplicável a toda a sociedade burguesa. Naturalmente, é preciso saber aplicar esta verdade geral às diferentes questões e casos particulares. Mas esquecer essa verdade em certos momentos em que a sociedade burguesa em seu conjunto se lança contra a servidão e a autocracia, significa renunciar de fato e por completo à crítica socialista da sociedade burguesa.

A revolução russa, apesar de encontrar-se ainda em sua fase inicial, já proporciona material suficiente para comprovar as considerações acima expostas. O rigoroso espírito de partido foi e é defendido, exclusivamente, pela social-democracia, pelo partido do proletariado consciente. Nossos liberais, representantes dos pontos de vista da burguesia, não podem transigir com o espírito socialista de partido, nem querem ouvir falar da luta de classes: recordem-se, pelo menos, os discursos recentes do senhor Roditchev, que repetiu pela enésima vez o que já havia sido dito e repetido, tanto por Osvobojdenie, editado no estrangeiro, como pelos inúmeros e submissos órgãos do liberalismo russo. Por último, a ideologia da classe média, da pequena burguesia, foi claramente expressa nos pontos de vista dos “radicais” russos de diferentes matizes, começando por Nasha Jizn, os “radical-democratas”, e terminando pelos “socialistas revolucionários”. Onde esses últimos confirmaram com maior clareza sua mescla de socialismo e democratismo foi na questão agrária, e precisamente na palavra de ordem de “socialização” (da terra, sem socialização do capital). É sabido também que são transigentes com o radicalismo burguês e intransigentes com a ideia do espírito social-democrático de partido.

Em nosso tema não entra como se refletem os interesses das diferentes classes no programa e a tática dos liberais e radicais russos de todos os matizes. Abordamos, aqui, somente de passagem, esse interessante problema, e devemos passar agora às conclusões políticas práticas sobre a atitude de nosso Partido diante das organizações sem cunho partidário.

É admissível a participação dos socialistas nas organizações situadas à margem dos partidos? Se é, em que condições? Que tática é preciso seguir nessas organizações?

A primeira pergunta não pode ser respondida com um não absoluto, baseado nas considerações de princípios. Seria erro afirmar-se não ser admissível, em nenhum caso e em nenhuma circunstância, a participação dos socialistas nas organizações situadas à margem dos partidos (quer dizer, burguesas, mais ou menos consciente ou inconscientemente). Na época da revolução democrática, a renúncia a participar em organizações independentes dos partidos equivaleria, em certos casos, a renunciar em participar na revolução democrática. Mas, sem dúvida, os socialistas devem circunscrever estreitamente esses “certos casos”, só admitindo essa participação em condições determinadas e limitadas de modo rigoroso. Pois se as organizações independentes dos partidos são engendradas, como já dissemos, por um nível relativamente baixo de desenvolvimento da luta de classes, de outro lado, o rigoroso espírito de partido é uma das condições que transformam a luta de classes numa luta consciente, clara, precisa e fiel aos princípios.

A salvaguarda da independência ideológica e política do partido do proletariado é obrigação constante, invariável e incondicional dos socialistas. Quem não cumpre esta obrigação, deixa de fato de ser socialista, por mais sinceras que sejam suas convicções “socialistas” (socialistas de palavras). Para um socialista, a participação nas organizações sem cunho partidário é permissível só como exceção. E os próprios fins desta participação e seu caráter, as condições que ela exige, etc, devem estar inteiramente subordinados à tarefa fundamental preparar e organizar o proletariado socialista para a direção consciente da revolução socialista.

As circunstâncias podem obrigar-nos a participar em organizações independentes dos partidos, sobretudo na época da revolução democrática, e, em particular, de uma revolução democrática em que o proletariado desempenhe papel relevante. Tal participação pode ser necessária, por exemplo, para propagar o socialismo entre um auditório democrático não definido, ou em benefício da luta conjunta de socialistas e democratas revolucionários diante da contrarrevolução. No primeiro caso, a participação será um meio de tornar os nossos pontos de vista conhecidos; no segundo, um pacto de luta visando à realização de determinados objetivos revolucionários. Em ambos os casos, a participação só pode ser temporária. Em ambos os casos, a participação só é admissível com a condição de se resguardar inteiramente a independência do partido operário e sob a condição de que todo o Partido, em seu conjunto, controle e dirija obrigatoriamente os seus membros e grupos “delegados” às associações ou conselhos situados à margem dos partidos.

Quando a atividade de nosso Partido era secreta, a realização desse controle e dessa direção ofereciam enormes dificuldades, às vezes quase insuperáveis. Agora, quando a atividade do Partido é cada vez mais aberta, esse controle e essa direção podem e devem ser efetuados com a maior amplitude, e indiscutivelmente não apenas pela “cúpula”, mas também pela “base” do Partido, por todos os operários organizados que integram o Partido. Os informes sobre a atuação dos social-democratas nas associações ou conselhos independentes dos partidos e sobre as condições e os objetivos dela, bem como as resoluções de qualquer tipo de organizações do Partido a propósito da referida atuação devem, imediatamente, começar a fazer parte do trabalho prático do partido operário. Só uma tal participação real do Partido em seu conjunto, uma participação na orientação de todas as atividades desse caráter, pode contrapor de fato o trabalho verdadeiramente socialista ao trabalho democrático geral.

Que tática devemos aplicar nas associações independentes dos partidos? Em primeiro lugar, aproveitar toda possibilidade para estabelecer nossos próprios vínculos e para propagar nosso programa socialista na íntegra. Em segundo lugar, determinar as tarefas políticas imediatas do momento, do ponto de vista da realização mais completa e decidida da revolução democrática, colocar palavras de ordem políticas na revolução democrática, formular o “programa” das transformações que a democracia revolucionária em luta deve levar a cabo, de modo diverso da tratante democracia liberal.

Só colocando o problema dessa maneira pode ser admissível e fecunda a participação dos membros de nosso Partido nas organizações revolucionárias independentes dos partidos, hoje criadas pelos operários, amanhã pelos camponeses, depois de amanhã pelos soldados, etc. Só colocando dessa maneira o problema estaremos em condições de cumprir a dupla tarefa do partido operário na revolução burguesa: levar até o fim a revolução democrática, ampliar e reforçar os quadros do proletariado socialista, que necessita de liberdade para desencadear uma luta impiedosa pela derrubada do domínio do capital.


por Lenin, publicado no Novaia Jizn, n.“ 22 e 27, 26 de novembro e 2 de dezembro de 1905
TEMAS:
Marxismo-leninismo

Lênin

"Barbárie e Civilização"

Engels:
Acompanhamos o processo de dissolução da gens nos três grandes exemplos particulares dos gregos, romanos e germanos. Para concluir, pesquisaremos as condições econômicas gerais que na fase superior da barbárie minavam já a organização gentílica da sociedade, e acabaram por fazê-la desaparecer, com a entrada em cena da civilização. Para isso, O Capital de Marx vai nos ser tão necessário quanto o livro de Morgan.

