quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Ligações

Se ela ligar,vou dizer tudo o que tenho amarrado na garganta.Vou dizer de situação em que fui deixado e de todos os cacos de mim que abaixei para apanhar. Vou lembrar que temos crianças em comum e o que elas me pedem quando não conseguem dormir.Vou dizer que não dei desculpas, que deixei o tempo mostrar a elas o que não estava mais acontecendo.Vou dizer dos vizinhos, dos parentes e dos amigos que fazem fila pelas novidades. Vou dizer que comprei um carro com mais de 50 válvulas e air bag pro motorista. Também vou dizer que os armários fazem eco, que perdi os sentidos e que troquei o dia pela noite, só pra poder ganir pra lua ...mas isso é só se ela ligar, porque eu mesmo nem ligo.

Fernando Bonassi.in Da Rua.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

"A arte não imita o visível,ela torna visível o não visível"
Paul Klee

a arte sai dos limites fáceis do que é sensível, do que tem nome e forma , para buscar no caos, em que a forma é sempre provisória, pontos soltos, linhas soltas e então dar-lhes corpo.Dar corpo tátil ao som, dar corpo sonoro ao tempo ,dar visibilidade ao que é tátil, dar sonoridade ao que era apenas volume em uma pedra.

Deleuze,Gilles
Cult 108. Ano 9.nov.p63

CHINE MUSIQUE AVEC L'ERHU LE VIOLON CHINOIS

A Máscara

W. B. Yeats

«Tira essa máscara de ouro ardente

E olhos de esmeralda.»

«Oh não, meu amor, atreves-te demasiado

A ver se um coração é selvagem e sábio,

Sem ser frio.»



«Só quero ver o que houver para ver,

O amor ou o engano.»

«Foi a máscara o que ocupou a tua mente,

E fez bater o teu coração,

Não o que está por detrás.»



«Mas a não ser que sejas minha inimiga

Devo inquirir.»

«Oh não, meu amor, deixa tudo ser como é;

Que importa, se entretanto houver fogo

Em ti e em mim?»



W. B. Yeats

in Uma Antologia

Assírio & Alvim, 1996

BUEN AMIGO

[Tango]

Música: Julio De Caro

Letra: Juan Carlos Marambio Catán .


En las buenas o en las malas

triunfante de pie o vencido,

la mano del buen amigo,

se tiende cordial y buena.

Consuelo en la dura pena,

aliento en amarga vida

si adoré a mi madre en vida,

también cultivé amistad.

Si alguna vez

me ves rodar

tu mano firme y fiel

me alzará

fraternal.

Tu corazón,

noble sin par,

está vibrando al son

del violín

dormilón.

En los riscos del camino

mil veces lloré vencido,

mil veces fui mal herido,

sangrando en la dura huella,

de pronto alumbró una estrella

tu mano me dio la vida

se cerraron mis heridas

al soplo de tu bondad.

(recitado)

Mil veces caído

sentí desmayar,

mil veces tu mano

me diste al pasar.

Hermano fiel

en mi orfandad

tu mano firme y noble

floreció en amistad.

El tiempo cruel

no ha de borrar

jamás tu fiel recuerdo,

buen amigo leal.
«Às vezes chegamos a acreditar, no meio deste caminho sem margens, que depois não haverá mais nada; que não se poderá encontrar nada do outro lado, no fim desta planura rachada de gretas e de arroios secos. Mas sim, há algo. Há uma aldeia. Ouvem-se os cães a ladrar e sente-se no ar o cheiro do fumo, e saboreia-se esse cheiro de gente como se fosse uma esperança.


Mas a aldeia está ainda muito para lá. É o vento que a aproxima.»


Juan Rulfo. O Llano em chamas in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 145
Por felicidade, contudo, o que é o ser? - Não há senão maneiras de ser, sucessivas. Há tantas quanto objectos. Tantas quantos os batimentos de pálpebras.


Tanto quanto, tornando-se nosso regime, um objecto nos concerne, também o nosso olhar o cerca, o discerne. Trata-se, graças aos deuses, de uma «discrição» recíproca; e o artista acerta logo no alvo.

Sim, só o artista, então, sabe como fazer.

Deixa do olhar, atira ao alvo.

O objecto, é certo, acusa o golpe.

A verdade afasta-se em voo, indemne.

A metamorfose aconteceu.







Francis Ponge. Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 133

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

"Nós somos a promessa que nunca se realiza, mas esperamos algo que nunca vem, temos a tendência em direção a algo, mas nunca o que entender. Toda consciência é pendente. "


Nicolas Grimaldi - O desejo e o tempo - 1971
Fonte : Le Clown Lyrique

Introduzir-me em tua história

Introduzir-me em tua história
é como herói intimidado
se o tendão nu tiver tocado
algum tufo de território
a geleiras atentatório
não sei que pueril pecado
não há de ter silenciado
de  rir bem alto de vitória
dize-me se feliz eu deixo
trovão e rubis sobre o eixo
de ver que o fogo no ar se exploda
por entre os reinos mais bizarros
para morrer púrpura a roda
da única vésper de meus carros.

1886
Stéphane Mallarmé.(trad  :Augusto de Campos)
in.Poesia da recusa.editora Perspectiva

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Diabo no corpo

Fanáticos causam pânico no mundo.No Brasil, ainda há paz. Norton era americano. Passeava por São Paulo."Cidáád maish pacíífic."Aqui convivem pessoas de todas as religiões.Ele estava numa rua do centrão. Reparou numa loja de artigos religiosos.Logo na entrada, uma estátua assustadora.Um diabão vermelho de cerâmica. Norton sentiu um calafrio. a balconista da loja era uma bela morena chamada Nayara.Sorriu para norton."Achando estranho ?"Norton não respondeu.Forças inexplicáveis tomavam conta de seu corpo bem tratado."Bóót pra quebwrar !"Norton babava.Nayara o agarrou."Adoro quando baixa um santo no pedaço."O casal curte um sexo selvagem no motel Kaverna.Não existem o bem e o mal quando rola uma paixão.

Voltaire de Souza.
in.Vida Bandida.FSP28/09/01

domingo, 19 de dezembro de 2010

Tariq Ali - Conversaciones con Edward Said

Surpreendeu-se,estranhar,é começar a entender.
é o esporte e o luxo especifico do intelectual.
Por isso, seu gosto gremial consiste em olhar
o mundo com os olhos dilatados pela estranheza.
tudo no mundo é estranho e é maravilhoso
para um par de púpilas bem dilatadas.

Ortega y Gasset
in.Rebelião das Massas.

Comunhão de bens

Dora e Dino eram apenas amigos e desempregados quando compraram a perua de segunda mão.Tinha toldo,fogão, espaço pra geladeira de isopor e algumas cadeiras de lata .O que era sociedade acabou em casamento.A firma trabalhando 24 horas por dia pra dar conta de três filhos nascidos de enfiada.Dora começou no HC, mas a concorrência era pesada.Hoje,faz hot-dog perto do Hospital São Paulo mesmo.Dino, que não suporta embutidos,trabahha com churrasco no espeto perto dos estádios de futebol e zonas de prostituição.Quando ela está saindo com pães quentinhos,ele está chegando com migalhas frias e vice-versa.Nos fins de semana mal se vêem, mas acham que isso pode ter ajudado a ficarem juntos nesses tempos.

Fernando Bonassi.inDa Rua.FSP.12/09/01
Solo voy com my pena
sola va mi condena
correr es mi destino
para burlar la ley
perdido en el corazón
de la gran babylon
me dicen el clandestino
por no llevar papel.

Manu Chao
A terra inquieta
abate a tiro
o silêncio em volta.
Fernando Paixão.(Portugal)
Noite alta, céu risonho
a quietude é quase um sonho
o luar cai sobre a mata
qual uma chuva de prata(...)

Cândido das Neves.
in.Noite cheia de estrelas
na voz de Vicente Celestino
A tristeza entre o avô e o copo d'água
o avô conduz a dentadura
(sorriso portátil)
no bolso do paletó
e ao sorrir a boca murcha
não há um sorriso só
pois o outro se oculta
no bolso do paletó.
O avõ conduz a dentadura
(sorriso portátil)
e a introduz no copo d'água
há uma alegria na boca
e uma alegria afogada
mas uma certa tristeza
entre o avô e o copo d'água.

Sérgio de Castro pinto
in.A quatro mãos.p35

sábado, 18 de dezembro de 2010

Pessoa no Djone

Fernando Pessoa em Durban sentado e olhando o mar já nasceu o álvaro de campos. Aguarda a chegada da ode marítima o cansaço da noite antiquíssima e serena . Acende um charuto reflecte sobre esse estranho engenheiro que o liberta ]em navegação cosmopolita. Decerto na espreguiçadeira em que seu olhar se estende nada sabe de majonejones, nunca foi a um dumbanengue ,não conhece Maputo nem Tete,o fumo do charuto leva-o para outros lugares em que a névoa desponta a ocidente Poderia estar sentado no hotel Polana fazendo turismo ou pequenos burocráticos e acidentais negócios de passagem. Estrangeiro e incógnito com umbomcálice de cognac à sua frente espreita a máquina de escrever. Não vê gaivotas. Não sonha. Mas já usa óculos. É só um perfil com chapéu de palhinha branco na paisagem.Talvez quem sabe? o vulto inquieto do seu heterónimo bernardo soares folheando ausente umlivro do desassossego.

