sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Rios de lava lavam com fogo liquido meus amanheceres.

Wilson Roberto Nogueira

como se nasce e como se morre de fascismo


Umberto Eco, como se nasce e como se morre de fascismo
REVISTA IHU ON-LINE

Cultura Pop. Na dobra do óbvio, a emergência de um mundo complexo

Edição: 545


17 Janeiro 2018
O fascismo é como a tuberculose. A pessoa tem uma aparência saudável e, de repente, começa a expelir sangue. Isso é o que sabe e o que conta Umberto Eco em Il Fascismo eterno - La nave di Teseo, (O Fascismo Eterno, O Navio de Teseu), utilizando materiais de um evento que organizamos juntos na Columbia University.

Naquela época (1995) eu estava ensinando na universidade e era o diretor do Instituto Italiano de Cultura. A intenção era celebrar pela primeira vez, publicamente, a data de 25 de abril nos Estados Unidos (Festa da Libertação, ndt). Os protagonistas eram, além de Eco, Giorgio Strehler, o lendário diretor de Brecht no Piccolo Teatro de Milão e Lucianio Rebay, comandante da resistência na juventude e professor de poesia na Universidade de Columbia pelo resto de sua vida. Strehler e Rebay falaram sobre resistência e prisões, traidores e heróis na Milão do último fascismo.

A reportagem é de De Furio Colombo, publicada por Fatto Quotidiano, 15-01-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.

O fascismo é como a tuberculose. A pessoa tem uma aparência saudável e, de repente, começa a expelir sangue. Isso é o que sabe e o que conta Umberto Eco em Il Fascismo eterno - La nave di Teseo

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Eco narra neste livro como se nasce e como se morre de fascismo. Eis aqui o começo: "Em 1942, aos 10 anos, ganhei um prêmio respondendo a uma pergunta ‘Deveríamos morrer pela glória de Mussolini?’. Minha resposta foi sim. Eu era um menino esperto".

Eco escolheu um extraordinário fragmento de autobiografia que, no final, você percebe, torna-se toda a sua autobiografia, claro que do ponto de vista moral e intelectual: o que entende uma criança de fascismo? Que legado fica para um adulto depois de um encontro tão assustador? E como você pode se comprometer para sempre em defender a liberdade, quando percebe que o pesadelo não acaba?

"O fascismo cresce e busca consenso explorando e exacerbando o medo natural de diferença”

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Umberto Eco não viu os fascistas de Como, que entraram em uma casa particular, que circundaram um grupo de voluntários pró-migrantes para ler sua mensagem. Mas era escritor e filósofo, e sabia que aquele perigo estava por vir. "Na Itália, algumas pessoas se questionam se a resistência teve um impacto militar. Para a minha geração a questão era irrelevante: logo percebemos o significado moral e psicológico da Resistência", Eco escreve em seu livro, que é imprescindível ter e difundir.
"Que este seja o nosso lema: jamais esquecer”
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Mas reflete sobre essas afirmações, escrevendo no final: "O fascismo cresce e busca consenso explorando e exacerbando o medo natural de diferença. O primeiro apelo de um movimento fascista ou prematuramente fascista é contra os intrusos. Todo fascismo, portanto, é racista por definição".

Essas poucas páginas são um dos livros mais belos e mais importantes de Eco. Ele termina com uma maravilhosa poesia de Fortini ("No parapeito da ponte / as cabeças dos enforcados ....") e com sua advertência: "Que este seja o nosso lema: jamais esquecer".

O perigo real é o retorno do fascismo”


 Entrevista com o filósofo Rob Riemen
REVISTA IHU ON-LINE


28 Outubro 2017
“No momento, negamo-nos a ver o retorno do fascismo. Dizem-me que falo dos perigos do populismo. Não é assim. O populismo é como os mosquitos, um pouco irritantes. O perigo real é o retorno do fascismo. O fascismo é o cultivo político de nossos piores sentimentos irracionais: o ressentimento, o ódio, a xenofobia, o desejo de poder e o medo. Não deveríamos confundir os dois conceitos. Devemos chamar o fascismo por seu nome”, afirma Rob Riemen (Países Baixos, 1962), ensaísta, filósofo e diretor do prestigiado Nexus Institute.

Riemen esteve recentemente no México para apresentar a obra Para combatir esta era. Consideraciones urgentes sobre el fascismo y el humanismo (Taurus, 2017), uma poderosa alegação em favor do humanismo como antídoto contra o renascimento do fascismo. Concedeu-nos esta entrevista em uma manhã nublada, como nosso tempo.

A entrevista é de Laura Emilia Pacheco e Fernando García Ramírez, publicada por Letras Libres, 21-10-2017. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.
Em seu primeiro livro, retoma o ideal democrático de Thomas Mann da “nobreza de espírito”. A nobreza de espírito, que é individual, pode se opor ao avanço do fascismo, um movimento da sociedade de massas?

Em 1947, enquanto trabalhava em Doutor Fausto, Mann escreveu sua conferência A filosofia de Nietzsche à luz de nossa experiência. Nela dizia que nenhuma medida técnica, instituição política, nem ideia de governo mundial conseguiria avançar para uma nova ordem social sem que antes se desenvolvesse um clima espiritual alternativo. Para Mann, a única forma de deter os avanços do fascismo era mediante a nobreza de espírito. Concordo.

O fascismo nasceu no interior da sociedade. A ignorância da sociedade de massas é também uma ignorância dos valores espirituais e morais. O fascismo surge neste contexto. Como afirmo em Para combatir esta era: apesar do progresso científico e tecnológico e do enorme acesso à informação, a força dominante de nossa sociedade é a estupidez organizada. Não se detém o fascismo através da economia, da tecnologia ou da ciência, nem sequer através das instituições – porque dependem das pessoas que as formam -, mas, sim, com uma mentalidade distinta. Mann, Camus, Sócrates e muitos outros pensadores advertiram que a “nobreza de espírito” é um dos ideais mais democráticos que existem. Para cultivá-la não é necessário dinheiro, ser tecnologicamente habituado ou ter um título universitário. A nobreza de espírito é uma mentalidade, é saber do que se trata a dignidade humana.

'Para combatir esta era'  é um chamado às elites políticas, econômicas, acadêmicas e intelectuais. Elites que, no entanto, parecem estar atravessando uma crise. Afirma que “geraram o vazio espiritual no qual o fascismo pode crescer outra vez”.