Nascida a gens na fase média do estado selvagem, e desenvolvida na fase superior, ela alcançou seu apogeu, segundo nos permitem julgar os documentos de que dispomos, na fase inferior da barbárie. Por essa última, portanto, começaremos a nossa investigação.

Nela, onde os peles-vermelhas americanos vão-nos servir de exemplo, encontramos a constituição gentílica completamente desenvolvida. Uma tribo se divide em diversas gens, comumente em duas; com o aumento da população, cada uma das gens primitivas se subdivide em várias gens filhas, para as quais a gens-mãe persiste como fratria; a própria tribo se subdivide em várias tribos, em cada uma das quais, na maioria dos casos, vamos achar as antigas gens; uma confederação, pelo menos em certos casos, une as tribos aparentadas. Essa organização simples é inteiramente adequada às condições sociais que a engendraram. Não é mais do que um agrupamento espontâneo, capaz de dirimir todos os conflitos que possam nascer no seio da sociedade a que corresponde. Os conflitos exteriores são resolvidos pela guerra, que pode resultar no aniquilamento da tribo, mas nunca em sua escravização. A grandeza do regime da gens — e também a sua limitação — é que nele não cabiam a dominação e a servidão. Internamente, não existem diferenças, ainda, entre direitos e deveres; para o índio não existe o problema de saber se é um direito ou um dever tomar parte nos assuntos de interesse social, executar uma vingança de sangue ou aceitar uma compensação; tal problema lhe pareceria tão absurdo quanto a questão de saber se comer, dormir e casar é um dever ou um direito. Nem podia haver, na gens ou na tribo, divisão em diferentes classes sociais. E isso nos leva ao exame da base econômica dessa ordem de coisas.

A população fica muito dispersa e só é relativamente densa no local de residência da tribo, ao redor do qual se estende uma vasta região para a caça, à qual se segue a zona neutra de bosques protetores que separam as tribos umas das outras. A divisão do trabalho é absolutamente espontânea: só existe entre os dois sexos. O homem vai à guerra, incumbe-se da caça e da pesca, procura as matérias-primas para a alimentação, produz os instrumentos necessários para a consecução dos seus fins. A mulher cuida da casa, prepara a comida e confecciona as roupas: cozinha, fia e cose. Cada um manda em seu domínio: o homem na floresta, a mulher em casa. Cada um é proprietário dos instrumentos que elabora e usa: o homem possui as armas e os petrechos de caça e pesca, a mulher é dona dos utensílios caseiros. A economia doméstica é comunista, abrangendo várias e amiúde numerosas(1) famílias. O resto é feito e utilizado em comum, é de propriedade comum: a casa, as canoas, as hortas. É aqui e somente aqui que nós vamos encontrar "a propriedade fruto do trabalho pessoal", que os jurisconsultos e economistas atribuem à sociedade civilizada e que é o último subterfúgio jurídico em que se apoia, hoje, a propriedade capitalista.

Mas não foi em todas as partes que os homens permaneceram nessa etapa. Na Ásia, encontraram animais que se deixaram domesticar e puderam ser criados no cativeiro. Antes, era preciso ir à caça para capturar a fêmea do búfalo selvagem; agora, domesticada, ela dava uma cria a cada ano e proporcionava, ainda por cima, leite. Certas tribos mais adiantadas — os árias e os semitas, e talvez os turanianos — fizeram da domesticação e da criação do gado a sua principal ocupação. As tribos pastoras se destacaram do restante da massa dos bárbaros. Esta foi a primeira grande divisão social do trabalho. Estas tribos pastoris não só produziam víveres em maior quantidade como também em maior variedade do que o resto dos bárbaros. Tinham sobre eles a vantagem de possuir mais leite, lacticínios e carnes; além disso, dispunham de peles, lãs, couros de cabra, fios e tecidos, cuja quantidade aumentava na medida em que aumentava a massa das matérias-primas. Isso tornou possível, pela primeira vez, o intercâmbio regular de produtos. Nas fases de evolução anteriores apenas podiam ser realizadas trocas ocasionais. É verdade que uma habilidade excepcional no fabrico de armas e instrumentos pode produzir uma divisão transitória de trabalho. Assim, foram encontrados em muitos lugares restos de oficinas para a fabricação de instrumentos de pedra, procedentes dos últimos tempos da Idade da Pedra. Os artífices que desenvolveram sua habilidade nessas oficinas hão de ter trabalhado por conta da comunidade, como o fazem, ainda hoje, os artesãos das comunidades gentílicas da Índia. De qualquer modo, nessa fase de desenvolvimento, só podia haver troca no seio mesmo da tribo, e ainda assim em caráter excepcional. Mas quando as tribos pastoras se destacaram do resto dos selvagens, encontramos inteiramente formadas as condições necessárias para a troca entre membros de tribos diferentes e para o desenvolvimento e consolidação do comércio como uma instituição regular. A princípio, as trocas se fizeram entre as tribos através dos chefes gentílicos; mas, quando os rebanhos começaram pouco a pouco a ser propriedade privada, a troca entre indivíduos foi predominando mais e mais, até chegar a ser a forma única. O principal artigo oferecido pelas tribos pastoras aos seus vizinhos era o gado; o gado chegou a ser a mercadoria pela qual todas as demais eram avaliadas, mercadoria que era recebida com satisfação em troca de qualquer outra; em uma palavra: o gado desempenhou as funções de dinheiro, e serviu como tal, já naquela época. Foi com essa necessidade e rapidez que se desenvolveu, no início mesmo da tioca de mercadorias, a exigência de uma mercadoria que servisse de, dinheiro.
A horticultura, provávelmente desconhecida dos asiáticos da fase inferior da barbárie, apareceu entre eles mais tarde, na fase média, como precursora da agricultura. O clima dos piar r.altos turanianos não permite a vida pastoril, a não ser com provisões de forragem para um longo e rigoroso inverno; foi preciso cultivar ali, portanto, os prados e os cereais. O mesmo pode ser dito das estepes situadas ao norte do Mar Negro. Mas, se a princípio o grão foi recolhido para o gado, não tardou a ser também um alimento para o homem. A terra cultivada continuou sendo propriedade da tribo, entregue em usufruto, primeiro à gens, depois às comunidades de famílias, e por último aos indivíduos estes devem ter tido certos direitos de posse — nada além disso.
Entre os descobrimentos industriais dessa fase, há dois especialmente importantes: o primeiro é o tear, o segundo é a fundição de minerais e o trabalho com metais fundidos. O cobre, o estanho e o bronze — este combinação dos dois primeiros — eram os mais importantes; com o bronze eram fabricados instrumentos e armas, que, entretanto, não podiam substituir os de pedra. Isso só seria possível com o ferro, mas ainda não se sabia de que modo consegui-lo. O ouro e a prata começaram a ser empregados em joias e enfeites, e provavelmente logo alcançaram valor bem mais elevado que o cobre e o bronze.
O desenvolvimento de todos os ramos da produção — criação de gado, agricultura, ofícios manuais domésticos — tornou a força de trabalho do homem capaz de produzir mais do que o necessário para a sua manutenção. Ao mesmo tempo, aumentou a soma de trabalho diário correspondente a cada membro da gens, da comunidade doméstica ou da família isolada. Passou a ser conveniente conseguir mais força de trabalho, o que se logrou através da guerra; os prisioneiros foram transformados em escravos. Dadas as condições históricas gerais de então, a primeira grande divisão social do trabalho, ao aumentar a produtividade deste, e por conseguinte a riqueza, e ao estender o campo da atividade produtora, tinha que trazer consigo — necessariamente — a escravidão. Da primeira grande divisão social do trabalho, nasceu a primeira grande divisão da sociedade em duas classes: senhores e escravos, exploradores e explorados.

