domingo, 12 de dezembro de 2010

Exortação

IV



Nas montanhas, avança lentamente. Se tiveres de rastejar, rasteja.

Majestosas ao longe, insignificantes ao perto para quem as veja,

as montanhas são a forma que uma superfície posta ao alto tem

e o carreiro sinuoso que parece horizontal e se sustém

é de facto vertical. Deitado na montanha, estás

de pé; de pé, estás deitado. O que prova que hás

de cair para seres livre. Assim do medo se triunfa,

e da vertigem do abismo e da embriaguês dos cumes.



V



Se gritarem ''Ei, tu aí!'', não te dês por achado. Sê surdo e mudo.

Mesmo que saibas a língua, não abras a boca por nada deste mundo.

Faz por não te expores, de perfil ou de frente; de vez em

quando, simplesmente não laves a cara. E quando degolarem

um cão à tua frente com uma serra, não te arrepies. Caso fumes,

apaga o cigarro com uma bisga. Quanto a roupa, veste-te

de cinzento, a cor da terra - sobretudo a de baixo -,

para reduzir a tentação de assim te meterem no caixão.



VI



Quando no deserto fizeres uma paragem, forma uma seta

com pedras - assim, se acordas de repente, sabes logo por ela

que direcção tomar. De noite, os demónios no deserto

perseguem os viajantes. Quem escuta o seu concerto

pode facilmente perder-se: um passo ao lado e é o além.

Espíritos, fantasmas, demónios, no deserto estão em casa. Também

tu, com os pés enterrados na areia, saberás isto sem errar

quando de ti só a alma for o que restar.



Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.47

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