Enfrentamos dois problemas diferentes. O primeiro é o tipo de elites dominantes em nossa sociedade. As elites políticas, econômicas e midiáticas são as que têm mais poder e influência. São definidas e validadas pela quantidade, não pela qualidade. No mundo da cultura, não obstante, o conceito tem um significado distinto: a elite expressa a qualidade. Pensemos na União Soviética de Stalin: de um lado, estavam as elites do poder, os dirigentes do partido e, como contrapeso, uma minúscula elite moral representada por [Boris] Pasternak, [Osip] Mandelstam, [Anna] Akhmátova e, posteriormente, [Joseph] Brodsky. Uma das coisas que ocorre em nossa era do capitalismo rampante é que a única elite que reconhecemos é a do poder, que só expressa quantidade. O fato de as elites intelectuais e artísticas estarem marginalizadas reflete que os mais altos valores da sociedade atual são os do comércio e da tecnologia. É indispensável fazer um chamado às elites, incluindo a elite acadêmica: tem uma posição privilegiada que acarreta uma responsabilidade que não estão aceitando. Teriam que ser combatentes contra esta era.

Parte do fenômeno ao qual enfrentamos hoje foi retratado por Hermann Broch no terceiro volume de Os sonâmbulos, onde analisa o declive dos valores. Para Broch, não é que já não existam valores, mas, ao contrário, em consequência de já não existir um valor universal e transcendental, todos os valores se fragmentam e se tornam pequenos. À classe política só interessa o poder, à classe militar só interessa ter mais armas, aos médicos só interessa ter mais remédios, ao mundo tecnológico só interessa desenvolver mais tecnologia. Já não existe um sentido de responsabilidade geral. E não só isso: esses grupos não falam o mesmo idioma, não se comunicam, não existe um diálogo entre eles.

Em seu romance O homem sem qualidades, Robert Musil coloca esses grupos – generais, empresários, intelectuais e aristocratas – em conversa. Para Musil, eles se reúnem porque estão em busca da “grande ideia”. É uma bela metáfora que Musil retoma de Os demônios de Dostoievski. Perdemos a “grande ideia”. Em termos mais acadêmicos, diríamos que perdemos o grande relato. As consequências sociológicas dessa ausência são imensas. Na Idade Média, por exemplo, as pessoas faziam parte de uma grande ideia única. Isso se acabou, por bons motivos, mas agora temos uma sociedade completamente fragmentada, individualizada, com uma classe governante que perdeu o sentido comum ou o bom sentido, e não temos um governo que queira velar pelo bem comum.

Contribuiu para a deflagração da Segunda Guerra Mundial o fato das elites ficarem em um processo de sonambulismo, adormecidas. Está ocorrendo novamente. Para Hermann Broch, o sonâmbulo se nega a ver a tormenta. No momento, negamo-nos a ver o retorno do fascismo. Dizem-me que falo dos perigos do populismo. Não é assim. O populismo é como os mosquitos, um pouco irritantes. O perigo real é o retorno do fascismo. O fascismo é o cultivo político de nossos piores sentimentos irracionais: o ressentimento, o ódio, a xenofobia, o desejo de poder e o medo. Não deveríamos confundir os dois conceitos. Devemos chamar o fascismo por seu nome.

Ao que se deve que a sociedade negue a assumir que o fascismo está de volta?

Ao embaraço de políticos e acadêmicos. Ao menos é o que acontece no Ocidente. Adverti isto, há alguns anos, quando publiquei nos Países Baixos O eterno retorno do fascismo, o primeiro ensaio de Para combatir esta era. Recebi um tsunami de respostas negativas. Nos jornais, apareciam artigos enfurecidos, assinados por políticos, que diziam que eu deveria me sentir envergonhado. Os acadêmicos também se irritaram porque eu disse que na academia se dedicam a escrever notas de rodapé, ao invés de se envolver politicamente. Não me permitiram dizer que o deputado neerlandês Geert Wilders é um fascista.

Aceitar o retorno do fascismo representa um problema para alguns pensadores progressistas, pois significa que nossa sociedade tem fantasmas que se negam a morrer. Embora há exceções, os acadêmicos em geral não sabem nada. O problema fundamental que está atingindo a academia é a confusão entre a ciência e a verdade. Sabemos a respeito da brilhante ideia que teve Descartes ao separar a alma do corpo. Foi a partir desta nova ideia que pudemos fazer descobertas científicas. Mas, tempo depois, em 1725, Giambattista Vico advertiu que, apesar da grande admiração que tinha por Descartes, não devíamos cometer o erro de pensar que o paradigma científico – mesmo que adequado para explicar o que ocorre na natureza – nos faria compreender o ser humano e sua sociedade, porque somos uma espécie espiritual.

Nossos sentimentos e emoções vão além do paradigma científico. Os acadêmicos, no entanto, se negaram a escutar a advertência de Vico, ou a esqueceram. Constantemente, as humanidades têm que provar que são científicas e lhes impõem a necessidade de inventar teorias. Simon Schama explicou que a história é composta por uma série de relatos, mas são poucos os historiadores que contam algo. Tudo são teorias. Isto se aplica também para a psicologia e a sociologia. Existe um mal-entendido no campo das humanidades e com sorte um dia nos darão mais conhecimentos que dados. Ao não compreender, não fazem parte do debate público. Como não há evidência empírica de que enfrentamos o fascismo, negam-se a pensar que está de volta.

Enfrentamos um novo gnosticismo e quem o cultiva é essencialmente a esquerda: “as pessoas” se sentem traídas, “as pessoas” não sabem o que fazer. Em certo sentido, isto é tão antidemocrático como o fascismo. Eis, aqui, onde estamos atolados. O que não temos é um “humanismo cívico”. O que a sociedade perdeu é a noção de humanismo no discurso cívico. Isso é algo que devemos recuperar o quanto antes, porque, caso contrário, nos dirigimos ao desastre.

Mas, não há somente ciências da natureza, também existem a ciência política e a ciência econômica. Ou seja, a quantificação de elementos econômicos e políticos de um ponto de vista científico.

Se a economia fosse uma ciência, por que não conseguiu prever a crise econômica de 2008 ou a enfrentar? A ciência política se reduz só a dados e não contribui em nada. Ao querer se concentrar neste paradigma, a ciência se limita. O argumento de Giambattista Vico é que se queremos compreender o ser humano e entender a sociedade, precisamos de história, poesia, filosofia, música e arte. Isto nos dará um conhecimento absoluto? Não, porque o ser humano transcende o conhecimento absoluto.