Continuamos ignorando, até agora, quando e como os rebanhos deixaram de ser propriedade comum da tribo ou da gens e passaram a ser patrimônio dos diferentes chefes de família; mas a mudança, no essencial, deve ter ocorrido nessa fase. E, com a aparição dos rebanhos e outras riquezas novas, operou-se uma revolução na família. O providenciar a alimentação fora sempre assunto do homem; e os instrumentos necessários para isso eram produzidos por ele e de sua propriedade ficavam sendo. Os rebanhos constituíam nova fonte de alimentos e utilidades; sua domesticação e sua ulterior criação competiam ao homem. Por isso o gado lhe pertencia, assim como as mercadorias e os escravos que obtinha em troca dele. Todo o excedente deixado agora pela produção pertencia ao homem; a mulher tinha participação no consumo, porém não na propriedade. O "selvagem" — guerreiro e caçador — se tinha conformado em ocupar o segundo lugar na hierarquia doméstica e dar precedência à mulher; o pastor, mais "suave", envaidecido com a riqueza, tomou o primeiro lugar, relegando a mulher para o segundo. E ela não podia reclamar. A divisão do trabalho na família havia sido a base, para a distribuição da propriedade entre o homem e a mulher. Essa divisão do trabalho na família continuava sendo a mesma, mas agora transtornava as relações domésticas, pelo simples fato de ter mudado a divisão do trabalho fora da família. A mesma causa que havia assegurado à mulher sua anterior supremacia na casa — a exclusividade no trato dos problemas domésticos — assegurava agora a preponderância do homem no lar: o trabalho doméstico da mulher perdia agora sua importância, comparado com o trabalho produtivo do homem; este trabalho passou a ser tudo; aquele, uma insignificante contribuição. Isso demonstra que a emancipação da mulher e sua equiparação ao homem são e continuarão sendo impossíveis, enquanto ela permanecer excluída do trabalho produtivo social e confinada ao trabalho doméstico, que é um trabalho privado. A emancipação da mulher só se torna possível quando ela pode participar em grande escala, em escala social, da produção, e quando o trabalho doméstico lhe toma apenas um tempo insignificante. Esta condição só pode ser alcançada com a grande indústria moderna, que não apenas permite o trabalho da mulher em grande escala, mas até o exige, e tende cada vez mais a transformar o trabalho doméstico privado em uma indústria pública.

A supremacia efetiva do homem na casa tinha posto por terra os últimos obstáculos que se opunham ao seu poder absoluto. Esse poder absoluto foi consolidado e eternizado pela queda do direito materno, pela introdução do direito paterno e a passagem gradual do matrimônio sindiásmico à monogamia. Mas isso abriu também uma brecha na antiga ordem gentílica: a família individual tornou-se uma potência e levantou-se ameaçadoramente frente à gens.

O seguinte marco de progresso é o que nos leva à fase superior da barbárie — período em que todos os povos civilizados viveram sua época heroica; período da espada de ferro, mas também do arado e do machado de ferro. Ao pôr este metal a seu serviço, o homem se fez dono da última e mais importante das matérias-primas que tiveram, na história, um papel revolucionário; a última, se excetuarmos a batata. O ferro tornou possível a agricultura em grande escala e a preparação, para o cultivo, de grandes áreas de florestas; deu aos artesãos um instrumento cuja dureza e cujo fio jamais haviam podido ter pedra alguma ou qualquer metal. Tudo isso foi acontecendo aos poucos: o primeiro ferro era frequentemente mais mole do que o bronze. Por isso foi lenta a desaparição das armas de pedra; machados de pedra ainda eram usados em combate no Canto de Hildebrando e até na batalha de Hastmgs, em 1066, O progresso, contudo, era irresistível, menos intermitente e mais célere. A cidade, encerrando casas de pedra ou de tijolo dentro das suas muralhas de pedra com torres e ameias, transformou-se na residência central da tribo ou da confederação de tribos. Isso marca um notável progresso na arquitetura, mas é também um sinal do perigo crescente e da necessidade de defesa. A riqueza aumentava com rapidez, mas sob a forma de riqueza individual; a arte de tecer, o trabalho com os metais e outros ofícios de crescente especialização, deram variedade e perfeição sempre maior à produção; a agricultura principiou a fornecer, além de cereais, legumes e frutas, azeites e vinhos, cuja preparação já tinha sido aprendida. Um trabalho tão variado já não podia ser realizado por um só indivíduo e se produziu a segunda grande divisão social do trabalho: o artesanato se separou da agricultura. O constante crescimento da produção, e com ela da produtividade do trabalho, aumentou o valor da força de, trabalho do homem; a escravidão, ainda em estado nascente e esporádico na fase anterior, converteu-se em elemento básico do sistema social. Os escravos deixaram de ser meros auxiliares e eram levados às dezenas para trabalhar nos campos e nas oficinas. Ao dividir-se a produção nos dois ramos principais — agricultura e oficios manuais — surgiu a produção diretamente para a troca, a produção mercantil, e com ela o comércio, não só no interior e nas fronteiras da tribo como também por mar. Tudo isso ainda estava pouco desenvolvido; os metais preciosos apenas começaram a se converter na mercadoria-moeda preponderante e universal; mas as moedas ainda não eram cunhadas, os metais eram trocados por peso.

