domingo, 12 de dezembro de 2010

Querida, hoje saí de casa já muito ao fim da tarde


para respirar o ar fresco que vinha do oceano.

O sol fundia-se como um leque vermelho no teatro

e uma nuvem erguia a sua cauda enorme como um piano.

Há um quarto de século adoravas tâmaras e carne no braseiro,

tentavas o canto, fazias desenhos num bloco-notas,

divertias-te comigo, mas depois encontraste um engenheiro

e, a julgar pelas cartas, tornaste-te aflitivamente idiota.

Ultimamente têm-te visto em igrejas da capital e da província,

em missas de defuntos pelos nossos comuns amigos; agora

não param (as missas). E alegra-me que no mundo existam ainda

distâncias mais inconcebíveis que a que nos separa.

Não me interpretes mal; a tua voz, o teu corpo, o teu nome

já não mexem com nada cá dentro. Não que alguém os destruísse,

só que um homem para esquecer uma vida, precisa pelo menos

de viver outra ainda. E eu há muito que gastei tudo isso.

Tu tiveste sorte; onde estarias para sempre - salvo talvez

numa fotografia - de sorriso trocista, sem uma ruga, jovem, alegre?

Pois o tempo, ao dar de caras com a memória, reconhece a invalidez

dos seus direitos. Fumo no escuro e respiro as algas podres.

1989

Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.63

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