Pensa-se que falar de alma e espírito humano é antiquado. Se isso é correto, perdemos o rumo. Qual é a essência do ser humano? Sócrates diz que é a alma. Em suas Disputaciones tusculanas, Marco Tulio Cícero escreveu sua famosa sentença de onde provém nossa noção de cultura: “o cultivo da alma, isso é a filosofia”. E, certamente, junto à filosofia, perdemos a busca da sabedoria, o cultivo da alma. De modo que não deve nos surpreender o tipo de mundo em que vivemos.

Não sou contra a informação e os fatos, mas não necessariamente são conhecimento, nem sabedoria. Os poetas e os artistas dizem que a linguagem é como um espelho que nos diz se somos autênticos. Ao final de Apologia, Sócrates adverte que, sem a linguagem das musas, sem a linguagem da música, da poesia e da arte, seria impossível nos expressar; seria impossível compreender nossos sentimentos e lidar com nossas frustrações, temores e solidão. Por isso, é importante ter essa linguagem que – como já disse [Marcel] Proust – é o que nos permite entender o outro. Nunca seremos capazes de apreciar e articular nossas experiências mais profundas sem a linguagem das musas.

As sociedades que estão dominadas pelo medo são propensas ao contágio do populismo, mas o medo é inevitável em sociedades como as nossas, assediadas pelo terrorismo e a violência do narcotráfico.

Não são as sociedades, somos nós mesmos. Nossa psique está invadida pelo temor: somos a única espécie que tem consciência de sua mortalidade. O temor é um sentimento inerente ao ser humano. Mais que de uma educação ou de uma filosofia, Sócrates falava de uma Paideia: de como viver a vida. Um de seus elementos é como lidar com nossos temores. Perdemos os instrumentos que nos permitem fazer isso. Por que sociedades são tão inseguras? Por que dependem tanto de psiquiatras? Por que depositamos nosso sentido de bem-estar e confiança nos bancos, nas companhias de seguros e nos sistemas de pensões? Em parte, é porque nossa sociedade se tornou muito mais materialista e acreditamos que as seguradoras irão cuidar de nós. Para que devo cultivar minhas habilidades ou certo caráter se, enquanto minha conta de banco estiver boa, estarei bem? Sócrates pensava que o valor é a habilidade de se conquistar a si mesmo, o valor para cultivar nossa alma, e queria que recebêssemos uma educação que nos tornasse corajosos, conquistar nossos temores, frustrações, inseguranças de modo que tenhamos a coragem para agir.

Imaginemos uma sociedade na qual nos déssemos conta de que a autêntica segurança não deveria vir de nossa conta bancária, mas de nós mesmos. Imaginemos uma sociedade na qual, em verdade, tratássemos de nos educar para sermos corajosos. É a única maneira de se opor ao que está ocorrendo. Isto não significa que não haverá mais tragédias, mas como sociedade seríamos muito mais fortes.

Afirma que o medo leva os povos a buscar um líder que os salve e proteja. Sua advertência de que o fascismo está de volta, não é uma forma de provocar medo nas elites?

Ao falar de elites nos referimos à elite do poder. Isso já acontece nos Estados Unidos, onde a classe que compõe os financistas de Wall Street está em ascensão. É exatamente o que ocorreu na Alemanha nazista por falta de cálculo, oportunismo e pensamento estratégico: as elites – não só as elites do poder, mas também muitos acadêmicos e intelectuais – pensavam que Hitler não podia ser tão mau. Enquanto o líder fascista se dedica a seus próprios interesses, parece que não importa para ninguém. Chegado o momento, se as coisas se colocam muito mal em um regime totalitário, não há possibilidade de erguer a voz. Por que as pessoas precisam tanto da figura de um líder? Por que a sociedade anseia um herói? Os heróis atuais são as celebridades. Sabemos que Trump pôde chegar à Casa Branca graças ao fato de que, durante doze anos, apareceu constantemente na televisão. Assim, de forma grande, é a fome de líderes, heróis, gurus e messias. É por este motivo que procuro fazer uma defesa do humanismo. Se alguém é suficientemente afortunado na vida, encontra um mestre: um homem ou uma mulher que possa o ensinar a desenvolver suas habilidades e talento. A humanidade pode ser dividida entre as pessoas que precisam de um mestre e o procuram e as pessoas que não o procuram, mas estão impressionadas com o líder poderoso ao qual podem se submeter.

Dostoievski disse isso com grande eloquência em O Grande Inquisidor. Nele, apresenta a Jesus Cristo não como um líder poderoso, nem como herói. Apresenta-o como um mestre. Um mestre, além do mais, que não traz boas notícias. A má nova é que Jesus Cristo não está aqui para nos fazer felizes, mas, ao contrário, para nos tornar livres. Precisamos de um mestre quando queremos desenvolver a qualidade de ser livres. Precisamos de um líder ou uma celebridade quando queremos ser felizes.

Na França e nos Países Baixos, os candidatos com discursos fascistas perderam as eleições. O fascismo foi detido na Europa?

Nos Países Baixos não detivemos o fascismo. Geert Wilders é líder do atual segundo partido mais importante e principal opositor do partido no governo. Isto significa que no debate parlamentar ele é o primeiro a falar. Pode dizer o que quiser, sem nenhum tipo de responsabilidade. Por outro lado, o vencedor da eleição, Mark Rutte, publicou uma carta aberta em todos os jornais holandeses intitulada Ser normal. Aí diz que, como holandeses, damos as boas-vindas a todos sempre e quando se comportarem de uma maneira “normal”, como o restante dos cidadãos neerlandeses. Vá! Ser normal significa que você deve ser igual ao outro. Não posso pensar em um argumento mais racista e xenófobo. Pouco depois, o líder do partido Apelo Democrata-Cristão disse que todos em meu país devem saber o hino nacional de cor e que cada vez que seja escutado, devemos ficar em pé e colocar a mão sobre o coração. Querem criar instrumentos para nos fazer todos “normais”.

Na França, por outro lado, Macron teve muita sorte. É jovem e tem pouca experiência. Em geral, a votação parlamentar é de 70 a 80%. Ele só obteve 48%. Caminha em um terreno sensível e está em uma posição muito mais complicada que a de Obama quando venceu a presidência em 2008, e já vimos o que ocorreu após os oito anos de seu governo. De modo que não nos enganemos pensando que, de repente, sem tomar nenhuma iniciativa real, detivemos o fascismo. A União Europeia se encontra em um momento muito delicado. É tão disfuncional que, na Hungria, não pode enfrentar a Viktor Orbán, um fascista absoluto. Também sabemos o que aconteceu no Reino Unido e na Polônia. As forças que querem destruir a Europa são inegáveis.