A diferença entre ricos e pobres veio somar-se à diferença entre homens livres e escravos; a nova divisão do trabalho acarretou uma nova divisão da sociedade em classes. A diferença de riqueza entre os diversos chefes de família destruiu as antigas comunidades domésticas comunistas, em toda parte onde estas ainda subsistiam; acabou-se o trabalho comum da terra por conta daquelas comunidades. A terra cultivada foi distribuída entre as famílias particulares, a princípio por tempo limitado, depois para sempre; a transição à propriedade privada completa foi-se realizando aos poucos, paralelamente à passagem do matrimônio sindiásmico à monogamia. A família individual principiou a transformar-se na unidade econômica da sociedade.

A crescente densidade da população exigiu maior união, tanto interna como externamente. Torna-se uma necessidade, em toda parte, a confederação de tribos consanguíneas, e logo a sua fusão; por isso, seus territórios se fundiram no território comum do povo. O chefe militar do povo — rex, basileu, thiudans — veio a tornar-se um funcionário permanente e indispensável. A assembleia do povo foi criada onde ainda não existia. O chefe militar, o conselho e a assembleia do povo constituíam os órgãos da democracia militar egressa da sociedade gentílica. E essa democracia era militar porque a guerra e a organização para a guerra eram, agora, funções regulares na vida do povo. As riquezas dos vizinhos excitavam a ambição dos povos, que já começavam a encarar a aquisição de riquezas como uma das finalidades precípuas da vida. Eram bárbaros: o saque lhes parecia mais fácil e até mais honroso do que o trabalho produtivo. A guerra, feita anteriormente apenas para vingar uma agressão ou com o objetivo de ampliar um território que se tornara insuficiente, era empreendida agora sem outro propósito que o do saque, e se transformou em um negócio permanente. Não era por acaso que se erigiam formidáveis muralhas em torno das novas cidades fortificadas; seus fossos eram o túmulo da gens e suas torres alcançavam já a civilização. Internamente, deu-se o mesmo. As guerras de rapina aumentavam o poder do supremo chefe militar e também dos chefes inferiores; a eleição habitual dos seus sucessores nas mesmas famílias, sobretudo a partir da introdução do direito paterno, passou gradualmente a ser sucessão hereditária — tolerada a princípio, em seguida exigida, e finalmente usurpada; com isso, foram assentados os alicerces da monarquia e da nobreza hereditária. Dessa forma, os órgãos da constituição gentílica foram sendo arrancados de suas raízes populares, raízes na gens, na fratria e na tribo, com o que todo o regime gentílico acabou por se transformar em seu contrário: de uma organização de tribos para a livre regulamentação de seus próprios assuntos, fez-se, uma organização para o saque e a opressão dos vizinhos; e, correspondentemente, seus órgãos deixaram de ser instrumentos da vontade do povo, convertendo-se em órgãos independentes, para dominar e oprimir seu próprio povo. Isso nunca teria sido possível se a cobiça das riquezas não houvesse dividido os membros da gens em ricos e pobres,
"se as diferenças de propriedade no seio de uma mesma gens não tivessem transformado a comunhão de interesses em antagonismo entre os membros da gens" (Marx)
e se o incremento da escravidão já não tivesse começado a fazer considerar o trabalho para ganhar a vida como algo para escravos, mais desonroso do que a pilhagem.
Chegamos aos umbrais da civilização, que se inicia por outro progresso na divisão do trabalho. No período inferior, os homens produziam somente para as suas necessidades diretas; as trocas reduziam-se a casos isolados e tinham por objeto os excedentes obtidos por acaso. Na fase média da barbárie já nos defrontamos com uma propriedade em forma de gado, entre os povos pastores, e, quando os rebanhos são bastante grandes, com uma produção com excedente regular sobre o consumo próprio; ao mesmo tempo, verificamos uma divisão do trabalho entre os povos pastores e as tribos mais atrasadas, que não tinham rebanhos; e daí dois diferentes graus de produção coexistindo, o que implica em condições para uma certa regularidade de troca. A fase superior da barbárie nos traz uma divisão ainda maior do trabalho: a divisão entre a agricultura e o artesanato; e daí a produção cada vez maior de objetos fabricados diretamente para a troca, e a elevação da troca entre produtores individuais à categoria de necessidade vital da sociedade. A civilização consolida e aumenta todas essas divisões do trabalho já existentes, acentuando sobretudo o contraste entre a cidade e o campo (contraste Que permitiu à cidade dominar economicamente o campo — como na antiguidade — ou ao campo dominar economicamente a cidade, como na Idade Média), e acrescenta uma terceira divisão do trabalho, peculiar a ela e de importância primacial, criando uma classe que não se ocupa da produção e sim, exclusivamente, da troca dos produtos: os comerciantes.

Até aqui, apenas a produção havia determinado os processos de formação de classes novas; as pessoas que tomavam parte nela se dividiam em diretores e executores, ou em produtores em grande e pequena escala. Agora, surge uma classe que, sem tomar absolutamente parte na produção, conquista a direção geral da mesma e avassala economicamente os produtores: uma classe que se transforma no intermediário indispensável entre dois produtores, e os explora a ambos. Sob o pretexto de poupar aos produtores as fadigas e os riscos da troca de produtos, de encontrar saída para os produtos até nos mercados mais distantes, tornando-se assim a classe mais útil da sociedade, forma-se uma classe de aproveitadores, uma classe de verdadeiros parasitas sociais, que, em compensação por seus serviços, na realidade insignificantes, retira a nata da produção nacional e estrangeira, concentra rapidamente em suas mãos riquezas enormes e adquire uma influência social correspondente a estas, ocnmndo, por isso mesmo, no decurso desse período de civilização, posição de mais e mais destaque, logrando um domínio sempre maior sobre a produção, até gerar um produto próprio: as crises comerciais periódicas.
É verdade que, no estágio de desenvolvimento que estamos analisando, a nascente classe dos comerciantes ainda não suspeitava das grandes coisas que lhe estavam reservadas. Mas se formou e se tornava indispensável — e isso era suficiente. Com ela, veio o dinheiro-metal, a moeda cunhada, novo meio para que o não-produtor dominasse o produtor e sua produção. Havia sido encontrada a mercadoria por excelência, que encerra em estado latente todas as demais, o instrumento mágico que se transforma, à vontade, em todas as coisas desejadas e desejáveis. Quem o possuía era dono do mundo da produção. E quem o possuiu antes de todos? O comerciante. Era suas mãos, o culto do dinheiro estava garantido. O comerciante tratou de tornar claro que todas as mercadorias, e com elas os seus produtores, deveriam prosternar-se ante o dinheiro. Provou de maneira prática que as demais formas de riqueza não passavam de quimeras, em face dessa genuína encarnação da riqueza como tal. De então para cá, nunca c poder do dinheiro se manifestaria com tanta brutalidade e violência primitiva como naquele período de sua juventude. Em seguida à compra de mercadorias por dinheiro, vieram os empréstimos, e com eles os juros e a usura. Nenhuma legislação posterior submete, de maneira tão dura e irremissível, o devedor ao credor usurário, como o faziam as leis da antiga Atenas o da antiga Roma; e, nos dois casos, essas leis nasceram espontaneamente, sob a forma de direito consuetudinário, não sujeitas a outra compulsão que a economia.