Ana Mafalda Leite.
fonte:Inimigo Rumor 17.p128

Neobarroso: in memoriam

"Hay
cadáveres"-canta néstor
perlongher e está
morrendo e canta
"hay..."seu canto de
pérolas-berrucas alambres bo-
quitas repintadas restos de unhas
lúnulas-canta-ostras desventradas um
olor de magnólias e esta espira
amarelo-marijuana novelando pensões
baratas e transas de michê(está
morrendo e canta)"hay..."
(madres de mayo heroínas-car-
pideiras vazadas em prata negra
lutuoso argento rioplatense plangem)
"...cadáveres" e está
morrendo e canta
néstor agora em go-
zoso portunhol neste bar paulista
que desafoga a noite-lombo-de fera
úmido-espessa de um calor serôdio e on-
de (o Sacro Daime éuma -já então-un-
ção quase extrema) canta
seu ramerrão(amaríssimo)portenho:"hay
(e está morrendo)cadáveres"

Haroldo de Campos
Homenagem de Haroldo de Campos a Néstor Perlongher .
Fonte:Nicolau.ano VII .número51.p30

"Meuscaminhos dehojesãoosmesmosde

"Meus caminhos de hoje
são os mesmos de ontem,
o que é novo em mim
é o jeito de caminhar. "
Thiago de Mello

Ecos

Passe através doespelho,
fraco de desejo antigo.
Queira de novo tudo,
não importa quem o amigo é.
Diga que sim aos lugares
desolados e vazios. Os palpites
foram o possível.
nenhum erro.

Robert Creeley
Trad :Luiza Franco Moreira

fonte :Inimigo Rumor17.p33
"A vida só pode ser compreendida olhando para trás;mas sópode ser vivida olhando para a frente."
Soren Kirkegaard

A Treva

Me escolhem osclaros do sono
engastados na madrugada,
a hora de Getsêmani
São cruas claras visões
às vezes pacificadas,
às vezes o terror puro
sem o suporte dos ossos,
que o dia pleno me dá.
A alma desce dos infernos,
a morte temseu festim.
Até que todos despertem
e eu mesma possa dormir,
o demônio come a seu gosto,
o que não é Deus pasta em mim.

Adélia Prado.
fonte:Folha de São Paulo.27/06/1982

Ode a Ártemis

Toco-te as rótulas, ó cervo temida
parte loira de Zeus, soberana
deferas infames,Ártemis.
De algum ponto, sobre os tufões de Leteu,
encaras agora comapreço a cidade
dos homens cardioudazes;
não apascentes homens grossos.

Anacreon
Trad:TrajanoVieira
fonte : Folhetim 09/03/1986.

XXVIII

La casa que reduce la noce a límites
y la hace llevadera
cuando el rugido de una bestia en el sueño
olas palabras que sin sentido
despiertan con todo ese extraño temor
surgen como restos de una oscura lengua
que desvela el origen y la amenaza
el techo que cubría un fuego manso
arderá
y entonces nada habrá seguro
y será necessário de nuevo cavar
hacer

Jose Manuel Arango

Frutos e apontamentos

Água apressada que corre – sem memória -,

que a terra distraída bebe,

duvida, só por um instante, na minha mão vazia,

lembra-te!

Claro e rápido amor, indiferença,

quase ausência que corre,

entre teu excesso de ficar e de partir,

tem arrepios de permanência.

Rainer Maria Rilke

in Frutos e Apontamentos

Relógio D´Água, 1996

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Penitentes da Lagoa, 1999.Barbalha, CE

Não estranhem os estrangeirismos

Com alguma regularidade, volta-se a discutir o que pensar a respeito do uso de palavras estrangeiras na língua portuguesa. Há mesmo um deputado com um projeto maluco pretendendo proibir estrangeirismos – a febre legislativa dessa gente é indomável.



O curioso é que a questão é apresentada como se fosse nova, algo que só atualmente, com a informática, os filmes americanos, a música pop, a linguagem dos técnicos em administração e economia, estivesse acontecendo.



Aí começa o equívoco, que acaba levando de arrasto uma série de discussões que se transformam num show (olha o estrangeirismo!) de desencontros. Basta uma olhada nas palavras que usamos para descobrir, com uma grande frequência, a intromissão de vocábulos de outras línguas. Coisa que não é nova.



Uma primeira coleção de palavras ingressou no português, vinda dos idiomas indígenas, talvez mais do que suspeitamos. Vejam só: o saboroso guaraná, a inocente paçoca, o Maracanã, a afoita perereca, etc. Sem falar no magnífico urubu. Além disso, nomes de lugares e de pessoas.



A seguir, palavras que vieram de línguas africanas. Começa pelo samba, a senzala, a batucada, o bafafá. E o esporte nacional, o fuxico. O quiabo e o dendê. Como contar a história do Brasil sem falar em cangaço e da música popular sem falar em berimbau? E a bagunça política? O menino pode ser guri ou moleque. O cachimbo, o macaco e a quitanda. E há a onipresente e imbatível – no bom sentido – bunda.



Todo esse vocabulário já está incorporado definitivamente ao falar e escrever brasileiro, embora exista quem pense que sejam portuguesas. Então, viria a pergunta: o que faremos com tais palavras, caso nos obstinarmos a espantar todo estrangeirismo?



Mas não é só. Antes do inglês, através dos dois impérios recentes – Grã-Bretanha e EUA –, o francês era bastante falado no Brasil (não por todas as classes, como é óbvio) e deixou pelo caminho muitas palavras e expressões que incorporamos há muitas décadas, na verdade há mais de um século. Lá vai: maiô, complô, batom, tricô, sutiã, guichê, metrô, vanguarda. E o indispensável garçom. Eu passei a infância chamando armário ou prateleira de “etagér” (étagère).



Depois veio o inglês, que tanta preocupação desperta nos puristas. Mas não é raro esquecermos contribuições, não desprezíveis, vindas das línguas faladas por imigrantes italianos, espanhóis, alemães etc. Influência, como todas as outras, que se dá não apenas no vocabulário, mas no próprio modo de produzir frases e expressões. Penso especialmente no italiano, de grande presença no linguajar popular brasileiro, mas também no texto literário, sobretudo de escritores paulistas, gaúchos, paranaenses e catarinenses. De Adoniran Barbosa a Sérgio Faraco, o italiano está sempre presente. De minha parte, lembro que usei vocábulos e formas de expressão com influência italiana quando escrevi o romance Os Dias do Demônio, que se passa no sudoeste do Paraná.



Essa falsa polêmica contra os estrangeirismos ignora o que ocorreu com a língua portuguesa quando veio ela própria transplantada para o Brasil. E é interessante lembrar que o “perigo” dos estrangeirismos é relativo e muito exagerado. Assim como certas palavras ou expressões foram incorporadas, outras sumiram depois de um sucesso momentâneo. Há algumas décadas, tudo que era grande, importante, admirável, marcante, era chamado de big – pois é, sumiu. Calça feminina, comprida, era chamada de eslaque (do inglês, slake) – hoje pode parecer ofensa.



O uso assimila ou rejeita certas modas. É tudo. E isso só faz enriquecer a língua. A língua que hoje falamos ou escrevemos, está muito longe daquela falada pelos primeiros portugueses que vieram para o Brasil, e também está distante da língua que se fala hoje em Portugal. Enfim, a língua é algo vivo, dinâmico, mutante e, como todo organismo vivo, assimila, rejeita ou transforma, conforme as circunstâncias, aquilo com que entra em contato.



Enfim, alguma paciência e certa dose de antropofagia, como queria Oswald de Andrade, poderiam colocar ordem nessa polêmica inútil.

Roberto Gomes
Fonte:Gazeta do Povo .05/12/2010



Romaria de Nossa Senhora Aparecida, 1999.Aparecida.SP

Fugindo de dezembro

Como faço todo fim de ano, também agora consegui uma semana de refúgio em dezembro, o mês alucinado – parece que algum tóxico se espalha na cidade e as pessoas enlouquecidas saem às ruas como formigas cujo formigueiro foi atacado. Os sentimentos em geral são bons, é preciso reconhecer – a fantasia de que o fim de ano é época de paz, amor, compreensão, tolerância e solidariedade é tão forte que as pessoas acabam acreditando nela, pelo menos no âmbito familiar. E o modo de demonstrar esses bons sentimentos é simples e direto: encher os shoppings e as sacolas e trocar presentes. Nada contra: é isso que faz mover a máquina do mundo. Mas para dizer que ainda tenho alguma metafísica na alma, sinto que há também uma certa percepção de um ciclo que se encerra e outro que se abre, simbolicamente poderosa, como se estivéssemos ainda vivendo sob a dura natureza ao sabor renovado das estações, aliás nítidas como nos filmes, e não embaralhadas como em Curitiba.



Saiba mais

A crise de sempreVaga (tecnológica) para idososPensamento chapadoTudo bem, mas como agora estou assumindo meu ansiado papel de velho esquisito, o que eu sempre quis ser desde criança, desci para o litoral, no deserto de Gaivotas, que no dezembro que antecede o Natal tem as características de um paraíso: não há nada a fazer, nada a ver, nada a pensar. Nem uma viva alma nas ruas – aqui e ali, raros, um ou outro operário trabalhando. O caminhão do lixo está mesmo passando de dois em dois dias, o que nos protege das moscas. E banho de mar, só para malucos – sou do tipo vampiro, dos que viram pó à luz do sol. Que, aliás, maravilha das maravilhas, praticamente não está aparecendo. Na dúvida, trouxe a caixa de ferramentas, para enfim fazer uma prateleirinha que venho planejando há uma década. Desta vez, abrindo o portão rangente, descubro que a única coisa que roubaram da casa – à falta de qualquer outro bem fungível além da geladeira, que é grande e pesada – foi a velha antena externa de televisão.



Tranquilo aqui na varanda, posso até ouvir a grama crescer. Mas algo extraordinário aconteceu, percebi acompanhando o dedo apontado do Felipe, meu filho: de uma toca do quintal saíram dois pterodáctilos, ou duas miniaturas de tiranossauros rex (não tão miniaturas: mais de meio metro cada), lagartões pré-históricos. Lentos, desconfiados, mimetizando cuidadosamente o mato em torno, saíram passo a passo da toca para o ar livre, arrastando os rabos imensos. Não pareceram malfeitores, concluí, depois do susto inicial. Invejei neles a capacidade de ficar imóveis, absolutamente imóveis, como monges do Tibete contemplando a neve da montanha.