Qual é a pertinência de 'Para combater esta era'?

Sem Trump o livro não teria aparecido em espanhol, nem em outros idiomas. No caso de Trump, não acredito que haja um processo de destituição. Se chegasse a ocorrer, não esqueçamos o que disseram Levi, Mann e Camus, após a destruição da Alemanha de Hitler e o desmoronamento do fascismo na Itália: não cometamos o erro de pensar que o fascismo desapareceu com a guerra. Após a guerra, Camus publicou A Peste para deixar assentado esta mensagem. Podem passar dez ou cinquenta anos, mas o fascismo reaparecerá. Está acontecendo, agora, com Trump e Erdogan. Mas, mesmo se eles se forem, o fascismo permanecerá.

Em 1929, José Ortega y Gasset nos advertiu, em 'A rebelião das massas', sobre a ascensão do fascismo. As sociedades livres lutaram contra as nações fascistas pela liberdade. Os líderes que enfrentaram o fascismo – Estados Unidos e o Reino Unidos –, hoje, possuem um governo populista. Que caminho tomar?

Os Estados Unidos não têm um governo fascista, mas, sim, um presidente que é. Este é um exemplo de que a liberdade e a democracia não podem se dar por assentadas. Talvez devamos dar um salto muito mais extenso e entender que o modelo de Estado-nação é relativamente novo em nossa história, que como modelo tem dificuldades, e que isso abre o espaço para o surgimento do nacionalismo. A partir deste cenário, pode crescer o fascismo. Não há fascismo ou racismo sem nacionalismo.

No final dos anos 1930, Thomas Mann, Hermann Broch e alguns intelectuais estadunidenses como Robert Maynard Hutchins – que então era o reitor da Universidade de Chicago – se reuniram a pedido de Elisabeth Mann Borgese e seu esposo, o escritor Giuseppe Borgese, um dos poucos intelectuais italianos que se negou a fazer o juramento de lealdade a Mussolini e se exilou nos Estados Unidos. Em 1938, Borgese pensou que a guerra era inevitável e que deviam vencê-la. Pensava que, após a guerra, os políticos estariam muito agoniados, sendo assim, os intelectuais tinham que sair da torre de marfim e escrever algum tipo de material a partir do qual poderiam se estabelecer novos princípios.

O grupo se reuniu algumas vezes em Atlanta, em 1939, pouco antes da guerra. Em março de 1940, publicaram The city of man. A declaration on world democracy, onde se perguntavam: o que precisamos fazer após a Guerra? Eles mesmos responderam: um governo mundial, um parlamento mundial, direitos humanos universais. A partir deste pequeno livro nasceu a ONU.

Cabe a nós, intelectuais - gente privilegiada que podemos viver cuidando de ideias e do significado das palavras -, unir-nos, explicar o que ocorre e como avançar. Estamos atolados entre dois paradigmas que não nos permitem avançar. Nossa conversa girou em torno do paradigma do retorno do fascismo. Contudo, há outro paradigma com o qual estamos lidando: a sociedade capitalista-científica-tecnológica que se rege pelo tipo de ideologia que vem do Vale do Silício. Uma ideologia que se baseia na falsa noção de que com a tecnologia e a neurociência podemos resolver tudo. Como dizia Obama com frequência: Fix it first. Isso tampouco nos permitirá avançar. Isto abebera o fato de que não há ideias. Tive um debate acalorado com um professor que dizia que para se ter uma Europa unida era necessário retornar à Idade Média, sob a forma da cristandade. A saída não está em um retorno ao passado.

Celan, Brodsky, Pasternak e muitos outros exerceram a arte da tradução. Por que Thomas Mann escreveu José e seus irmãos? Começou a escreveu sua tetralogia quando se deu conta de que existia um homem chamado Adolf Hitler. Mann, que vivia em Munique, escutou a retórica de Hitler, compreendeu sua ideologia e percebeu que queira criar uma nova religião laica. Sendo assim, começou a escrever seu livro. Tomou a Bíblia e se propôs voltar a contar – a traduzir – a história de José e seus irmãos.

Paul Celan – depois que os nazistas o cercaram junto com sua família em um gueto, enviaram seus pais para um campo de extermínio, onde assassinariam sua mãe e morreria seu pai, e o mandaram para um campo de trabalhos forçados, de onde finalmente foi libertado – teve que traduzir.

O grande relato que esperamos, o tipo de história que precisamos ter para que renasça o humanismo laico ou religioso será, justamente, um que volte a contar histórias; será uma tradução, como o Renascimento foi uma tradução. Goethe disse que a verdade já existe, a única coisa que precisamos fazer é repeti-la e traduzi-la. Daí minha rejeição aos acadêmicos. Não estão fazendo seu trabalho. Por outro lado, a cada dia admiro mais Andrei Tarkovski, porque com seus filmes conseguiu traduzir valores fundamentais em histórias. A noção de sacrifício, que pertence ao mundo da religião, ele a traduziu em um relato claro. Todos os meus heróis são tradutores. Empreenderam a tarefa de transmitir ou traduzir valores, as coisas que na verdade importam, para nos dar uma visão do mundo que protegesse a noção do que é uma civilização democrática. Se não somos capazes de fazer isto, estamos perdidos.

Qual a sua opinião da reação que Trump gerou dentro dos Estados Unidos?

Não podemos aceitar o que ocorre. Trump não venceu no voto popular. Muita gente compreende o que ocorre. Hillary disse que agora faz parte da “resistência”, algo que me causa certo mal-estar, pois do lado do mundo do qual venho as pessoas que pertenciam à resistência arriscaram sua vida para lutar contra os nazistas. Neste momento, não há um só estadunidense cuja vida corra perigo, de modo que seria melhor dizer que se é parte da oposição. Recortemos este fato: aquilo que é possível nos Estados Unidos resulta impossível na Rússia. Este tipo de oposição faria com que, na Rússia ou na China, você fosse executado de imediato. Ainda há certa liberdade na Hungria, embora a cada dia se torna mais difícil pertencer à oposição. Se Trump consegue aumentar sua base de seguidores, segue propagando notícias falsas e continua com sua política para com os meios de comunicação, para que as pessoas prefiram abrir seu Facebook ao invés de ler o Washington Post, estaremos em uma situação vulnerável. No pior dos casos, será reeleito por um segundo período. Não é impossível.