Ao lado da riqueza em mercadorias e escravos, ao lado da riqueza em dinheiro, apareceu a riqueza em terras. A posse de parcelas do solo, concedida primitivamente pela gens ou pela tribo aos indivíduos, fortalecera-se a tal ponto que a terra já podia ser transmitida por herança. O que nos últimos tempos eles exigiam antes de tudo era ficarem livres dos direitos que as comunidades gentílicas tinham sobre essas parcelas, direitos que para eles se tinham transformado em obstáculos. O obstáculo desapareceu, mas em pouco tempo também desaparecia a nova propriedade territorial. A propriedade livre e plena do solo significava não só a posse integral do mesmo, sem nenhuma restrição, como, ainda, a faculdade de aliená-lo. Esta faculdade não existiu quando o solo era propriedade da gens. Quando, porém, o obstáculo da propriedade suprema da gens e da tribo foi suprimido pelo novo proprietário, em caráter definitivo, se rompeu também o vínculo que unia indissoluvelmente o proprietário ao solo. O que isto significava ensinou-lhe o dinheiro, que se inventou justamente ao tempo do advento da propriedade privada da terra. A terra, agora, podia tornar-se mercadoria, podia ser vendida ou penhorada. Logo que se introduziu a propriedade privada da terra, criou- se a hipoteca (vide Atenas). Tal como o heterismo e a prostituição pisam os calcanhares da monogamia, a hipoteca adere à propriedade imóvel. Não quiseste a plena, livre e alienável propriedade do solo? Pois aqui a tens. "Tu l’as voulu, Georges Dandin!"(2)

Com a expansão do comércio, o dinheiro, a usura, a propriedade territorial e a hipoteca, progrediram rapidamente a centralização e a concentração das riquezas nas mãos de uma classe pouco numerosa, o que se fez acompanhar do empobrecimento das massas e do aumento numérico dos pobres. A nova aristocracia da riqueza acabou por isolar a antiga nobreza tribal, em todos os lugares onde não coincidiu com ela (em Atenas, em Roma e entre os germanos). E essa divisão de homens livres em classes, de acordo com seus bens, foi seguida, sobretudo na Grécia, de um extraordinário aumento no número dos escravos,(3) cujo trabalho forçado constituía base de todo o edifício social.

Vejamos agora qual foi a sorte da gens no curso dessa revolução social. Ela era impotente diante dos novos elementos que se tinham desenvolvido sem o seu concurso. Sua primeira condição de existência era que os membros de uma gens ou de uma tribo estivessem reunidos no mesmo território e habitassem exclusivamente nele. Esse estado de coisas já tinha desaparecido há muito. Gens e tribos se achavam misturadas em toda parte; em toda parte, escravos, clientes e estrangeiros viviam no meio dos cidadãos. A vida sedentária somente alcançada em fins da fase média da barbárie via-se alterada com frequência pela movimentação e pelas mudanças de residência devidas ao comércio, bem como pela mudança dos ocupantes e pelas vendas das terras. Os membros das uniões gentílicas já não se podiam reunir para resolver assuntos comuns; a gens ocupava-se apenas de coisas secundárias, como festas religiosas, e com indiferença. Paralelamente às necessidades e interesses para cuja defesa se tinham formado e eram aptas as uniões gentílicas, a revolução nas relações econômicas e a consequente diferenciação social haviam criado novas necessidades e novos interesses, não só estranhos, mas até opostos, em todos os sentidos, à velha ordem da gens. Os interesses dos grupos de artesãos, nascidos da divisão do trabalho, as necessidades específicas da cidade, opostas às do campo, exigiam órgãos novos; mas cada um desses grupos se compunha de pessoas pertencentes às mais diversas gens, fratrias e tribos, e até de estrangeiros. Os novos órgãos, portanto, tinham que se formar necessariamente fora do regime gentílico, independentemente dele — e, pois, em detrimento do mesmo. Em cada corporação gentílica, por sua vez, se fazia sentir esse conflito de interesses, que culminava quando se defrontavam pobres e ricos, usurários e devedores, dentro da mesma gens e da mesma tribo. A tudo isso, vinha juntar-se a população nova, estranha às associações gentílicas, que podia chegar a ser uma força no país (como aconteceu em Roma) e que, ao mesmo tempo, era bastante numerosa para poder ser admitida gradualmente nas estirpes e tribos consanguíneas. Em face dessa população, as uniões gentílicas figuravam como corporações fechadas, privilegiadas; a democracia primitiva, espontânea, transformara-se numa detestável aristocracia. Em uma palavra: a constituição da gens, fruto de uma sociedade que não conhecia antagonismos interiores, era adequada apenas para semelhante sociedade. Ela não tinha outros meios coercitivos além da opinião pública. Acabava de surgir, no entanto, uma sociedade que, por força das condições econômicas gerais de sua existência, tivera que se dividir em homens livres e escravos, em exploradores ricos e explorados pobres; uma sociedade em que os referidos antagonismos não só não podiam ser conciliados como ainda tinham que ser levados a seus limites extremos. Uma sociedade desse gênero não podia subsistir senão em meio a uma luta aberta e incessante das classes entre si. ou sob o domínio de um terceiro poder que, situado aparentemente por cima das classes em luta, suprimisse os conflitos abertos destas e só permitisse a luta de classes no campo econômico, numa forma dita legal. O regime gentílico já estava caduco. Foi destruído pela divisão do trabalho que dividiu a sociedade em classes, e substituído pelo Estado.


