segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

O ócio torna as horas lentas e os anos velozes. A actividade torna as horas rápidas e os anos lentos."

                                                                                          Cesare Pavese

(Manoel de Barros)

Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.

MANIA DE SOLIDÃO

Como um leve jantar posto à clara janela.
Já está escuro no quarto e se vê pelo céu.
As estradas tranquilas lá fora conduzem,
em um breve percurso, aos campos abertos.
Como e olho pro céu - quiçá quantas mulheres
fazem o mesmo a esta hora - e o meu corpo está calmo;
o trabalho atordoa o meu corpo e as mulheres.

Terminado o jantar, as estrelas virão passear
sobre a vasta planície da terra. As estrelas têm vida,
mas não valem sequer as cerejas que como sozinho.
Vejo o céu, mas sabendo que em meio aos telhados
umas luzes já brilham e, por baixo, começam ruídos.
Com um trago o meu corpo degusta esta vida
das florestas e rios e se sente isolado de tudo.
Basta um curto silêncio e as coisas se assentam
em seu lócus real, como assenta o meu corpo.

Meus sentidos isolam as coisas que tocam
e as aceitam impassíveis: rumor de silêncio.
Sou capaz de entender cada coisa no escuro,
como sei que o meu sangue percorre estas veias.
A planície é um grande regato entre a relva,
um repasto de todas as coisas. Imóveis as plantas
e os minérios existem. Escuto o alimento nutrir
minhas veias de tudo o que vive no vale.

Não importa essa noite. O quadrante do céu
me sussurra uma cópia de sons, e uma estrela miúda
se debate no vácuo, distante dos pastos
e das casas, discorde. No escuro, sozinho,
o meu corpo está calmo e se sente supremo.

27-29 de Maio de 1933

Cesare Pavese, Trabalhar cansa.

Tradução: Maurício Santana Dias
Ó garrafada das ervas maceradas
Do breu das brenhas
Se adonai de mim
E do meu peito lacerado.
Ó senhora dos remédios
Ó doce dona
Ó chá
Ó ungüento
Ó destilado
Ó camomila
Ó belladonna
Ó phármakon
Respingai grossas gotas
de vossos venenos
Ó doce dona
Ó camomila
Ó belladonna
Serenai minhas irremediáveis pupilas dilatadas
Ó senhora dos sem remédios
Domai as minhas brutas ânsias acrobáticas
Que suspensas piruetam pânicas nas janelas do caos
Se desprendem dos trapézios
E, tontas, buscam o abraço fraterno
E solidário dos espaços vácuos.
Ó garrafada das maceradas ervas do breu das brenhas
Adonai-vos do peito dilacerado e do lenho oco que ocupo.


[Wally Salomão | Feitio de Oração]
Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha, e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, ligadas e transmitidas pelo passado. (Karl Marx)
"Costuma-se dizer que ninguém conhece verdadeiramente uma nação até que tenha estado dentro de suas prisões. Uma nação não deve ser julgada pelo modo como trata seus cidadãos mais elevados, mas sim pelo modo como trata seus cidadãos mais baixos”

(NELSON MANDELA – Long Walk to Freedon, Little Brown, Londres: 1994)

O CONCEITO DE CULTURA

O CONCEITO DE CULTURA
LESLIE WHITE

A diversidade de comportamento dos seres humanos sempre foi um enigma. Todos os outros seres, existentes na natureza, apresentam comportamentos de espécie, repetitivos, limitados, com possibilidade quase nula de variações individuais. O homem é o único que, ao nascer, pode viver mil vidas diferentes. Qualquer um de nós poderia ser Mozart, qualquer um poderia ser Hitler. A criação de sinfonias e a perpetração de genocídios são possibilidades inscritas em nossa mais íntima constituição.

As primeiras tentativas sistemáticas para compreender a nossa diversidade buscaram explicações no corpo dos indivíduos, no contexto da antropologia física. Sua culminância foi a construção do conceito de raças humanas, o mais importante e mais desastrado empreendimento das ciências sociais europeias no século XIX. Ecos desse desacerto nos assombram até hoje.

A superação desse caminho, pela antropologia cultural, teve como ponto de partida a constatação de que o homem não apenas age, como os demais animais, mas interpreta a sua ação. Todas as ações humanas têm origem em alguma interpretação, e ao mesmo tempo são ações interpretadas. Compreender o comportamento humano exige compreender os sistemas de interpretação construídos pela imaginação do próprio homem, o que nos remete aos universos simbólicos, constitutivos da nossa existência tanto quanto os nossos corpos físicos.

Objetos materiais, crenças e atitudes estão imersos nesses universos simbólicos que são transmitidos entre indivíduos, povos e gerações por meios não biológicos. Cria-se assim uma ordem suprabiológica e extrassomática de coisas e fatos, que flui no espaço, de um grupo a outro, e no tempo, de uma época a outra. É o mundo humano por excelência, que precisa ser descrito e analisado a partir de seus próprios princípios e leis. Estamos falando de cultura, o conceito-chave da antropologia e uma das mais importantes aquisições conceituais das ciências sociais em todas as épocas.

Leslie White (1900-1975) dirigiu por muito tempo o Departamento de Antropologia da Universidade de Michigan e foi professor também nas universidades de Chicago, Yale, Colúmbia, Harvard e Califórnia (Berkeley). Em 1961, no auge da carreira, foi convidado pela Universidade do Colorado a dar oito aulas a professores, para fornecer uma visão de conjunto de sua disciplina. Gravadas, transcritas e revisadas, elas formam este pequeno e precioso volume que trata, justamente, do conceito de cultura.

César Benjamin