Seu livro é uma defesa dos valores espirituais absolutos. Não é uma aspiração muito elevada neste momento de emergência?

É uma aspiração elevada procurar o amor de sua vida? É uma aspiração muito elevada necessitar da amizade? É uma aspiração muito elevada sentir a necessidade de perseguir nossas paixões, de fazer algo que tenha algum significado? As coisas das quais falo não são moralistas, abstratas ou poéticas, são as coisas que estão no centro do ser humano. É uma aspiração muito elevada confiar em seus amigos e não se sentir traído? Estas são as coisas das quais falo. Tudo se tornou difícil e complicado porque o ser humano não só aspira, como também sente medo e frustração. Na realidade, falo de coisas muito básicas.



“Os Estados Unidos estão afundando no desastre o berço da civilização”


Os Estados Unidos estão afundando no desastre o berço da civilização” , afirma Noam Chomsky
REVISTA IHU ON-LINE

Por: Jonas | 10 Setembro 2014
Os Estados Unidos estão afundando no caos o berço da civilização, afirma o analista político Noam Chomsky, em um recente artigo no qual descreve a propagação da “praga do Estado Islâmico”.

A reportagem é publicada por Rebelión, 09-09-2014. A tradução é do Cepat.

O célebre linguista recorda, a partir de um artigo publicado no portal Alternet, que a era na região do Crescente Fértil, também conhecida como ‘meia-lua fértil’, começou há quase 10.000 anos. Estendeu-se desde as terras dos rios Tigre e Eufrates, passando pela Fenícia, na costa oriental do Mediterrâneo, e alcançando o vale do Nilo. Dali, expandiu-se para a Grécia e mais além, destaca Chomsky.

Segundo o prolífico autor estadunidense, a terra do Eufrates e Tigre foi cenário de “indescritíveis horrores, nos últimos anos”.

“A agressão de George W. Bush e Tony Blair, em 2003, a que muitos iraquianos compararam com as invasões mongóis do século XIII, foi outro golpe letal a mais” e conseguiu destruir “grande parte do que sobreviveu no Iraque, após as sanções da ONU impulsionadas por Bill Clinton”, acrescenta.

De acordo com Chomsky, uma das terríveis consequências que a invasão dos Estados Unidos e do Reino Unido deixou nesse país, conforme apresenta em um artigo para o jornal ‘The New York Times’, é a mudança radical que a cidade de Bagdá experimentou: dos bairros mistos de 2003 aos atuais enclaves sectários.

A região está em pedaços

“Os conflitos agravados pela invasão se estendeu para além e, agora, a região está em pedaços”, enfatiza o analista político. Boa parte da área do Tigre e do Eufrates está nas mãos do Estado Islâmico que, em sua avaliação, defende “a forma extremista do islã radical, que tem a sua casa na Arábia Saudita”.

“Um obstáculo importante para a propagação da praga do Estado Islâmico ao Líbano é o Hezbollah, um inimigo dos Estados Unidos e de seu aliado israelense”, aponta o filósofo. Além disso, o grupo jihadista é uma preocupação que, atualmente, tanto Washington como Teerã compartilham.

Em seu artigo, Chomsky também cita as palavras do correspondente do Oriente Médio para o jornal ‘The Independent’, Patrick Cockburn, que ressalta a contradição da reação do Ocidente diante do surgimento do Estado Islâmico: enquanto que, por um lado, lutam para impedir que o grupo jihadista avance no Iraque, por outro, esforçam-se em minar o Governo de Bashar al Assad, o grande rival desse agrupamento na Síria.

“O fascismo social se move sob estruturas formalmente democráticas”


. Entrevista com Juan Carlos Monedero

REVISTA IHU ON-LINE

  
 13 Setembro 2016
A rápida visita de Juan Carlos Monedero pela Argentina não impede o cientista político e fundador do Podemos de analisar a situação de incerteza que se vive hoje na Espanha, onde o Partido Popular segue sem formar governo. “Na Espanha, está se gestando outro 15-M, porque basicamente as instituições ainda não refletem a mudança social que se viveu”, destaca o ex-secretário do partido nascido em inícios de 2014, após os protestos contra os ajustes econômicos. O avanço de uma nova onda neoliberal na América Latina é outro dos processos que preocupa Monedero, pela “procedência autoritária” que percebe. Na entrevista ao jornal Página/12, o dirigente não hesita em afirmar que “Mauricio Macri possui uma caligrafia bonita e uma gramática autoritária”.

A entrevista é de Emanuel Respighi, publicada por Página/12, 11-09-2016. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Nas últimas eleições, Podemos alcançou 71 deputados, mas perdeu um milhão de votos. Como avalia esse processo político?

Somos uma força muito jovem, que enfrentou seis processos eleitorais em dois anos sem pedir dinheiro aos bancos, com todos os meios de comunicação e partidos políticos contra, porque éramos a novidade que vinha impugnar o que eles significavam. Apesar de tudo, obtivemos 5 milhões de votos. É um apoio que ninguém poderia prever. Rompeu-se o bipartidarismo na Espanha. Hoje, não temos força suficiente para apear os defensores das políticas neoliberais, como o PP, o PSOE e Cidadãos, ao mesmo tempo que eles não têm força suficiente para formar governo. Abrem-se duas possibilidades. Uma é que o sistema faça uma operação cirúrgica, permitindo um governo do PP, com os partidos lhe “emprestando” alguns votos, mais alguma abstenção. Uma mudança com certa violência simbólica. E a outra alternativa é que haja uma terceira eleição. O status quo não soube dar resposta à Espanha emergente, jovem, urbana e bem preparada que não quer saber dos velhos partidos.

Nem sequer o fim do bipartidarismo e a abstenção de 30% do eleitorado abriram os olhos dos dirigentes espanhóis?

Preferiram tentar matar o mensageiro, tentar nos acusar de qualquer coisa, nos judicializar, nos demonizar. Ao invés de assumir que a Constituição já não oferece respostas às demandas, que há um problema territorial que não se soluciona e que o modelo neoliberal expulsa setores importantes da cidadania. Quando se toma consciência de que os filhos viverão pior que seus pais, é necessário repensar o contrato social. Nós enxergamos isto com clareza, junto com milhões. Há setores conservadores, egoístas, que agitam o medo apresentando o que deve ser o pior refrão dos provérbios espanhóis, e que alimenta os partidos do regime: “mais vale o mau conhecido, que o bom por conhecer”. O PP não apresentou nenhuma proposta de emenda, nenhuma autocrítica, nenhuma mudança. E no PSOE, que perdeu 5 milhões de votos e seu eleitorado é composto por pessoas idosas que vivem nas zonas rurais e com baixos níveis de estudo, a única busca é a sobrevivência pessoal de seus líderes.