E exigem silêncio, se queremos a companhia deles – o mínimo gesto brusco e ambos desaparecem no buraco como por mágica. Uma hora depois, desconfiança redobrada, voltam a mostrar as caras, testando a nossa capacidade de ficar quietos. E são poderosos – já estou praticamente domesticado por eles.


Cristovão Tezza.
Fonte:Gazeta do Povo.14/12/2010

Romaria de São Francisco das Chagas, 1999.Canindé, CE

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

La marcha de Afrodita

Por todas las tierras de Illarión, desde los valles y montañas coronadas con nieves perpetuas, hasta las poderosas colinas cuyo reflejo oscurece un mar tranquilo y tibio, estaban encendidos los antiguos fuegos verdes y amatistas del verano. Se aspiraban especias en el viento que azotaba el rostro de los montañeros al escalar los altos glaciares, y el más antiguo bosque de cipreses, que se deslizaba ceñudamente sobre una bahía de límpido cielo, estaba iluminado por las orquídeas de color escarlata... Pero el corazón del poeta Phaniol era una urna de negro jade fraguada por el amor con cenizas apagadas. Deseoso de olvidar por algún tiempo la socarronería de las zarzamoras, Phaniol caminaba solitario por el desierto que rodeaba a Illarión; era un lugar ennegrecido tiempo atrás por grandes hogueras, y que nunca había conocido los pinos, las violetas, los cipreses o las zarzamoras. Al caer la tarde llegó a un océano virgen, de aguas oscuras y estáticas bajo el sol poniente, exento del murmullo inmemorial propio de otros mares. Phaniol se paró y anduvo distraído por la costa cenicienta, soñando de cuando en cuando con ese mar llamado Oblivion .

Entonces, bajo el sol yacente cuya cegadora luz iluminaba su frente, apareció una barca que suavemente se deslizó hasta tierra; pero no había viento y los remos colgaban inertes sobre olas sin cresta espumosa. Phaniol advirtió que la barca estaba construida con madera de ébano, decorada con extraños anaglifos y lujosamente tallada con imágenes de dioses y bestias, sátiros, diosas y mujeres, siendo la figura principal la de un Eros negro, de serios labios carnosos y llenos, e implacables ojos de zafiro de mirada extraviada, como si estuviesen contemplando intensamente cosas innombrables o desconocidas. A bordo venían dos mujeres, una de ellas pálida como la luna polar, y la otra tan negra como una noche ecuatoriana. Ambas llevaban vestidos imperiales, y su talante era el propio de las diosas, o de quienes habitan con ellas. Sin pronunciar una sola palabra y sin un solo gesto, contemplaron a Phaniol, quien a pesar de su asombro preguntó:

-¿Qué buscan?

Entonces, con una voz que más parecía la voz del jardín de las Hespérides entre las palmeras, durante un anochecer en las islas Afortunadas, respondieron:

-Esperamos a la diosa Afrodita, quien presa de tristeza y desolación abandona Illarión, así como todos los países de este mundo de amores fugaces y mortales efímeros. Tú, puesto que eres poeta y has conocido la gran tiranía del amor, contemplarás su marcha. Pero ellos, los cortesanos, mercaderes y sacerdotes no recibirán ningún mensaje, ninguna señal de su partida, y en modo alguno podrán imaginarse que se ha marchado... Ahora, oh Phaniol, están próximos el tiempo, la diosa y la despedida.

Apenas habían terminado de hablar, cuando a través del desierto llegó Afrodita, y su llegada provocó una luz sobre las colinas, y por donde caminaba disminuían las sombras, y las arenas grises producían amapolas granates y el profundo verdor del césped que luciera cuando las reinas eran jóvenes, antes de que pasaran a formar parte de una oscura leyenda y los siglos las convirtieran en momias polvorientas. Llegó hasta la orilla y quedó en pie ante Phaniol, mientras la puesta del sol se extendía, llenando el cielo y el mar con un color aterciopelado de capullo recién abierto, y lo más profundo de la concha que en tiempos remotos le fuera consagrada se elevaba para recibirla. No llevaba ropajes, ni coronas, ni guirnaldas, arropada y coronada únicamente por el crepúsculo solar, tan hermosa como los sueños de un mortal, pero mucho más hermosa que todos los sueños. La diosa aguardaba, sonriente y tranquila, símbolo de la vida y de la muerte, de la desesperación y de la pasión, ensueño de carne y hueso para dioses y poetas y galaxias jamás conocidas. Pero también reflejaba el asombro del amor, de algo mucho más que el amor, y cuyo sentido no podía entender el poeta.

-¡Hasta siempre, oh Phaniol! -exclamó, y su voz recordaba el suspiro de aguas lejanas, el murmullo de aguas de plenilunio, arrullando no sin tristeza una orgullosa isla coronada de altas palmeras-. Me has conocido y adorado durante toda tu vida hasta este momento, pero ha llegado la hora de mi partida; me voy, y cuando me haya marchado me seguirás adorando, pero ya no me conocerás. Así es el destino, y estaba dispuesto que ningún hombre, ni ningún mundo, ni ningún dios me poseyera completamente hasta la eternidad. Cuando yo ya no exista regresarán el otoño y la primavera, el primero cuajado de hojas amarillas, y la segunda de violetas igualmente amarillas; los pájaros se refugiarán en las zarzamoras renovadas, y conocerás nuevos y fugaces amores. Jamás volverán a tus ojos o a los de cualquier otro mortal la perfecta imagen y el perfecto cuerpo de la diosa.

Finalizando así su despedida, saltó del muelle ceniciento a la oscura proa de la barca; y de la misma manera en que había llegado, sin necesidad del viento ni de los remos, la barca se hizo a la mar cuajada de los descoloridos pétalos del anochecer. Desapareció inmediatamente de la vista, mientras el desierto perdía las antiguas amapolas y el rico verdor que luciera de nuevo por unos instantes. La oscuridad se adueñó de Illarión, siguiendo furtivamente el camino trazado por Afrodita; las sombras retornaron a las colinas, y el corazón del poeta Phaniol seguía siendo una urna de negro jade fraguada por el amor con cenizas apagadas.


Clark Ashton Smith

FIN
 
Fonte: Ciudad Seva
Para que venham

Konstandinos Kavafis

Uma vela, mais não. A sua luz ténue

é mais adequada, mais brando te assombras

quando vierem do Amor, quando vierem as Sombras.

Uma vela, mais não. Para não ter hoje à noite

a alcova grande iluminação. Dentro do enleio inteiro

e da sugestão, e com a pouca luz -

assim no enleio hei-de ter visões

para que venham do Amor, para que venham as Sombras.

Konstandinos Kavafis

in Poemas e Prosas

Relógio d´Água, 1994

Tradução de Joaquim Manuel Magalhães

e Nikos Pratsinis

O Corvo

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,

Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,

E já quase adormecia, ouvi o que parecia

O som de alguém que batia levemente a meus umbrais

«Uma visita», eu me disse, «está batendo a meus umbrais.

É só isso e nada mais.»

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,

E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.

Como eu qu’ria a madrugada, toda a noite aos livros dada

P’ra esquecer (em vão) a amada, hoje entre hostes celestiais —

Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,

Mas sem nome aqui jamais!

Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo

Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!

Mas, a mim mesmo infundindo força, eu ia repetindo,

«É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;

Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.

É só isso e nada mais».

E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,

«Senhor», eu disse, «ou senhora, decerto me desculpais;

Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,

Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,

Que mal ouvi…» E abri largos, franquendo-os, meus umbrais.

Noite, noite e nada mais.

A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,

Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.

Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,

E a única palavra dita foi um nome cheio de ais —

Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.

Isto só e nada mais.

Para dentro estão volvendo, toda a alma em mim ardendo,

Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.

«Por certo», disse eu, «aquela bulha é na minha janela.

Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais.»

Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.

«É o vento, e nada mais.»

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,

Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.

Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,

Mas com ar solene e lento pousou sobre meus umbrais,

Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais.

Foi, pousou, e nada mais.

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura

Com o solene decoro de seus ares rituais.

«Tens o aspecto tosquiado», disse eu, «mas de nobre e ousado,

Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!

Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.»

Disse-me o corvo, «Nunca mais».

Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,

Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.

Mas deve ser concedido que ninguém terá havido

Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais,

Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,

Com o nome «Nunca mais».

Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,

Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.

Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento

Perdido, murmurei lento, «Amigo, sonhos — mortais

Todos — todos lá se foram. Amanhã também te vais».

Disse o corvo, «Nunca mais».

A alma súbito movida por frase tão bem cabida,

«Por certo», disse eu, «são estas vozes usuais.

Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono

Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,

E o bordão de desesp’rança de seu canto cheio de ais

Era este «Nunca mais».

Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,

Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;

E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira

Que qu’ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,

Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,

Com aquele «Nunca mais».

Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo

À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,

Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando

No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais,

Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais,

Reclinar-se-á nunca mais!

Fez-me então o ar mais denso, como cheio dum incenso

Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.

«Maldito!», a mim disse, «deu-te Deus, por anjos concedeu-te

O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,

O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!»

Disse o corvo, «Nunca mais».

«Profeta», disse eu, «profeta — ou demónio ou ave preta!

Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais,

Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida

Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,

Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!»

Disse o corvo, «Nunca mais».

«Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!, eu disse. «Parte!

Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!

Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!

Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!»

Disse o corvo, «Nunca mais».

E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda

No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.

Seu olhar tem a medonha dor de um demónio que sonha,

E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais,

E a minh’alma dessa sombra, que no chão há mais e mais,

Libertar-se-á… nunca mais!


