sábado, 9 de março de 2013

A MULHER (I)

JOÃO CABRAL DE MELO NETO - A MULHER (I)

ESTUDOS PARA UMA BAILADORA ANDALUZA

1

Dir-se-ia, quando aparece
dançando por siguiriyas,
que com a imagem do fogo
inteira se identifica.

Todos os gestos do fogo
que então possui dir-se-ia:
gestos das folhas do fogo,
de seu cabelo, sua língua;

gestos do corpo do fogo,
de sua carne em agonia,
carne de fogo, só nervos,
carne toda em carne viva.

Então, o caráter do fogo
nela também se adivinha:
mesmo gosto dos extremos,
de natureza faminta,

gosto de chegar ao fim
do que dele se aproxima,
gosto de chegar-se ao fim,
de atingir a própria cinza.

Porém a imagem do fogo
é num ponto desmentida:
que o fogo não é capaz
como ela é, nas siguiriyas,

de arrancar-se de si mesmo
numa primeira faísca,
nessa que, quando ela quer,
vem e acende-a fibra a fibra,

que somente ela é capaz
de acender-se estando fria,
de incendiar-se com nada,
de incendiar-se sozinha.


2

Subida ao dorso da dança
(vai carregada ou a carrega?)
é impossível se dizer
se é a cavaleira ou a égua.

Ela tem na sua dança
toda a energia retesa
e todo o nervo de quando
algum cavalo se encrespa.

Isto é: tanto a tensão
de quem vai montado em sela,
de quem monta um animal
e só a custo o debela,

como a tensão do animal
dominado sob a rédea,
que ressente ser mandado
e obedecendo protesta.

Então, como declarar
se ela é égua ou cavaleira:
há uma tal conformidade
entre o que é animal e é ela,

entre a parte que domina
e a parte que se rebela,
entre o que nela cavalga
e o que é cavalgado nela,

que o melhor será dizer
de ambas, cavaleira e égua,
que são de uma mesma coisa
e que um só nervo as inerva,

e que é impossível traçar
nenhuma linha fronteira
entre ela e a montaria:
ela é a égua e a cavaleira.


3

Quando está taconeando
a cabeça, atenta, inclina,
como se buscasse ouvir
alguma voz indistinta.

Há nessa atenção curvada
muito de telegrafista,
atento para não perder
a mensagem transmitida.

Mas o que faz duvidar
possa ser telegrafia
aquelas respostas que
suas pernas pronunciam

é que a mensagem de quem
lá do outro lado da linha
ela responde tão séria
nos passa despercebida.

Mas depois já não há dúvida:
é mesmo telegrafia:
mesmo que não se perceba
a mensagem recebida,

se vem de um ponto no fundo
do tablado ou de sua vida,
se a linguagem do diálogo
é em código ou ostensiva,

já não cabe duvidar:
deve ser telegrafia:
basta escutar a dicção
tão morse e tão desflorida,

linear, numa só corda,
em ponto e traço, concisa,
a dicção em preto e branco
de sua perna polida.


4

Ela não pisa na terra
como quem a propicia
para que lhe seja leve
quando se enterre, num dia.

Ela a trata com a dura
e muscular energia
do camponês que cavando
sabe que a terra amacia.

Do camponês de quem tem
sotaque andaluz caipira
e o tornozelo robusto
que mais se planta que pisa.

Assim, em vez dessa ave
assexuada e mofina,
coisa a que parece sempre
aspirar a bailarina,

esta se quer uma árvore
firme na terra, nativa,
que não quer negar a terra
nem, como ave, fugi-la.

Árvore que estima a terra
de que se sabe família
e por isso trata a terra
com tanta dureza íntima.

Mais: que ao se saber da terra
não só na terra se afinca
pelos troncos dessas pernas
fortes, terrenas, maciças,

mas se orgulha de ser terra
e dela se reafirma,
batendo-a enquanto dança,
para vencer quem duvida.


5

Sua dança sempre acaba
igual como começa,
tal esses livros de iguais
coberta e contracoberta:

com a mesma posição
como que talhada em pedra:
um momento está estátua,
desafiante, à espera.

Mas, se essas duas estátuas
mesma atitude observam,
aquilo que desafiam
parece coisas diversas.

A primeira das estátuas
que ela é, quando começa,
parece desafiar
alguma presença interna

que no fundo dela própria,
fluindo, informe e sem regra,
por sua vez a desafia
a ver quem é que a modela.

Enquanto a estátua final,
por igual que ela pareça,
que ela é, quando um estilo
já impôs à íntima presa,

parece mais desafio
a quem está na assistência,
como para indagar quem
a mesma façanha tenta.

O livro de sua dança
capas iguais o encerram:
com a figura desafiante
de suas estátuas acesas.


6

Na sua dança se assiste
como ao processo da espiga:
verde, envolvida de palha;
madura, quase despida.

Parece que sua dança
ao ser dançada, à medida
que avança, a vai despojando
da folhagem que a vestia.

Não só da vegetação
de que ela dança vestida
(saias folhudas e crespas
do que no Brasil é chita),

mas também dessa outra flora
a que seus braços dão vida,
densa floresta de gestos
a que dão vida a agonia.

Na verdade, embora tudo
aquilo que ela leva em cima,
embora, de fato, sempre,
continue nela a vesti-la,

parece que vai perdendo
a opacidade que tinha
e, como a palha que seca,
vai aos poucos entreabrindo-a.

Ou então é que essa folhagem
vai ficando impercebida:
porque terminada a dança
embora a roupa persista,

a imagem que a memória
conservará em sua vista
é a espiga, nua e espigada,
rompente e esbelta, em espiga.


"A alma feminina jaz adormecida dentro dos trapos, das jóias, do império da moda, – a eterna sultana desse harém de civilizados que ainda compram, vendem, exploram, seduzem, abandonam por imprestável a mesma mulher, cuja posse exclusiva consiste a sua preocupação única. É deprimente a situação da mulher superior, neste meio de cafetismo social, em que os homens não sabem olhar uma mulher senão desrespeitando-a.

E para quê enumerar essas associações atrasadas do feminismo de caridades?

Sem dúvida é doloroso perscrutar as misérias dos famintos, da nudez, dos cortiços.

Mas, não se trata de esverrumar a causa da chaga sangrenta da miséria, mesmo do coração da opulência, ao lado da ociosidade que se diverte cinicamente, depois de atirar uns níqueis para os esfaimados, níqueis roubados ao trabalho árduo dos explorados do salário. "

- Maria Lacerda de Moura


“Estou convencido de que os obstáculos de tempo e distância serão removidos. As cidades exiladas na América do Sul entrarão em contato direto com o mundo de hoje. Os países distantes se encontrarão (...). Os Estados Unidos e os países sul-americanos se conhecerão tão bem como a Inglaterra e a França se conhecem (...). Anulados o tempo e a distância, as relações comerciais (...) se desenvolverão espontaneamente (...). Seremos mais fortes nos nossos laços de compreensão e amizade. Tudo isso, senhores, será realizado pelo aeroplano.”
- Alberto Santos-Dumont


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Vida e obra de Alberto Santos-Dumont: http://www.elfikurten.com.br/2011/11/alberto-santos-dumont-eu-naveguei-pelo.html


do orvalho
nunca esqueça
o branco gosto solitário

Matsuo Bashô

Tradução: Paulo Leminski


Visita ao cemitério.
O velho cão de família
ensina o caminho.

Kobayashi Issa

Tradução: Casimiro de Brito

A boca na fonte, do poeta português Casimiro de Brito (Póvoa de Santa Iria: Lua de marfim / Editora Unip Lda., 2012).