Já estudamos, uma a uma, as três formas principais de como o Estado se erigiu sobre as ruínas da gens. Atenas apresenta a forma que podemos considerar mais pura, mais clássica: ali, o Estado nasceu direta e fundamentalmente dos antagonismos de classe que se desenvolviam no seio mesmo da sociedade gentílica. Em Roma, a sociedade gentílica se converteu numa aristocracia fechada, em meio a uma plebe numerosa e mantida à parte, sem direitos mas com deveres; a vitória da plebe destruiu a antiga constituição da gens, e sobre os escombros instituiu o Estado, onde não tardaram a se confundir a aristocracia gentílica e a plebe. Entre os germanos, por fim, vencedores do império romano, o Estado surgiu em função direta da conquista de vastos territórios estrangeiros que o regime gentílico era impotente para dominar. Como, porém, a essa conquista não correspondia uma luta séria com a antiga população, nem uma divisão de trabalho mais avançada; como o grau de desenvolvimento econômico de vencidos e vencedores era quase o mesmo — e por conseguinte persistia a antiga base econômica da sociedade — a gens pôde manter-se ainda por muitos séculos, sob uma forma modificada, territorial, na constituição da marca, e até rejuvenescer durante certo tempo, sob uma forma atenuada, nas famílias nobres e patrícias dos anos posteriores, e mesmo em famílias camponesas, como em Dithmarschen.(4)

O Estado não é pois, de modo algum, um poder que se impôs à sociedade de fora para dentro; tampouco é "a realidade da ideia moral", nem "a imagem e a realidade da razão", como afirma Hegel. É antes um produto da sociedade, quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela própria e está dividida por antagonismos irreconciliáveis que não consegue conjurar. Mas para que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, faz-se necessário um poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o choque e Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela se distanciando cada vez mais, é o Estado.

Distinguindo-se da antiga organização gentílica, o Estado caracteriza-se, em primeiro lugar, pelo agrupamento dos seus súditos de acordo com uma divisão territorial. As velhas associações gentílicas, constituídas e sustentadas por vínculos de sangue, tinham chegado a ser, como vimos, insuficientes em grande parte, porque supunham a ligação de seus membros a um determinado território, o que deixara de acontecer há bastante tempo. O território permanecera, mas os homens se haviam tomado móveis. Tomada a divisão territorial como ponto de partida, deixou-se aos cidadãos o exercício dos seus direitos e deveres sociais onde estivessem estabelecidos, independentemente das gens e das tribos. Essa organização dos súditos do Estado conforme o território é comum a todos os Estados. For isso nos parece natural; mas, em capítulos anteriores vimos como foram necessárias renhidas e longas lutas antes que em Atenas e Roma ela pudesse substituir a antiga organização gentílica.

O segundo traço característico é a instituição de uma força pública, que já não mais se identifica com o povo em armas. A necessidade dessa força pública especial deriva da divisão da sociedade em classes, que impossibilita qualquer organização armada espontânea da população. Os escravos integravam, também, a população; os 90 000 cidadãos de Atenas só constituíam ama classe privilegiada em confronto com os 365 000 escravos. O exército popular da democracia ateniense era uma força pública aristocrática contra os escravos, que mantinha submissos; todavia, para manter a ordem entre os cidadãos, foi preciso também criar uma força de polícia, como falamos anteriormente. Esta força pública existe em todo Estado; é formada não só de homens armados como, ainda, de acessórios materiais, os cárceres e as instituições coercitivas de todo gênero, desconhecidos pela sociedade da gens. Ela pode ser pouco importante e até quase nula nas sociedades em que ainda não se desenvolveram os antagonismos de classe, ou em lugares distantes, como sucedeu em certas regiões e em certas épocas nos Estados Unidos da América. Mas se fortalece na medida em que se exacerbam os antagonismos de classe dentro do Estado e na medida em que os Estados contíguos crescem e aumentam de população. Basta-nos observar a Europa de hoje, onde a luta de classes e a rivalidade nas conquistas levaram a força pública a um tal grau de crescimento que ela ameaça engolir a sociedade inteira e o próprio Estado.

Para sustentar essa força pública, são exigidas contribuições por parte dos cidadãos do Estado: os impostos. A sociedade gentílica não teve ideia deles, mas nós os conhecemos muito bem. E, com os progressos da civilização, os impostos, inclusive, chegaram a ser pouco; o Estado emite letras sobre o futuro, contrai empréstimos, contrai dívidas do Estado. A velha Europa está em condições de nos falar, por experiência própria, também disso.

Donos da força pública e do direito de recolher os impostos, os funcionários, como órgãos da sociedade, põem-se então acima dela. O respeito livre e voluntariamente tributado aos órgãos da constituição gentílica já não lhes basta, mesmo que pudessem conquistá-lo; veículos de um poder que se tinha tornado estranho à sociedade, precisam impor respeito através de leis de exceção, em virtude das quais gozam de uma santidade e uma inviolabilidade especiais. O mais reles dos beleguins do Estado civilizado tem mais "autoridade" do que todos os órgãos da sociedade gentílica juntos; no entanto, o príncipe mais poderoso, o maior homem público, ou general, da civilização pode invejar o mais modesto dos chefes de gens, pelo respeito espontâneo e indiscutido que lhe professavam. Este existia dentro mesmo da sociedade, aqueles veem-se compelidos a pretender representar algo que está fora e acima dela.

Como o Estado nasceu da necessidade de conter o antagonismo das classes, e como, ao mesmo tempo, nasceu em meio ao conflito delas, é, por regra geral, o Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante, classe que, por intermédio dele, se converte também em classe politicamente dominante e adquire novos meios para a repressão e exploração da classe oprimida. Assim, o instado antigo foi, sobretudo, o Estado dos senhores de escravos para manter os escravos subjugados; o Estado feudal foi o órgão de que se valeu a nobreza para manter a sujeição dos servos e camponeses dependentes; e o moderno Estado representativo é o instrumento de que se serve o capital para explorar o trabalho assalariado. Entretanto, por exceção há períodos em que as lutas de classes se equilibram de tal modo que o Poder do Estado, como mediador aparente, adquire certa independência momentânea em face das classes. Nesta situação, achava-se a monarquia absoluta dos séculos XVII e XVIII, que controlava a balança entre a nobreza e os cidadãos; de igual maneira, o bonapartismo do primeiro império francês, e principalmente do segundo, que jogava com os proletários contra a burguesia e com esta contra aqueles. O mais recente caso dessa espécie, em que opressores e oprimidos aparecem igualmente ridículos, é o do novo império alemão da nação bismarckiana: aqui, capitalistas e trabalhadores são postos na balança uns contra os outros e são igualmente ludibriados para proveito exclusivo dos degenerados "junkers" prussianos.