A onda neoliberal que na Espanha está em crise, parece se ter revitalizado na América Latina. Como percebe a transformação no sinal político que se evidencia na região?

Milhões de pessoas saíram da pobreza graças a estes governos de mudança. Na última década e meia, houve um reforço do compromisso com a democracia que agora está se fragilizando, diante da falta de respeito que a direita tem com a democracia. A direita parece que só aceita as regras do jogo quando vence. O modelo neoliberal é igual em todos os lugares. Tem a mesma lógica depredadora, onde algumas minorias utilizam a capacidade de extorsão dos setores financeiros e a capacidade de impunidade das grandes empresas transnacionais, acrescido com o controle praticamente de oligopólio dos meios de comunicação, para construir uma verdade incontestável, que convida à resignação e implica em reverter o avanço do Estado social e democrático. Isso é o que explica o crescimento de bolsas de pobreza na Espanha, em Portugal, na Grécia, na Itália, em todos os lugares. E aqui também. Isso explica a conivência absoluta entre as elites, por exemplo, entre Macri e (Mariano) Rajoy, já que os dois respondem a esse mesmo delineamento de beneficiar algumas minorias e prejudicar as maiorias.

O que me preocupa é a procedência autoritária. Há formas ditatoriais em regimes democráticos. É o que acontece com a “Lei mordaça” na Espanha e, aqui, com a retirada da Telesur da grade de TV, que coloca Macri ao lado das ditaduras. Só as ditaduras fecham meios de comunicação comprometidos com a democracia, com a liberdade e com a pluralidade. O refluxo antidemocrático na Europa, com um crescimento das opções de extrema-direita, é o mesmo que se verifica na Argentina, onde se expressa a vontade de reverter o conquistado. Esse choque gera respostas cidadãs amplas que o neoliberalismo enfrenta com violência simbólica e policial. Essa ordem está representada, aqui, com Macri, no golpe de Estado dado no Brasil contra Dilma, no México com Peña Nieto... Regimes que geram violência social.

São partidos que chegam pelo voto popular, com um discurso progressista e de boas maneiras, que depois contrastam com suas políticas. Há uma nova “estética” da direita?

Macri possui uma caligrafia bonita e uma gramática autoritária. Não se pode soprar e sorver ao mesmo tempo. Possuem uma retórica populista, de luta contra a corrupção, de luta contra gente a que se estigmatiza como responsável por todos os males, apelações vagas à participação, um discurso colorido. Parecem anúncios da Coca-Cola. Mas, é uma prática que beneficia as empresas elétricas e prejudica os consumidores, que beneficia setores exportadores, mas empobrece os cidadãos, que permite cosmopolitismo em dólares a uma minoria e condena as maiorias a uma pobreza em pesos. O problema de fundo é que o controle férreo dos meios de comunicação fez com que as vítimas votem em seus verdugos. Essa é a grande reflexão que é preciso fazer. Como é que votamos em nossos verdugos? Aconteceu na Europa que, após a Segunda Guerra Mundial, as forças de mudança retiraram milhões de pessoas da pobreza, tornando-as classes médias, e 30 anos depois votam em seus verdugos: em Margaret Thatcher, na Grã-Bretanha, por exemplo, que os devolve outra vez a posições de quase marginalidade. Aqui, ocorreu o mesmo. A Argentina passou a ser uma referência dos Direitos Humanos, da soberania nacional frente às multinacionais... Nestes meses, o que vemos é um retorno ao passado. Macri está desmantelando políticas que afetam a cidadania.

Uma cidadania que, diferente de outros momentos da história, parece ter se empoderado de certos direitos, que são defendidos na rua.

Essa gente tem a possibilidade de defender nas instituições e na rua conquistas que fazem parte de um contrato social que o neoliberalismo necessita mudar. Ao modelo neoliberal lhe resta a democracia. E isso é compreendido pelos povos ou, caso contrário, voltaremos às longas noites de ditadura, mesmo que sejam sob formatos democráticos.

Você acredita que as ditaduras não são só pela maneira como se chega ao poder, mas também pela forma como é exercido?

Quando se desvirtua o contrato social, se está esvaziando a Constituição. Se na Constituição argentina há um compromisso com a liberdade, com a igualdade, com o desenvolvimento de uma vida digna, e o governo os evita, é claro que esse governo está pisoteando a Constituição, ainda que haja eleições. Não basta que existam partidos e eleições para assumir que há democracias, se não existem meios de comunicação plurais, se as desigualdades econômicas são tão grandes. Se há setores que tentam fazer com que uma parte dos cidadãos se distancie da política, ainda que haja eleições, estão subvertendo o conteúdo democrático. Não devemos pensar em ditaduras como nos anos 1930, na Europa, e 1970, na América Latina, porque hoje já não é necessário bombardear o Palácio de la Moneda: se dá um golpe parlamentar à presidente como ocorreu com Dilma, onde 60% desses parlamentares estão envolvidos em casos de corrupção. Hoje, já não é necessário cortar as mãos ou fuzilar Víctor Jara para que não cante: basta retirar das grades os meios de comunicação que dizem coisas que os demais não dizem, homogeneizando o discurso. O fascismo social se move sob estruturas formalmente democráticas, mas com um nível de exclusão próprio de regimes autoritários. Não se deve pensar nas ditaduras como na imagem de Pinochet com o casaco e os óculos escuros, mas o resultado de perda de direitos em todos os âmbitos às vezes é semelhante.


Como as corporações cercam a democracia.

Artigo de Ladislau Dowbor

REVISTA IHU ON-LINE

  
 24 Junho 2016
Radiografia de um sequestro: banqueiros e megaempresários colonizam os partidos, compram acordos no Judiciário, comandam mídia e extraem dinheiro dos Tesouros. Haverá saída?

O artigo é de Ladislau Dowbor, economista, doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e da Universidade Metodista de São Paulo – Umesp, e consultor de diversas agências das Nações Unidas, em artigo publicado por Outras Palavras, 23-06-2016.