Edgar Allan Poe

(tradução de Fernando Pessoa)

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Apreensões (1860)

Quando as nuvens flutuando sobre recuados montes

Tempestuosas ondulam no tardio Outono sombrio,

E o horror invade o ensopado vale,

E o pináculo cai estrondoso na cidade,

Medito nas dores do meu país -

A tempestade irrompendo da vastidão do Tempo

Na mais bela esperança do mundo ao mais ignóbil crime do homem

(unida.



O lado obscuro da Natureza agora atento -

(Ah, exclamação optimista de desencanto plena) -

Uma criança pode ler o taciturno cume

D´aquela solitária e negra montanha.

Com brados as correntes descem os desfiladeiros,

E tempestades formam-se sob a tempestade por nós sentida:

A cicuta agita-se na viga, o carvalho na quilha.



Herman Melville

in Poemas

Assírio & Alvim, 2009

Tradução de Mário Avelar

O Temor da Morte

I



Que a morte me desmembre em outro, e eu fique

Ou o nada do nada ou o de tudo

E acabo enfim esta consciência oca

Que de existir me resta.



Sinto um tropel esfuziante e quente

De propósitos-sombras, e de impulsos

Transbordando do cálix da consciência

Para cima da vida...



II



....só um sentimento

De desejar eterna inquietação,

Ambição vaga de fechar os olhos

E vaga esp'rança de não mais abri-los.

Ânsia cansada de não mais viver;

Meu cérebro esvaído não lamenta

Nem sabe lamentar. Tumultuárias

Ideias mistas do meu ser antigo

E deste, surgem e desaparecem

Sem deixar rastos à compreensão.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...



Já deslumbradas, vãs, incoerentes

Amargas,[vagas] desorganizações

Que nem deixam sofrer. Vem pois, oh Morte!

Sinto-te os passos!Sinto-te! O teu seio

Deve ser suave e ouvir o teu coração

Como uma melodia estranha e vaga

Que enleva até ao sono e passa o sono.

Nada. Já nada [passa] - nada, nada...

Vai-te, Vida!



III



Ah, o horror de morrer!

E encontrar o mistério frente a frente

Sem poder evitá-lo, sem poder...



IV



Gela-me a ideia de que a morte seja

O encontrar o mistério face a face

E conhecê-lo. Por mais mal que seja

A vida e o mistério de a viver



(...)



Fernando Pessoa

in Poemas Dramáticos

Edições Ática

O Fanal

Aqui, onde entre mares cresceu a ilha,

pedra e ara súbito como torre erguida,

aqui ascende sob um negro céu

Zaratustra os seus fogos das alturas,-

fanal para navegantes sem rumo,

ponto de interrogação para os que têm resposta...



Esta chama de ventre esbranquiçado

-sua cobiça lança línguas a distâncias frias,

dobra o pescoço para alturas mais puras -

cobra erguida a pino, de impaciência:

este sinal o pus eu em frente a mim.



A minha própria alma é esta chama:

insaciável de distâncias novas,

lança ao alto, ao alto o seu ardor silente.

Porque fugira Zaratustra dos bichos e dos homens?

porque se escapou de repente de toda a terra firme?



Seis solidões conhece ele já -,

mas o seu próprio mar não lhe era solitário bastante,

a ilha deixou-o subir, sobre o monte ele se fez chama,

a uma sétima solidão

lança buscando agora o seu anzol por sobre a fonte.



Navegantes sem rumo! Destroços de astros velhos!

Ó mares de futuro! Ó céus inexplorados!

Lanço agora o anzol a tudo o que é solitário:

dai resposta à impaciência da chama,

agarrai para mim, pescador nos altos montes,

a minha sétima última solidão! -



Friedrich Nietzsche (1844-1900) in Rosa Do Mundo 2001 poemas para o futuro

2. ed. Assírio & Alvim, 2001

estação

Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te

vou perdendo a noção desta subtileza.

Aqui chegado até eu venho ver se me apareço

e o fato com que virei preocupa-me, pois chove miudinho



Muita vez vim esperar-te e não houve chegada

De outras, esperei-me eu e não apareci

embora bem procurado entre os mais que passavam.

Se algum de nós vier hoje é já bastante

como comboio e como subtileza

Que dê o nome e espere. Talvez apareça



Mário Cesariny

in Pena Capital I

Assírio & Alvim, 2ª ed., 199estação



Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te

vou perdendo a noção desta subtileza.

Aqui chegado até eu venho ver se me apareço

e o fato com que virei preocupa-me, pois chove miudinho



Muita vez vim esperar-te e não houve chegada

De outras, esperei-me eu e não apareci

embora bem procurado entre os mais que passavam.

Se algum de nós vier hoje é já bastante

como comboio e como subtileza

Que dê o nome e espere. Talvez apareça



Mário Cesariny

in Pena Capital I

Assírio & Alvim, 2ª ed., 199
I

Celebro-me e canto-me,


E aquilo que assumo tu deves assumir,

Pois cada átomo que a mim pertence a ti pertence também.



Vagueio e convido a minha alma,

À vontade vagueio e inclino-me a observar a erva do Verão.

A minha língua, cada átomo do meu sangue, composto deste solo, deste ar,

Aqui nascido de pais aqui nascido de outros pais aqui nascido, e dos seus

pais também

Eu, aos trinta e sete anos, de perfeita saúde começo,

Esperando que só a morte me faça parar.



Suspensos os credos e as escolas,

Retiro-me por certo tempo, deles saturado mas não esquecido,

Sou o porto do bem e do mal, e seja como for falo,

Natureza sem obstáculos com a sua energia original.





Walt Whitman

in Canto de Mim Mesmo

Assírio & Alvim, 1999
XXVI







Agora só me resta ouvir,

Para juntar o que oiço a este canto, para deixar que os sons contribuam para

ele.



Oiço bravuras de pássaros, o rumor do trigo que cresce, o crepitar das

chamas, o crepitar da lenha com que cozinho,

Oiço o som que amo, o som da voz humana,

Oiço todos os sons, juntos, combinados, fundidos ou seguindo-se,

Sons da cidade e sons fora da cidade, sons do dia e da noite,

Jovens conversando com quem gostam, o alto risco dos trabalhadores quando

almoçam,

Os irados sons da amizade quebrada, a voz débil dos doentes,

O juiz com as mãos agarradas à secretária, com os lábios pálidos ditando uma

sentença de morte,

As elevadas vozes dos estivadores descarregando os navios junto ao molhe,

o refrão dos que levantam a âncora,

As sirenes de alarme que tocam, o grito de fogo, o zumbido imediato dos

motores de dos carros dos bombeiros com as sirenes e as luzes de

cores,

O silvo do vapor, o sólido rodar da caravana de carroças que se aproximam,

A marcha lenta tocada à cabeça do grupo que avança aos pares,

(Vão a algum funeral, as bandeiras estão cobertas de musselina negra).



Oiço o violoncelo, (é o lamento de um coração jovem),

Oiço a corneta de chaves penetrando velozmente nos meus ouvidos,

Fazendo estremecer o meu ventre e o meu peito num doce espasmo.



Oiço o coro da ópera,

Ah, isto sim, é música - isto está em harmonia comigo.



Grandiosa e fresca como a criação enche-me a voz do tenor,

A órbita flexível da sua boca derrama-se e sacia-me.



Oiço a perfeita soprano (que vale o meu canto comparado com o seu?)

A orquestra conduz-me em círculos mais largos que os de Urano,

Desperta-me ardores de que nunca suspeitara,

Faz-me navegar, tocar águas com os pés nus, as ondas que os lambem

indolentemente,

O granizo bate-me com toda a fúria, perco o ânimo,

Mergulho na doce morfina, estrangulam-me os falsos sinais da morte,

Por fim, de novo me ergo para sentir o enigma dos enigmas,

Isso a que chamamos Ser.





Walt Whitman

in Canto de Mim Mesmo

Assírio & Alvim, 1999
Etiquetas: fotografia, Fotogrfia DAVID HILLIARD


XX



Quem vem lá, ansioso, rude, místico, nu?

Como retiro forças da carne que me alimenta?



Em todo o caso, o que é um homem? Quem sou eu? Quem és tu?



Tudo o que assinalo meu chamarás teu,

Ou então perderias tempo a escutar-me.



Não lamento o que o mundo lamenta,

Que os meses são vazios e a terra apenas lodoçal e imundície.



O queixume e a humilhação juntam-se aos remédios para os inválidos, o

conformismo vai até à quarta geração,

Eu uso o chapéu como me apetece, dentro ou fora de casa.



Porque é que devia rezar? E venerar e ser cerimonioso?



Tendo examinado os estratos, analisando-os ao pormenor, consultando os

mestres, calculando com rigor,

Não encontro gordura mais agradável do que a que tenho agarrada aos meus

próprios ossos.



Em toda a gente vejo-me a mim mesmo, ninguém é mais do que eu, nem um

grão de cereal menos,

E o bem e o mal que digo de mim digo deles.



Sei que sou sólido e são,

Os objectos do universo convergem eternamente para mim,

Tudo foi escrito para mim e devo decifrar o seu sentido.

Sei que sou imortal,

Sei que esta minha órbita não pode ser traçada pelo compasso de um

carpinteiro,

Sei que não me apagarei como o fogo do archote que uma criança leva pela noite.



Sei que sou majestoso,

Não atormento o espírito para quem se defenda ou explique,

Sei que as leis elementares nunca se desculpam,

(No fim de contas, reconheço que o meu orgulho não é mais alto que o nível

onde edifico a minha casa).



Existo como sou, e isso basta,

Se mais ninguém no mundo o sabe fico satisfeito,

E se todos e cada um o sabem fico satisfeito.



Há um mundo que o sabe e é sem dúvida o mais vasto para mim, e esse sou

eu próprio,

E se o reconheço hoje ou dentro de dez mil ou dez milhões de anos,

Alegremente o posso aceitar agora, ou alegremente posso esperar.