Além disso, na maior parte dos Estados históricos, os direitos concedidos aos cidadãos são regulados de acordo com as posses dos referidos cidadãos, pelo que se evidencia ser o Estado um organismo para a proteção dos que possuem contra os que não possuem. Foi o que vimos em Atenas e em Roma, onde a classificação da população era estabelecida pelo montante dos bens. O mesmo acontece no Estado feudal da Idade Média, onde o poder político era distribuído conforme a importância da propriedade territorial. E é o que podemos ver no censo eleitoral dos modernos Estados representativos. Entretanto, esse reconhecimento político das diferenças de fortuna não tem nada de essencial; pelo contrário, revela até um grau inferior de desenvolvimento do Estado. A república democrática — a mais elevada das formas de Estado, e que, em nossas atuais condições sociais, vai aparecendo como uma necessidade cada vez mais iniludível, e é a única forma de Estado sob a qual pode ser travada a última e definitiva batalha entre o proletariado e a burguesia — não mais reconhece oficialmente as diferenças de fortuna. Nela, a riqueza exerce seu poder de modo indireto, embora mais seguro. De um lado, sob a forma de corrupção direta dos funcionários do Estado, e na América vamos encontrar o exemplo clássico; de outro lado, sob a forma de aliança entre o governo e a Bolsa. Tal aliança se concretiza com facilidade tanto maior quanto mais cresçam as dívidas do Estado e quanto mais as sociedades por ações concentrem em suas mãos, além do transporte, a própria produção, fazendo da Bolsa o seu centro. Tanto quanto a América, a nova república francesa é um exemplo muito claro disso, e a boa e velha Suíça também traz a sua contribuição nesse terreno. Mas, que a república democrática não é imprescindível para essa fraternal união entre Bolsa e governo, prova-o, além da Inglaterra, o novo império alemão, onde não se pode dizer quem o sufrágio universal elevou mais alto, se Bismarck, se Bleichröder. E, por último, é diretamente através do sufrágio universal que a classe possuidora domina.

Enquanto a classe oprimida — em nosso caso, o proletariado — não está madura para promover ela mesma a sua emancipação, a maioria dos seus membros considera a ordem social existente como a única possível e, politicamente, forma a cauda da classe capitalista, sua ala da extrema esquerda. Na medida, entretanto, em que vai amadurecendo para a auto-emancipação, constitui-se como um partido independente e elege seus próprios representantes e não os dos capitalistas. O sufrágio universal é, assim, o índice do amadurecimento da classe operária. No Estado atual, não pode, nem poderá jamais, ir além disso; mas é o suficiente. No dia em que o termômetro do sufrágio universal registrar para os trabalhadores o ponto de ebulição, eles saberão — tanto quanto os capitalistas — o que lhes cabe fazer.

Portanto, o Estado não tem existido eternamente. Houve sociedades que se organizaram sem ele, não tiveram a menor noção do Estado ou de seu poder. Ao chegar a certa fase de desenvolvimento econômico, que estava necessariamente ligada à divisão da sociedade em classes, essa divisão tornou o Estado uma necessidade. Estamos agora nos aproximando, com rapidez, de uma fase de desenvolvimento da produção em que a existência dessas classes não apenas deixou de ser uma necessidade, mas até se converteu num obstáculo à produção mesma. As classes vão desaparecer, e de maneira tão inevitável como no passado surgiram. Com o desaparecimento das classes, desaparecerá inevitavelmente o Estado. A sociedade, reorganizando de uma forma nova a produção, na base de uma associação livre de produtores iguais, mandará toda a máquina do Estado para o lugar que lhe há de corresponder: o museu de antiguidades, ao lado da roca de fiar e do machado de bronze.


De tudo que dissemos, infere-se, pois, que a civilização é o estágio de desenvolvimento da sociedade em que a divisão do trabalho, a troca entre indivíduos dela resultante, e a produção mercantil — que compreende uma e outra — atingem seu pleno desenvolvimento e ocasionam uma revolução em toda a sociedade anterior.

Em todos os estágios anteriores da sociedade, a produção era essencialmente coletiva e o consumo se realizava, também, sob um regime de distribuição direta dos produtos, no seio de pequenas ou grandes coletividades comunistas. Essa produção coletiva era levada a cabo dentro dos mais estreitos limites, mas ao mesmo tempo os produtores eram senhores de seu processo de produção e de seus produtos. Sabiam o que era feito do produto: consumiam-no, ele não saía de suas mãos. E, enquanto a produção se realizou sobre essa base, não pôde sobrepor-se aos produtores, nem fazer surgir diante deles o espectro de poderes estranhos, como sucede, regular e inevitavelmente, na civilização.

Nesse modo de produzir, porém, foi-se introduzindo lentamente a divisão do trabalho. Minou a produção e a apropriação em comum, erigiu em regra dominante a apropriação individual, criando, assim, a troca entre indivíduos (já examinamos como, anteriormente). Pouco a pouco, a produção mercantil tornou-se a forma dominante.

Com a produção mercantil — produção não mais para o consumo pessoal e sim para a troca — os produtos passam necessariamente de umas para outras mãos. O produtor separa-se de seu produto na troca, e já não sabe o que é feito dele. Logo que o dinheiro, e com ele o comerciante, intervém como intermediário entre os produtores, complica-se o sistema de troca e torna-se ainda mais incerto o destino final dos produtos. Os comerciantes são muitos, e nenhum deles sabe o que o outro está fazendo. As mercadorias agora não passam apenas de mão em mão, mas também de mercado a mercado; os produtores já deixaram de ser os senhores da produção total das condições de sua própria vida, e tampouco os comerciantes chegaram a sê-lo. Os produtos e a produção estão entregues ao acaso.

Mas o acaso não é mais que um dos polos de uma interdependência, da qual o outro polo se chama necessidade. Na natureza, onde também parece imperar o acaso, faz muito tempo que pudemos demonstrar, em cada domínio específico, a necessidade imanente e as leis internas que se afirmam em tal acaso. E o que é certo para a natureza também o é para a sociedade. Quanto mais uma atividade social, uma série de processos sociais, escapam do controle consciente do homem, quanto mais parecem abandonados ao puro acaso, tanto mais as leis próprias, imanentes, do dito acaso se manifestam como uma necessidade natural. Leis análogas também regem as eventualidades da produção mercantil e da troca de mercadorias; frente ao produtor e ao comerciante isolados, aparecem como forças estranhas e no início até desconhecidas, cuja natureza precisa ser laboriosamente investigada e estudada. Estas leis econômicas da produção mercantil modificam-se de acordo com os diversos graus de desenvolvimento dessa forma de produção; mas todo o período da civilização, em geral, está regido por elas. Até hoje, o produto ainda domina o produtor; até hoje, toda a produção social ainda é regulada, não segundo um plano elaborado coletivamente, mas por leis cegas que atuam com a força dos elementos, em última instância nas tempestades dos períodos de crise comercial.