Eis o artigo.

“A política mudou de lugar: a globalização desafia radicalmente
os quadros de referência da política, como prática e teoria”
Octávio Ianni [2]

“Capture is more subtle and no longer requires a transfer of funds,
since the politician, academic or regulator has started to believe
that the world works in the way that bankers say it does”
Joris Luyendijk [3]

Olhar o século 21 pelas lentes do século passado não ajuda. Quando pensamos o mundo da economia, pensamos ainda em interesses econômicos e mecanismos de mercado. A política, o poder formal, os impostos, o setor público em geral representariam outra dimensão. Não é nova a ruptura destas fronteiras, a penetração dos interesses de grupos econômicos privados na esfera pública. O que é novo, é a escala, a profundidade e o grau de organização do processo. O que já foram deformações fragmentadas, penetrações pontuais através de lobbies, de corrupção e de “portas-giratórias” entre o setor privado e o setor público se avolumaram, e por osmose estão se transformando em poder político articulado em que o interesse público é que aflora apenas por momentos e segundo esforços prodigiosos de manifestações populares, de frágeis artigos na mídia alternativa, de um ou outro político independente. O poder corporativo tornou-se sistêmico, capturando uma a uma as diversas dimensões de expressão e exercício de poder, e gerando uma nova dinâmica, ou uma nova arquitetura do poder realmente existente.

Uma forma é a própria expansão dos tradicionais lobbies. A Google, por exemplo, tem hoje oito empresas de lobby contratadas apenas na Europa, além de financiamento direto de parlamentares e de membros da Comissão Europeia. É provável que tenha de pagar 6 bilhões de euros por ilegalidades cometidas no Velho Continente. Os gastos da Google nesta área já se aproximam dos da Microsoft. A Google mobilizou congressistas americanos para pressionarem a Comissão: “O esforço coordenado por senadores e membros do Congresso, bem como de um comité de congressistas, fez parte de um esforço sofisticado, com muitos milhões de libras em Bruxelas, com que a Google montou a ofensiva para travar as resistências à sua dominação na Europa.” [4]

Enquanto os lobbies ainda podem ser apresentados como formas externas de pressão, muito mais importante é o financiamento direto de campanhas políticas, através de partidos ou investindo diretamente nos candidatos. No Brasil lei promulgada em 1997 autorizou as empresas a financiar candidatos, com impactos desastrosos em particular no comportamento de parlamentares, que passaram a formar bancadas corporativas. Em 2010, os Estados Unidos seguiram o mesmo caminho, levando a que hoje os americanos comentem que “temos o melhor Congresso que o dinheiro pode comprar”. No Brasil finalmente o STF decretou a ilegalidade da prática, a valer a partir das próximas eleições. Mas em 2016 ainda temos uma bancada ruralista, além da grande mídia, das empreiteiras, dos bancos, das montadoras, e contam-se nos dedos os representantes do cidadão. O truncamento do Código Florestal e consequente retomada da destruição da Amazônia, o bloqueio da taxação de transações financeiras e tantas outras medidas, ou ausência de medidas como é o caso da tributação sobre fortunas ou capital improdutivo, resultam desta nova relação de forças que um Congresso literalmente comprado permite.

A captura da área jurídica adquiriu imensa importância, e se dá por várias formas. Foi notória a tentativa dos grandes bancos brasileiros, por meio de financiamentos de diversos tipos, de colocar as atividades financeiras fora do alcance do Procon e de outras instâncias de defesa do consumidor. Nos Estados Unidos, um juiz de uma comarca decide colocar a Argentina na ilegalidade no quadro dos chamados “fundos abutres”, pondo-se claramente a serviço da legalização da especulação financeira internacional, e acima da legislação de outro país.

Uma forma particularmente perniciosa de captura do judiciário deu-se por meio dos acordos ditos “settlements” , pelos quais as corporações pagam uma multa mas não precisam reconhecer a culpa, evitando assim que os administradores sejam criminalmente responsabilizados. Assim, os administradores corporativos e financiadores ficam tranquilos em termos de eventuais condenações. Joseph Stiglitz comenta: “Temos notado repetidas vezes que nenhum dos responsáveis encarregados dos grandes bancos que levaram o mundo à beira da ruína foi considerado responsável (accountable) por seus malfeitos. Como pode ser que ninguém seja responsável? Especialmente quando houve malfeitos da magnitude dos que ocorreram nos anos recentes?” [5] Elizabeth Warren, senadora americana, traz no seu curto estudo uma excelente descrição dos mecanismos, com nomes das empresas. [6]

A GSK, por exemplo, um gigante da área farmacêutica, fez um acordo com a justiça norte-americana para compensar fraude generalizada com três tipos de medicamentos, pagando 3 bilhões de dólares. A notícia da condenação por fraude que atingiu milhões de pacientes não causou prejuízo significativo à empresa, cujas ações subiram ao se constatar que tinha lucrado com a fraude mais do que o valor da multa. Os aplicadores financeiros consideraram que o seu dinheiro fora bem defendido. Esta desresponsabilização é hoje generalizada, abrindo uma porta paralela de financiamento de governos graças às ilegalidades. Para dar alguns exemplos, o Deutsche Bank está pagando uma multa de 2,6 bilhões de dólares em 2015; o Crédit Suisse está pagando 2,5 bilhões por condenação em 2014 e assim por diante, envolvendo todos os gigantes corporativos. Um exercício de sistematização da criminalidade financeira pode ser encontrado no site Corporate Research Project, que apresenta as condenações e acordos agrupados por empresa. George Monbiot chama isto de “um sistema privatizado de justiça para as corporações globais” e considera que “a democracia é impossível nestas circunstâncias”.[7] (252)

Hoje as corporações dispõem do seu próprio aparato jurídico, como o International Centre for the Settlement of Investment Disputes (ICSID) e instituições semelhantes em Londres, Paris, Hong Kong e outros. Tipicamente, irão atacar um país se este impuser regras ambientais ou sociais que o mundo corporativo julga desfavoráveis, e processá-lo por lucros que poderiam ter tido. A disputa jurídica constitui uma dimensão essencial dos tratados TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership), na esfera do Atlântico, e TPP (Trans-Pacific Partnership) na esfera do Pacífico. Tais acordos amarram um conjunto de países com regras internacionais em que os Estados nacionais perderão a capacidade de regular questões ambientais, sociais e econômicas, e muito particularmente, as próprias corporações. Pelo contrário, serão as próprias corporações a impor-lhes — e a nós todos — as suas leis. Nas palavras de Luís Parada, um advogado de governos em litígio com grupos mundiais privados, “a questão finalmente é de saber se um investidor estrangeiro pode forçar um governo a mudar as suas leis para agradar ao investidor, em vez de o investidor se adequar às leis que existem no país.” [8]