O apoio do meu pé é entalhado em granito,

Rio-me daquilo que chamas dissolução,

E conheço a amplitude do tempo.



Walt Whitman

in Canto de Mim Mesmo

Assírio & Alvim, 1999
«Todos os impulsos, as emoções, as manifestações de vontades imagináveis, todas estas contingências da alma humana lançadas pela razão na imensidade negativa da noção de «sentimento», podem ser expressas por meio da multidão infinita das melodias possíveis, mas sempre exclusivamente na generalidade da forma pura, sem a substância, sempre somente como coisa em si, e não como aparência, de algum modo como a alma da aparência, incorporalmente. Esta relação íntima, que existe entre a música e a verdadeira essência de todas as coisas, explica-nos também por que, quando com pretexto de uma cena, de uma acção, de um evento, de um ambiente qualquer, ressoa uma música adequada, esta parece revelar-nos a significação mais secreta e afirmar-se como o mais exacto e mais luminoso dos comentários; compreendemos igualmente como é que aquele que se abandona sem reservas à impressão produzida por uma sinfonia julga ver desenrolar-se perante os seus olhos todos os acontecimentos imagináveis da vida e do mundo.»




Nietzsche, 1872

in A Origem da Tragédia

Guimarães Editores, p.130

A Máscara

Quarta-feira, 16 de Setembro de 2009

«Tira essa máscara de ouro ardente

E olhos de esmeralda.»

«Oh não, meu amor, atreves-te demasiado

A ver se um coração é selvagem e sábio,

Sem ser frio.»



«Só quero ver o que houver para ver,

O amor ou o engano.»

«Foi a máscara o que ocupou a tua mente,

E fez bater o teu coração,

Não o que está por detrás.»



«Mas a não ser que sejas minha inimiga

Devo inquirir.»

«Oh não, meu amor, deixa tudo ser como é;

Que importa, se entretanto houver fogo

Em ti e em mim?»



W. B. Yeats

in Uma Antologia

Assírio & Alvim, 1996
Segunda-feira, 21 de Setembro de 2009


Frases



Quando o mundo estiver reduzido a

um só bosque negro para os nossos quatro

olhos espantados - a uma praia para duas

crianças fiéis - a uma casa musical para

a nossa clara simpatia - encontrar-vos-ei.



Quando só haja aqui um velho solitário,

belo e calmo, rodeado de um «luxo

inaudito» - a vossos pés estarei.



Quando eu assumir a vossa ânsia

toda - seja eu aquela que vos estran-

gula - e estrangular-vos-ei.





------



Quando somos muito fortes - quem

foge?muito alegres - quem cai no ridí-

culo? Quando somos muito maus, que

fariam de nós?



Alindai-vos, dançai, desatai a rir.- Eu

nunca poderia atirar o Amor pela janela.



(...)



Jean-Arthur Rimbaud

in Iluminações

Estúdios Cor

Tradução Mário Cesariny
«O amarrador de Chihuahua recolheu o seu galo maltratado. Soprou-lhe o bico para o descongestionar e tentou que o animal se aguentasse nas patas. Mas ao ver que voltava a cair enroscado, como uma bola de penas, disse:


- Não há mais remédio senão liquidá-lo.

E já estava disposto a torcer-lhe o pescoço quando Dionisio Pinzón se atreveu a contê-lo:

- Não o mate - disse-lhe. - Pode curar-se e servirá, nem que seja para criação.

O de Chihuahua riu, trocista, e atirou o galo a Dionisio Pinzón como quem se desfaz de um trapo sujo. Dionisio alcançou-o, apanhando-o em pleno voo. Aconchegou-o nos seus braços com cuidado, quase com ternura e retirou-se com ele da cercadura.

Ao chegar a casa, fez um buraco debaixo da telha vã e, auxiliado pela mãe, enterrou ali o galo, deixando-lhe apenas a cabeça de fora.»



Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 310

MUSÉE DES BEAUX ARTS

Acerca do sofrimento, nunca se enganaram

Os Velhos Mestres: quão bem entenderam

A condição humana; como está presente

Enquanto os demais comem ou abrem uma janela ou seguem monotonamente a caminhar;

Como, enquanto os velhos esperam reverente e apaixonadamente

Pelo miraculoso nascimento, deve sempre haver

Crianças que não queriam especialmente que acontecesse, patinando

Num lago na orla da floresta:

Eles nunca esqueceram

Que até o mais terrível martírio tem que seguir o seu curso,

A um canto, custe o que custar, nalgum local descuidado

Onde os canídeos acorrem com suas vidas de cão, e o cavalo do torturador

Coça o seu inocente traseiro atrás de uma árvore.

No Ícaro de Brueghel, por exemplo: como tudo se afastaOciosamente do desastre; o lavrador poderá

Ter ouvido o splash, o grito desamparado,

Mas para ele não era um importante fracasso; o sol brilhou

Como devia sobre as pernas brancas que desapareceram na verde

Água; e o frágil e grandioso navio que deve ter visto

Algo de espantoso, um rapaz caindo do céu,

Tinha um destino para atender e afastou-se calmamente.

W.H Auden

domingo, 12 de dezembro de 2010

III



Lembra-te dos banhos em que foste afogado









Acordei com esta cabeça de mármore nas mãos

que extenua os meus cotovelos e não sei onde

pousá-la.

Ela tombava no sonho enquanto eu saía do sonho

a nossa vida uniu-se e será muito difícil separar-se

de novo.





Vejo os olhos; nem abertos nem fechados

falo à boca que continuamente procura falar

seguro as maçãs do rosto que ultrapassam a pele.

Já não tenho força;





as minhas mãos perdem-se e aproximam-se de mim

mutiladas.



Yorgos Seferis. Poemas Escolhidos. Trad. de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis. Relógio D'Água, Lisboa, 1993., p.23
Querida, hoje saí de casa já muito ao fim da tarde


para respirar o ar fresco que vinha do oceano.

O sol fundia-se como um leque vermelho no teatro

e uma nuvem erguia a sua cauda enorme como um piano.

Há um quarto de século adoravas tâmaras e carne no braseiro,

tentavas o canto, fazias desenhos num bloco-notas,

divertias-te comigo, mas depois encontraste um engenheiro

e, a julgar pelas cartas, tornaste-te aflitivamente idiota.

Ultimamente têm-te visto em igrejas da capital e da província,

em missas de defuntos pelos nossos comuns amigos; agora

não param (as missas). E alegra-me que no mundo existam ainda

distâncias mais inconcebíveis que a que nos separa.

Não me interpretes mal; a tua voz, o teu corpo, o teu nome

já não mexem com nada cá dentro. Não que alguém os destruísse,

só que um homem para esquecer uma vida, precisa pelo menos

de viver outra ainda. E eu há muito que gastei tudo isso.

Tu tiveste sorte; onde estarias para sempre - salvo talvez

numa fotografia - de sorriso trocista, sem uma ruga, jovem, alegre?

Pois o tempo, ao dar de caras com a memória, reconhece a invalidez

dos seus direitos. Fumo no escuro e respiro as algas podres.

1989

Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.63

Exortação

IV



Nas montanhas, avança lentamente. Se tiveres de rastejar, rasteja.

Majestosas ao longe, insignificantes ao perto para quem as veja,

as montanhas são a forma que uma superfície posta ao alto tem

e o carreiro sinuoso que parece horizontal e se sustém

é de facto vertical. Deitado na montanha, estás

de pé; de pé, estás deitado. O que prova que hás

de cair para seres livre. Assim do medo se triunfa,

e da vertigem do abismo e da embriaguês dos cumes.



V



Se gritarem ''Ei, tu aí!'', não te dês por achado. Sê surdo e mudo.

Mesmo que saibas a língua, não abras a boca por nada deste mundo.

Faz por não te expores, de perfil ou de frente; de vez em

quando, simplesmente não laves a cara. E quando degolarem

um cão à tua frente com uma serra, não te arrepies. Caso fumes,

apaga o cigarro com uma bisga. Quanto a roupa, veste-te

de cinzento, a cor da terra - sobretudo a de baixo -,

para reduzir a tentação de assim te meterem no caixão.



VI



Quando no deserto fizeres uma paragem, forma uma seta

com pedras - assim, se acordas de repente, sabes logo por ela

que direcção tomar. De noite, os demónios no deserto

perseguem os viajantes. Quem escuta o seu concerto

pode facilmente perder-se: um passo ao lado e é o além.

Espíritos, fantasmas, demónios, no deserto estão em casa. Também

tu, com os pés enterrados na areia, saberás isto sem errar

quando de ti só a alma for o que restar.



Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.47
«(...) ''sem advogar a substituição do Estado por uma biblioteca'', Brodskii acredita na auto-educação, no esforço da apreensão individual do mundo e do conhecimento pela prática da escrita, não só porque talvez os livros tenham sido para ele a melhor coisa que conheceu ao longo duma vida carregada de experiências fora do comum, mas porque escrever e ler livros era a única forma de, ao despertar para a vida adulta com a invasão da Hungria e o esmagamento da revolta pelos tanques soviéticos, garantir para si um espaço onde a mentira, nenhuma mentira penetraria. E como preencheria esse espaço, só a ele caberia saber.

Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.13
«Para o poeta, escrever poemas e viver são uma e a mesma coisa. ''Se a arte ensina alguma coisa (ao artista, em primeiro lugar), é a singularidade (privatness) da condição humana. Sendo a mais antiga e também a mais literal forma de actividade individual (private enterprise), [a arte] confere ao homem, disso consciente ou inconsciente, um sentido da sua unicidade, de individualidade, de ser à parte - fazendo-o assim passar de animal social a um 'Eu' autónomo. Podem partilhar-se muitas coisas: uma cama, um bocado de pão, convicções, uma amante, mas não um poema, digamos, de Rainer Maria Rilke. (...) um poema (...) dirige-se ao homem a sós, estabelece com ele relações directas, sem quaisquer intermediários.''»



Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.12

Fundación mítica de Buenos Aires

¿Y fue por este río de sueñera y de barro

que las proas vinieron a fundarme la patria?

Irían a los tumbos los barquitos pintados

entre los camalotes de la corriente zaina.

Pensando bien la cosa, supondremos que el río

era azulejo entonces como oriundo del cielo

con su estrellita roja para marcar el sitio

en que ayunó Juan Díaz y los indios comieron.

Lo cierto es que mil hombres y otros mil arribaron

por un mar que tenía cinco lunas de anchura

y aún estaba poblado de sirenas y endriagos

y de piedras imanes que enloquecen la brújula.

Prendieron unos ranchos trémulos en la costa,

durmieron extrañados. Dicen que en el Riachuelo,

pero son embelecos fraguados en la Boca.

Fue una manzana entera y en mi barrio: en Palermo.

Una manzana entera pero en mitá del campo

expuesta a las auroras y lluvias y suestadas.

La manzana pareja que persiste en mi barrio:

Guatemala, Serrano, Paraguay y Gurruchaga.

Un almacén rosado como revés de naipe

brilló y en la trastienda conversaron un truco;

el almacén rosado floreció en un compadre,

ya patrón de la esquina, ya resentido y duro.

El primer organito salvaba el horizonte

con su achacoso porte, su habanera y su gringo.

El corralón seguro ya opinaba YRIGOYEN,

algún piano mandaba tangos de Saborido.

Una cigarrería sahumó como una rosa

el desierto. La tarde se había ahondado en ayeres,

los hombres compartieron un pasado ilusorio.

Sólo faltó una cosa: la vereda de enfrente.

A mí se me hace cuento que empezó Buenos Aires:

La juzgo tan eterna como el agua y como el aire





Jorge Luis Borges

El Puñal

Etiquetas: Jorge Luis Borges, poesia, poetas argentinos


En un cajón hay un puñal.



Fue forjado en Toledo, a fines del siglo pasado; Luis Melián Lafinur se

lo dio a mi padre, que lo trajo del Uruguay; Evaristo Carriego lo tuvo

alguna vez en la mano.



Quienes lo ven tienen que jugar un rato con él; se advierte que hace

mucho que lo buscaban; la mano se apresura a apretar la empuñadura

que la espera; la hoja obediente y poderosa juega con precisión en la

vaina.



Otra cosa quiere el puñal.



Es más que una estructura hecha de metales; los hombres lo pensaron y

lo formaron para un fin muy preciso; es, de algún modo eterno, el puñal

que anoche mató un hombre en Tacuarembó y los puñales que mataron

a César. Quiere matar, quiere derramar brusca sangre.



En un cajón del escritorio, entre borradores y cartas, interminablemente

sueña el puñal con su sencillo sueño de tigre, y la mano se anima cuando

lo rige porque el metal se anima, el metal que presiente en cada

contacto al homicida para quien lo crearon los hombres.



A veces me da lástima. Tanta dureza, tanta fe, tan apacible o inocente

soberbia, y los años pasan, inútiles.





Jorge Luis Borges
«Uma camada de neve impoluta cobria a vegetação do bosque e acumulava‑se nas copas das árvores, caindo lentamente para o chão com um queixume seco. Quando me virei, vi um oceano invernal, que se espraiava do lado oposto ao do separador da auto‑estrada,sereno e tranquilo, como um mar de cor azul brilhante. Tudo o que via me enchia de nostalgia. Fechei firmemente o meu coração e voltei as costas ao mar.


A neve do bosque foi‑se tornando mais profunda, os ramos partidos e os pedaços de troncos duros faziam com me fosse mais difícil caminhar do que aquilo que eu tinha imaginado. De repente, um pássaro levantou voo por entre as árvores com um chilrear agudo. Parei e pus‑me a escuta, mas não ouvi mais nada, era como se não restasse mais ninguém neste mundo. Ao fechar os olhos, escutei o som das correntes dos carros que circulavam pela estrada, que soavam como cascavéis. Tive a sensação de não saber onde estava, de não saber quem era.»

Kyoichi Katayama. Um grito de amor desde o centro do mundo.Trad. Catarina Gândara, Editora Objectiva, 1ª ed., 2009, p. 10

Tormento

Morro diante o Sol e

diante o vento e diante as crianças que disputam o cão, morro

numa manhã que não pode vir a ser nenhum poema; só triste e verde e



interminável

é essa manhã...O meu pai e a minha mãe estão na ponte e julgam

que eu venho da cidade e não me trazem senão

as suas primaveras destroçadas em grandes cestos e vêem-me -

e não me vêem, porque

eu morro diante do Sol.



Um dia não verei mais os bosques, e a erva

há-de colher a tristeza da minha irmã. O arco da porta

ficará negro e o céu já não será

inatingível

para os meus desesperos...Num dia hei-de

ver tudo e a muitos enxugar os olhos

de manhã cedo...



Estou então de novo debaixo dos jasmins e

vejo como o jardineiro dispõe os mortos nos alegretes...

Morro diante do Sol.

Estou triste, porque há sempre dias que não voltam mais...A parte



nenhuma.







Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 123

Biografia da dor

Onde eu ontem dormi é hoje dia de descanso. Em frente da porta

estão empilhadas as cadeiras e nenhuma das pessoas a quem

pergunto por mim me viu.

Os pássaros lançaram-se no espaço, para desenharem o meu rosto nas nuvens

por cima da minha casa e por cima do jardim dos mortos.



Conversei com os mortos e falei da guitarra do mundo,

que as suas bocas já não produzem nem os seus lábios,

os quais falam uma linguagem que ofende o cão do meu primo.



A terra fala uma linguagem que ninguém entende,

porque é inesgotável - dela arranquei estrelas e tirei e pus

nos desesperos

e bebi vinho do seu jarro,

que é feito das minhas dores.



Estas estradas levam ao degredo. Oiço Deus

atrás de uma vidraça e o Diabo num altifalante

e os dois chegam juntos ao meu coração, que anuncia a ruína das



almas.

Redemoinham as folhas, incessantes, nas ruas

e causam graves danos nos monumentos.

Quero, em Outubro, sonhar com a verdura.

Debaixo da porta está afixado um mandamento:

NÃO MATARÁS

...mas o jornal fala todos os dias de três homicídios,

que poderiam ter sido cometidos por mim ou por um dos meus amigos.

Leio essas notícias como uma fábula,

de uma facada para outra - sem me aborrecer.

Enquanto eles confundem carne e glória, a minha alma dorme

sob o movimento da mão de Deus.



Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 119-121
«Súbito descortina-se então o mundo abandonado por deus como falta de substância, como mistura irracional de densidade e permeabilidade: o que antes parecia o mais sólido esfarela como argila seca ao primeiro contacto com quem está possuído pelo demónio, e uma transparência vazia por trás da qual se avistavam atraentes paisagens torna-se bruscamente uma parede de vidro, contra a qual o homem se mortifica em vão e insensatamente, qual abelhas contra uma vidraça, sem atinar que ali não há passagem.»




Georg Lukács
Com teu rir descarnado, tu, caveira,


Que me dizes, senão que em outro tempo,

Como o meu, delirou teu pobre cérebro,

A luz do dia procurou, com vasto

Desejo de verdade, e vagou triste

Em deprimente, lúgubre crepúsculo?




J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 40
«Toute oeuvre est réponde à une question, et la question qu'à son


tour doit se poser l'interprète, consiste à reconnaître [...]ce que

fut la question d'abord posé, et comment fut articulée la réponse»



Jean Starobinski
«Ardo como de mosto embriagado;


Ânimo sinto de arrojar-me ao mundo,

Da terra os gozos partilhar e as penas,

Lutar com a tormenta , e ao estrondo

De naufrágio cruel suster o rosto!»





J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 32/3
«Teu mundo é isto?! Chama-se isto um mundo?!

E perguntas ainda porque ansioso

Teu coração no peito confrange,

E oculto sofrer inexplicado

A energia vital em ti comprime?

Em lugar de vivente natureza.

Em cujo seio Deus criou os homens,

Rodeiam-te entre a podridão e o fumo

Somente ossadas nuas e esqueletos.»







J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 30/1
Etiquetas: Fausto, J.W.Goethe, poetas alemães, verso solto


240 Falar de inspiração pouco aproveita,

Nunca ao homem que hesita ela se mostra.

Se vos dais por poetas, que a poesia

A vosso mando ceda. O que é preciso

Já de mais o sabeis; licor bem forte

245 Desejamos beber; pois sem demora

No-lo dai preparado. Não se cumpre

Amanhã o que hoje não for feito,

E nem um dia só perder se deve.

Um homem resoluto, do possível

250 Lança mão com ardor, fugir não o deixa

E na empresa prossegue, assim lhe é a força.

Sabeis que cada qual nos nossos palcos

Exp'rimenta o que quer; pois neste dia

Prospectos não poupeis nem maquinismos.

255Da lua e sol servi-vos, e aos centos

Espalhai as estrelas. Fogo e águas,

Rochedos, bosques, pássaros não faltem.

Do bastidor no acanhado espaço

A criação inteira se desdobre,

260E caminhai, com rapidez medida,

Desce o céu, pela terra, ao fundo inferno.





J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 19/20
Sobre a Morte






Quando penso que os dias a passar

Em passos breves, mas em peso sentidos,

Minh'alma levam a espaços temidos

E a juventude à morte vai dar,



Por estranho e triste me pareça

Que em breve (ora vivo) eu vá morrer,

Vaga, incerta dor que pesa em meu ser

Faz com que a mente em pavor desfaleça.



Contudo mesmo em raiva, choro e pena

Cada instante é consolo ao coração

E com riso acolherei cada gemido:



Do fundo desespero a esp'rança acena.