Vimos como, numa fase bastante primitiva do desenvolvimento da produção, a força de trabalho do homem se tornou apta pari produzir consideravelmente mais do que era preciso para a manutenção do produtor, e como essa fase de desenvolvimento é, no essencial, a mesma em que nasceram a divisão do trabalho e a troca entre indivíduos. Não se demorou muito a descobrir a grande "verdade" de. que também o homem podia servir de mercadoria, de que a força de trabalho do homem podia chegar a ser objeto de troca e consumo, desde que o homem se transformasse em escravo. Mal os homens tinham descoberto a troca e começaram logo a ser trocados, eles próprios. O ativo se transformava em passivo, independentemente da vontade humana.

Com a escravidão, que atingiu o seu mais alto grau de desenvolvimento sob a civilização, veio a primeira grande cisão da sociedade em uma classe que explorava e outra que era explorada. Esta cisão manteve-se através de todo o período civilizado. A escravidão é a primeira forma de exploração, a forma típica da antiguidade: sucedem-na a servidão na Idade Média e o trabalho assalariado nos tempos modernos. São as três formas de avassalamento que caracterizam as três grandes épocas da civilização. A civilização faz-se sempre acompanhar da escravidão — a princípio franca, depois mais ou menos disfarçada.

O estágio da produção de mercadorias com que começa a civilização caracteriza-se, do ponto-de-vista econômico, pela introdução:

da moeda metálica (e, com ela, o capital em dinheiro), dos juros e da usura;
dos comerciantes como classe intermediária entre os produtores;
da propriedade privada da terra e da hipoteca;
do trabalho escravo como forma predominante na produção.

A forma de família que corresponde à civilização e vence definitivamente com ela é a monogamia, a supremacia do homem sobre a mulher, e a família individual como unidade econômica da sociedade. A força de coesão da sociedade civilizada é o Estado, que, em todos os períodos típicos, é exclusivamente o Estado da classe dominante e, de qualquer modo, essencialmente uma máquina destinada a reprimir a classe oprimida e explorada. Também são características da civilização: por um lado, a fixação da oposição entre a cidade e o campo como base de toda a divisão do trabalho social e, por outro lado, a introdução dos testamentos, por meio dos quais o proprietário pode dispor de seus bens ainda depois de morto. Essa instituição, que era um golpe direto na velha constituição gentílica, não foi conhecida em Atenas, mesmo no tempo de Solon; foi introduzida bastante cedo em Roma, mas ignoramos em que época,(5) Na Alemanha, implantaram-na os padres, para que os cândidos alemães pudessem, sem dificuldade, deixar legados para a Igreja.

Baseada nesse regime, a civilização realizou coisas de que a antiga sociedade gentílica jamais seria capaz. Mas as realizou pondo em movimento os impulsos e as paixões mais vis do homem e em detrimento das suas melhores disposições. A ambição mais vulgar tem sido a força motriz da civilização, desde seus primeiros dias até o presente; seu objetivo determinante é a riqueza, e outra vez a riqueza, e sempre a riqueza — mas não a da sociedade, e sim de tal ou qual mesquinho indivíduo. Se, na busca desse objetivo, a ciência tem-se desenvolvido cada vez mais e têm-se verificado períodos de extraordinário esplendor nas artes, é porque sem isso teriam sido impossíveis, na sua plenitude, as atuais realizações na acumulação de riquezas.

Desde que a civilização se baseia na exploração de uma classe por outra, todo o seu desenvolvimento se opera numa constante contradição. Cada progresso na produção é ao mesmo tempo um retrocesso na condição da classe oprimida, isto é. da imensa maioria. Cada benefício para uns é necessária- mente um prejuízo para outros; cada grau de emancipação conseguido por uma classe é um novo elemento de opressão para a outra. A prova mais eloquente a respeito é a própria criação da máquina, cujos efeitos, hoje, são sentidos pelo mundo inteiro. Se entre os bárbaros, como vimos, é difícil estabelecer a diferença entre os direitos e os deveres, com a civilização estabelece-se entre ambos uma distinção e um contraste evidentes para o homem mais imbecil, atribuindo-se a uma classe quase todos os direitos e à outra quase todos os deveres.

Mas não deve ser assim. O que é bom para a classe dominante deve ser bom para a sociedade, com a qual a classe dominante se identifica. Quanto mais progride a civilização, mais se vê obrigada a encobrir os males que traz necessariamente consigo, ocultando-os com o manto da caridade, enfeitando-os ou simplesmente negando-os. Em uma palavra: elabora-se uma hipocrisia convencional, desconhecida pelas primitivas formas de sociedade e pelos primeiros estágios da civilização, que culmina com a declaração de que a classe opressora explora a classe oprimida exclusiva e unicamente para o próprio beneficio desta. E, se a classe oprimida não o reconhece, e até se rebela, isso, além do mais, revela sua mais negra ingratidão para com seus benfeitores, os exploradores.(6)

Para concluir, vejamos agora o julgamento da civilização por Morgan:

"Desde o advento da civilização, chegou a ser tão grande o aumente da riqueza, assumindo formas tão variadas, de aplicação tão extensa, e tão habilmente administrada no interesse dos seus possuidores, que ela, a riqueza, transformou-se numa força incontrolável, oposta ao povo. A inteligência humana vê-se impotente e desnorteada diante de sua própria criação. Contudo, chegará um tempo em que a razão humana será suficientemente forte para dominar a riqueza e fixar as relações do Estado com a propriedade que ele protege e os limites aos direitos dos proprietários. Os interesses da sociedade são absolutamente superiores aos interesses individuais, e entre uns e outros deve estabelecer-se uma relação justa e harmônica. A simples caça à riqueza não é a finalidade, o destino da humanidade, a menos que o progresso deixe de ser a lei no futuro, como tem sido no passado. O tempo que transcorreu desde o início da civilização não passa de uma fiação ínfima da existência passada da humanidade, uma fração ínfima das épocas vindouras. A dissolução da sociedade ergue-se, diante de nós, como uma ameaça; é o fim de um período histórico — cuja única meta tem sido a propriedade da riqueza — porque esse período encerra os elementos de sua própria ruína. A democracia na administração, a fraternidade na sociedade, a igualdade de direitos e a instrução geral farão despontar a próxima etapa superior da sociedade, para a qual tendem constantemente a experiência, a razão, e a ciência. Será uma revivescência da liberdade, igualdade e fraternidade das antigas gens, mas sob uma forma superior." (Morgan, A Sociedade Antiga, pág. 502).


Capítulo IX do livro " A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado",
escrito por Friedrich Engels

TEMAS:
Marxismo-leninismo
Engels