Na morte não vejo a libertação -

É melhor o mau que o desconhecido.





Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 11
VI




Falar-te-ei uma linguagem de pedra

(respondes com um monossílabo verde)

Falar-te-ei uma linguagem de neve

(respondes com um leque de abelhas)

Falar-te-ei uma linguagem de água

(respondes com uma canoa de relâmpagos)

Falar-te-ei uma linguagem de sangue

(respondes com uma torre de pássaros







Octavio Paz. Antologia Poética. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1984., p.72

Pedras soltas

7. Paisagem



Os insectos atarefados,

os cavalos cor de sol,

os burros cor de nuvem,

as nuvens, rochas enormes que não pesam,

os montes como céus desmoronados,

a manada de árvores bebendo no arroio,

todos estão aí, felizes no seu estar,

frente a nós que não estamos,

comidos pela raiva, pelo ódio,

pelo amor comidos, pela morte.





Octavio Paz. Antologia Poética. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1984., p.49

GOSTO DOS AMIGOS

que modelam a vida

sem interferir muito;

os que apenas circulam

no hálito da fala

e apõem, de leve,

um desenho às coisas.

Mas, porque há espaços desiguais

entre quem são

e quem eles me parecem,

o meu agrado inclina-se

para o mais reconciliado,

ao acordar,

com a sua última fraqueza;

o que menos preside à vida

e, à nossa, preside

deixando que o consuma

o núcleo incandescente

dum silencioso votivo

de que um fumo de incenso

nos liberta.





Sebastião Alba. A noite dividida. Lisboa, Assírio & Alvim, 1996.,p.82

Destino de Poeta

Palavras? Sim, de ar,

e no ar perdidas.

Deixa-me perder entre palavras,

deixa-me ser o ar nuns lábios,

um sopro vagabundo sem contornos

que o ar desvanece.



Também a luz em si mesma se perde.





Octavio Paz. Antologia Poética. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1984., p.19
Etiquetas: Octávio Paz, poesia, poetas mexicanos


Lago



Tout pour l'oeil, rien pour les oreilles

Ch. B



Entre áridas montanhas

as águas prisioneiras

repousam, cintilam

como um céu caído.



Nada senão os montes

e a luz entre as brumas;

água e céu repousam,

peito a peito, infinitos.



Como o dedo que afaga

uns seios, um ventre,

estremece as águas,

delgado, um frio sopro.



Vibra o silêncio, bafo

de pressentida música,

invisível ao ouvido,

apenas para os olhos.





Octavio Paz. Antologia Poética. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1984., p.17
«Parecia a Iegoruchka que esta canção suave, dolente e melancólica, como um queixume, que mal se ouvia, ora vinha da direita, ora da esquerda, ora de cima ora de baixo da terra; dir-se-ia que um espírito invisível voava sobre a estepe cantando. Iegoruchka olhava em volta, sem conseguir compreender donde partia este estranho canto. Momentos depois, escutando com mais atenção, convenceu-se de que era a erva que cantava; meio morta, condenada sem remissão, tentava com esta canção sem palavras, queixosa mas sincera, convencer alguém da sua completa inocência; fora injustamente que o Sol a calcinara. Repetia que desejava ardentemente viver, que ainda era jovem e que, sem aquele calor e sem aquela secura, teria sido bela. Não era culpada, e no entanto pedia perdão a alguém e jurava que sofria horrivelmente, que estava infinitamente triste e era digna de dó.»










Anton Tchekoff. A Estepe. Livros de Bolso/ Europa-América. 2ª ed.Trad. Maria do Carmo Santos, 2003., p. 17
«(...) O rapazinho olhava atentamente aqueles lugares familiares enquanto a odiosa caleça corria à desfilada, deixando tudo para trás de si. Depois da prisão, foi a forja negra de fuligem que ele viu aparecer e desaparecer e depois o cemitério verde e acolhedor, cercado dum murinho de pedra grossa. Para lá do murinho distinguiam-se as cruzes e os jazigos, que, de longe, punham nódoas brancas e alegres por entre a folhagem das cerejeiras, Iegoruchka recordou-se que, quando estavam em flor, essas nódoas se confundiam com as flores de cerejeira num mar de brancura e que, quando as cerejas amadureciam, as cruzes e os jazigos ficavam salpicados de manchas vermelhas como sangue. Sob as cerejeiras, por trás do murinho, dormiam, noite e dia, o pai de Iegoruchka e a avó Zenaida Damilovna. Quando a avó morreu tinham-na posto num longo e estreito esquife com duas moedas de cinco copeques sobre os olhos, que não se queriam fechar. Até ao dia da sua morte estivera tão viva como toda a gente, e quando ia ao mercado trazia macios biscoitos cobertos de grãos de dormideiro. Agora não fazia senão dormir, dormir...»






Anton Tchekoff. A Estepe. Livros de Bolso/ Europa-América. 2ª ed.Trad. Maria do Carmo Santos, 2003., p. 7
«Para lá do cemitério, as chaminés dos fornos de tijolo deitavam fumo. Um fumo negro e espesso saía em grandes volutas por baixo dos grandes lenhados feitos de cana e abatidos contra o chão e depois eleva-se preguiçosamente para o céu. Por cima dos fornos de tijolo e do cemitério o céu estava dum tom ocre, enquanto nuvens de fumo cobriam os campos e a estrada com grandes sombras. Por entre o fumo, junto dos telhados, viam-se mexer homens e cavalos cobertos de poeira encarnada...

Transpostos os fornos de tijolo, a cidade cedia lugar ao campo. Iegoruchka virou-se uma última vez para olhar a cidade, encostou a cara ao cotovelo de Deniska e começou a chorar amargamente...

- Livra! Ainda não choraste tudo, meu palerma? -disse Kuzmitchov. - Olhem para este medricas a choramingar outra vez? Se não queres vir não venhas. Ninguém te obriga!

- Não chores, pequeno, não chores... - disse, por entre dentes, o padre Cristóvão em voz baixa e rápida.

-Não chores, pequeno. Pede a Deus que venha em teu auxílio...Se partes é para teu bem. Os estudos são, como se diz, a luz, e a ignorância, as trevas. Isto é que é a pura verdade.»







Anton Tchekoff. A Estepe. Livros de Bolso/ Europa-América. 2ª ed.Trad. Maria do Carmo Santos, 2003., p. 7/8

Os nós da escrita

Escrever é, para mim, tentar desfazer nós, embora o que na realidade acabo sempre por fazer seja embrulhar ainda mais os fios. A própria caligrafia é sufocada.

Há, todavia, um momento em que as palavras são cuspidas, saem em borbotões, e o sangue e a saliva impregnam o sentido. É impossível separá-los.

Por trás talvez não haja mesmo nada. São palavras que não estão ginasticadas, que secam e encarquilham como folhas por que a seiva já não passe.

Oprimem toda a página, através da qual deixa de ser possível respirar. Tapam-lhe os poros. A própria chuva que neles caia não se escoa.







Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 104

A Memória

Assim é a memória. Onde quer que eu me encontre abre um buraco, entra na terra, o que me dificulta a marcha ao mesmo tempo que acentua esta estranheza de eu me sentir eu até onde nem mesmo as minhas mãos, ainda que escavassem, lograriam ir. Granitos, xistos, cimentos, a nada ela deixa de aceder por causa deles - às vezes acontece essa inquietante coisa de, num prédio, ser como se ela atingisse o andar de baixo ou outro mais abaixo ainda, o que é de tal forma insidioso que, se alguém que dele chegasse me dissesse nada ter notado, eu ficaria atónito. Mas é na pele que tudo se reflecte com mais intensidade - a memória abre um sulco através dela, espalha-se-lhe à tona com tudo o que da terra atrás de si carrega até se misturar com a saliva, a qual -completamente subterrânea - é o que por fim lhe serve de coroa, aquilo a que chamamos, referindo o mar, rebentação. Vem sempre dar à pele o que a memória carregou, da mesma forma que, depois de revolvidos, os destroços vêm dar à praia.





Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 97

Decisões

«Devemos ser capazes de superar facilmente um estado lastimável, ainda que com uma energia forçada. [...]

Por isso, o melhor conselho é aceitar tudo, comportarmo-nos como uma massa pesada e, ainda que nos sintamos impelidos por um vendaval, não ceder à tentação de dar um único passo desnecessário, olhar para os outros com olhos de bicho, não sentir o menor arrependimento, esmagar com as próprias mãos aquilo que ainda resta da vida como um fantasma, ou seja, aumentar ainda o último silêncio, próprio do túmulo, e não aceitar mais nada a não ser ele.

Um gesto característico de um estado de espírito como este é o de passar com o dedo mínimo pelas sobrancelhas.»





Franz Kafka. Parábolas e Fragmentos. Selecção, trad. e prefácio João Barrento. Assírio & Alvim, 2004., p. 39/40

sobre a formação da parte visual da imaginação literária

«Digamos que diversos elementos concorrem para formar a parte visual da imaginação literária: a observação directa do mundo real , a transfiguração fantasmática e onírica, o mundo figurativo transmitido pela cultura em seus vários níveis, e um processo de abstracção, condensação e interiorização da experiência sensível, de importância decisiva tanto na visualização quanto na verbalização do pensamento.»





Italo Calvino. Seis propostas para o próximo milénio: lições americanas. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990., p. 110

Publicada por Beatriz em 7.6.10 0 comentários

O Fazedor

Nunca se havia demorado nos gozos da memória. As impressões resvalavam sobre ele, momentâneas e vívidas; o cinábrio de um oleiro, a abóbada carregada de estrelas que também eram deuses, a lua, donde tinha caído um leão, a lisura do mármore sob as lentas gemas sensíveis, o sabor da carne de javali, que gostava de dilacerar com dentadas brancas e bruscas, uma palavra fenícia, a sombra negra que uma lança projecta na areia amarela, a proximidade do mar ou das mulheres, o pesado vinho cuja aspereza era mitigada pelo mel eram capazes de abarcar por inteiro o âmbito da sua alma. Conhecia o terror mas também conhecia a cólera e a coragem, e uma vez foi o primeiro a escalar um muro inimigo. Ávido, curiosos, casual, sem outra lei que não a fruição e a indiferença imediata, andou pela variada terra e contemplou, numa e noutra costa do mar, as cidades dos homens e os seus palácios. Nos mercados populosos ou ao pé de uma montanha de cimo incerto, onde podia perfeitamente haver sátiros, fora-lhe dado ouvir complicadas histórias, que recebeu como recebia a realidade, sem indagar se eram verdadeiras ou falsas.

Gradualmente, o formoso universo foi-o abandonando; uma obstinada neblina apagou-lhe a linha das mão, a noite despovoou-se de estrelas, a terra tornou-se-lhe insegura debaixo dos pés. Tudo se afastava e tornava confuso. Quando soube que estava a ficar cego, gritou; o poder estóico ainda não tinha sido inventado e Heitor podia muito bem fugir sem menosprezo. Não mais verei (sentiu) nem o céu cheio de pavor mitológico, nem essa cara que os anos hão-de transformar. Dias e noites passaram sobre esse desespero da sua carne, mas uma manhã acordou, olhou (já sem assombro) as nebulosas coisas que o rodeavam e inexplicavelmente sentiu, como quem reconhece uma música ou uma voz, que já lhe tinha acontecido tudo isso e que tudo isso havia encarado com temor, mas também com júbilo, esperança e curiosidade. Desceu então até à sua memória, que lhe pareceu interminável e conseguiu arrancar àquela vertigem a recordação perdida que reluziu como uma moeda debaixo de chuva, talvez por nunca a ter olhado, a não ser porventura num sonho.

A recordação era a seguinte: Um outro rapaz tinha-o injuriado e ele tinha corrido para junto do pai e contara-lhe a história. O pai deixou-o falar como se não lhe desse ouvidos ou não compreendesse e dependurou da parede um punhal de bronze, muito belo e carregado de poder, que o rapaz havia cobiçado furtivamente. Agora tinha-o nas mãos e a surpresa da posse anulou a injúria sofrida, mas a voz do pai fez-se ouvir: Que alguém saiba que és um homem. E havia uma ordem na voz. A noite cegava os caminhos; abraçado ao punhal, em que pressentia uma força mágica, desceu a brusca ladeira que rodeava a casa e correu até à beira-mar, sonhando-se Ajax e Perseu e povoando as feridas e de batalhas a obscuridade salobra. O sabor preciso daquele instante era o que ele procurava. Queria lá saber do resto: as afrontas do desafio, o torpe combate, o regresso com a lâmina a sangrar.

Outra lembrança, em que também havia uma noite e uma iminência de aventura, desprendeu-se daquela. Uma mulher - a primeira que os deuses lhe proporcionaram - esperara por ele na sombra dum hipogeu, e ele pôs-se à procura dela através de galerias que eram como redes de pedra e através dos despenhadeiros que se dissolviam na sombra. Por que motivo chegavam até ele essas memórias e por que razão lhe chegavam sem amargura, como uma mera prefiguração do presente?

Não sem grave assombro compreendeu. Naquela noite, dos seus olhos mortais, a que agora descia, esperavam-no também o amor e o risco. Ares e Afrodite, porque já adivinhava (porque já o cercava) um rumor de glória e de hexâmetros, um rumor de homens que defendem um templo que os deuses não salvarão e de baixéis negros que procuram no mar uma ilha querida, o rumor das Odisseias e Ilíadas que era o seu destino cantar e deixar ressoando concavamente na memória humana. Sabemos estas coisas, mas desconhecemos as que sentiu ao descer à última sombra.









Jorge Luis Borges. Poemas Escolhidos. Edição bilingue.

Selecção e Trad. Ruy Belo. Dom Quixote, Lisboa, 2003, pp 69-73.

Instruções para perceber três pinturas célebres

O Amor Sagrado e o Amor Profundo, por Ticiano









Esta detestável pintura representa um velório nas margens do

Jordão. Raras vezes pôde a estupidez de um pintor aludir com

maior baixeza à esperança do Mundo num Messias que brilha

pela ausência; ausente do quadro que o mundo é, brilha horri-

velmente no obsceno bocejo do sarcófago de mármore, enquanto

o anjo encarregado de proclamar a ressurreição da sua carne

patibular espera impávido que os desígnios se cumpram. Não

preciso explicar que o anjo é essa figura nua, prostituída na sua

gordurosa maravilhosa, que se disfarçou de Madalena, ironia das

ironias, no momento em que a verdadeira Madalena avança pela

estrada (onde cresce a venenosa blasfémia de dois coelhos).

A criança que enfia a mão no sepulcro é Lutero, isto é, o

Diabo. Diz-se que a figura vestida representa a Glória no mo-

mento de anunciar que todas as ambições inumanas cabem numa

bacia; mas está mal pintadas e faz pensar num artifício de jasmins

ou num relâmpago de trigo.









Julio Cortázar.Histórias de Cronópios e de Famas. Trad. Alfacinha da Silva. Editorial Estampa, Lisboa, 1999, 2ª ed., p.17

Instruções para matar formigas em Roma

As formigas estão a comer Roma, está visto. Andam entre as pedras; que caminho de pedras preciosas, ó loba, te corta a garganta? De algum lado saem as águas das fontes, pedras vivas, os trémulos camafeus que em plena noite negam a história, as dinastias e comemorações. Encontrar o coração que faz pulsar as fontes e precavê-lo das formigas, organizar nesta cidade cheia de sangue, cheia de cornucópias tensas como mãos de cego, um rito de salvação para que o futuro parta nos montes os dentes, se arraste sem forças e lento, sem formigas nenhumas.

Localizar primeiro as fontes, o que se torna fácil estando nos mapas coloridos, nas monumentais plantas,as flores como repuxos e cascatas azul-celestes, só que é procurá-las bem, enfiadas num círculo a lápis azul e não vermelho, porque um bom mapa de Roma é como Roma, vermelho. Sobre o vermelho de Roma, o lápis traçará um risco violeta à volta de cada fonte, e podemos agora ficar mais descansados pois já conhecemos a língua das águas.

Mais difícil, ínfimo e secreto é furar a pedra opaca sob a qual serpenteiam as veias de mercúrio, descobrir à força da paciência a chave de cada fonte, velar amorosamente em noites de lua penetrante junto aos vasos imperiais, até que de tanto sussurro verde, de tanto gotejar como flores, vão nascendo as direcções, as confluências, as outras vias, as vivas. E, despertos, segui-las com varas de aveleira em forma de forquilha, triangulares, duas varinhas em cada mão, segurar um só nos dedos soltos, mas tudo isto invisível aos carabineiros e à amavelmente receosa população, andar pelo Quirinal, subir ao Campidoglio, aos gritos correr pelo Pincio, imóvel como um globo de fogo perturbar a ordem da Piazza della Essedra, extrair dos surdos metais do solo a nomenclatura dos rios subterrâneos.E não pedir ajuda a ninguém, nunca.

E ver como nesta mão de mármore desolado as veias vogam harmoniosas, no prazer da água, artifício do jogo, até aos poucos se irem chegando, a confluir, enlaçar-se a crescer em artérias, desaguar duras na praça central onde palpita o tambor de vidro líquido, a raiz de copas pálidas, o cavalo profundo. Então saberemos onde, em que abóbodas calcárias, entre pequenos esqueletos de lémures, o coração da água tem o seu tempo.

É difícil sabê-lo, mas saber-se-á. Então mataremos as formigas que cobiçam as fontes, fogo pregaremos às galerias que esses horríveis mineiros tramam para possuir a vida secreta de Roma. Basta chegar primeiro à fonte central e mataremos as formigas. E num comboio nocturno, obscuramente felizes, fugiremos das lâminas vingadoras, misturados com soldados e freiras.





Julio Cortázar. Histórias de Cronópios e de Famas. Trad. Alfacinha da Silva. Editorial Estampa, Lisboa, 1999, 2ª ed., p.20/1

A Celebração do Lagarto

Leões na rua, vadios

Cães babando raiva e cio

Fera enjaulada dentro da cidade

O corpo da mãe

A apodrecer no asfalto do Verão.

Ele fugiu da cidade.



Desceu para Sul e passou a fronteira

Deixou o caos e a desordem

Tudo para trás das costas.



Acordou um dia numa pensão verde

Com um estranho ser rosnando ao seu lado.

O suor encharcava-lhe a pele luzidia.



Já está toda a gente?

Vamos dar início ao cerimonial.





Desperta!

Não te lembras de onde foi?

O tal sonho terminou?



A serpente era de ouro baço

Vítrea & enroscada.

Receávamos tocar-lhe.

Os lençóis eram prisões mortalmente abafadas

& ela sempre à minha beira.

Velha não era...jovem

De cabelo ruivo escuro

A pele branca e macia.

Corre prà casa de banho e vê-te

ao espelho!



Aí vem ela a entrar

Cada gesto dela é um século lento que eu não sei viver.

Deixo-me cair e encosto a cara

Ao cimento gelado.

Sinto a fria doçura do sangue a espicaçar-me,

O brando assobio das serpentes da chuva...



Brinquei em tempos a um jogo

Gostava de regressar rastejando mentalmente

Deves saber de que jogo se trata

É o jogo chamado «fazer de maluco»



Devias tentar brincar a esse jogo

Fechas os olhos esqueces o nome

Esqueces o mundo, esqueces toda a gente

E ambos erguemos uma torre diferente.



(...)





Jim Morrison. Uma Oração Americana e outros escritos. Assírio & Alvim, Lisboa., pp. 89-91