Outro eixo poderoso de captura do espaço político se dá através do controle organizado da informação, construindo uma fábrica de consensos onde Noam Chomsky nos deu análises preciosas.[9] O alcance planetário dos meios de comunicação de massa, e a expansão de gigantes corporativos de produção de consensos permitiram que se atrasasse em décadas a compreensão popular do vínculo entre o fumo e o câncer; que se bloqueasse nos Estados Unidos a expansão do sistema público de saúde; que se vendesse ao mundo a guerra pelo controle do petróleo como uma luta para libertar a população iraquiana da ditadura e para proteger o mundo de armas de destruição em massa. A escala das mistificações é impressionante.

Ofensiva semelhante em escala mundial, e em particular nos EUA, foi organizada para vender ao mundo não a ausência da mudança climática – os dados são demasiado fortes – mas a suposição de que “há controvérsias”, adiando ou travando a inevitável mudança da matriz energética. James Hoggan realizou uma pesquisa interessante sobre como funciona esta indústria. A articulação é poderosa, envolvendo os think tanks, instituições conservadoras como o George C. Marshall Institute, o American Enterprise Institute (AEI), o Information Council for Environment (ICE), o Fraser Institute, o Competitive Enterprise Institute (CEI), o Heartland Institute, e evidentemente o American Petroleum Institute (API) e o American Coalition for Clean Coal Electricity (ACCCE), além do Hawthorne Group e tantos outros. A ExxonMobil e a Koch Industries são poderosos financiadores, esta última aliás grande articuladora do Tea Party e da candidatura Trump. Sempre petróleo, carvão, produtores de carros e de armas, muitos republicanos e a direita religiosa.[10]

Campanhas deste gênero são veiculadas por gigantes da mídia. No Brasil, 97% dos domicílios têm televisão, que ocupa três a quatro horas do nosso dia, e que está presente nas salas de espera, nos meios de transporte, incessante bombardeio que parte de alguns poucos grupos. No nível mundial, Rupert Murdoch assume tranquilamente ser o responsável pela ascensão e suporte a Margareth Thatcher, financiou um sistema de escutas telefônicas em grande escala na Grã-Bretanha, sustenta um clima de ódio de direita através da Fox, sem receber mais que um tapinha na mão quando se revelam as ilegalidades que pratica. No Brasil, com o controle da nossa visão de mundo por quatro grupos privados – os Marinho, Civita, Frias e Mesquita – o próprio conceito de imprensa livre se torna surrealista, e os impactos na Argentina, no Chile, na Venezuela e outros países são impressionantes em termos de promoção das visões mais retrógradas e de geração de clima de ódio social.

A vinculação da dimensão midiática do poder com o sistema corporativo mundial é em grande parte indireta, mas muito importante. As campanhas de publicidade veiculadas promovem incessantemente comportamentos e atitudes, centrados no consumismo obsessivo dos produtos das grandes corporações. Isto amarra a mídia de duas formas: primeiro, porque pode dar más notícias sobre o governo, mas nunca sobre as empresas, mesmo quando entopem os alimentos de agrotóxicos, deturpam a função dos medicamentos ou nos vendem produtos associados com a destruição de biomas como a floresta amazônica. Segundo, como a publicidade é remunerada em função de pontos de audiência, a apresentação de um mundo cor de rosa de um lado, e de crimes e perseguições policiais de outro, tudo para atrair a atenção pontual e fragmentada, torna-se essencial, criando uma população desinformada ou assustada, mas sobretudo obcecada com o consumo, o que remunera com nosso dinheiro as corporações que financiam estes programas. O círculo se fecha, e o resultado é uma sociedade desinformada e consumista. A publicidade, o tipo de programas e de informação, o consumismo e o interesse das corporações passam a formar um universo articulado e coerente, ainda que desastroso em termos de funcionamento democrático da sociedade.[11] (217)

Além dos think tanks e do controle da mídia, o controle das próprias visões acadêmicas avançou radicalmente nas últimas décadas, por meio dos financiamentos corporativos diretos, e em particular pelo controle das publicações científicas. Em muitos países, e particularmente no Brasil, as universidades privadas passaram a ser propriedade de grupos transnacionais que trazem a visão corporativa no seu bojo. A dinâmica é particularmente sensível nos estudos de economia. Helena Ribeiro traz um exemplo desta deformação profunda do ensino na universidade Notre Dame de Nova York. “Dado que corria o ano de 2009 e o mundo financeiro entrava em colapso aos olhos de todos, os alunos pensaram que seria um excelente tema para debater na aula de macroeconomia. A resposta do professor: “Os estudantes foram laconicamente informados que o tema não constava do conteúdo programático da disciplina, nem era mencionado na bibliografia afixada e que, por isso, o professor não pretendia divergir da lição que estava planejada. E foi o que fez”. O artigo de Ribeiro mostra as dimensões desta deformação, mas também os protestos dos alunos e a multiplicação de centros alternativos de pesquisa econômica, como o New Economics Foundation, a Young Economists Network, o Institute of New Economics Thinking e numerosas outras instituições.[12]

Menos percebido, mas igualmente importante, é a oligopolização do controle das publicações científicas no mundo. Segundo estudo canadense, “nas disciplinas das ciências sociais, que incluem especialidades tais como sociologia, economia, antropologia, ciências políticas e estudos urbanos, o processo é impressionante: enquanto os cinco maiores editores eram responsáveis por 15% dos artigos em 1995, este valor atingiu 66% em 2013”. Temos aqui o domínio impressionante de Reed-Elsevier (hoje boicotado por mais de 15 mil cientistas americanos), Springer, Wiley-Blackwell, e poucos mais. (Larivière, 2015)[13]

A este conjunto de mecanismos de captura do poder temos de acrescentar a erosão radical da privacidade nas últimas décadas. Hoje o sangue da nossa vida trafega em meios magnéticos, deixando rastros de tudo que compramos ou lemos, da rede dos nossos amigos, os medicamentos que tomamos, o nosso nível de endividamento. As empresas têm acesso à gravidez de uma funcionária, através da compra de informações dos laboratórios. A defesa dos grandes grupos de informação sobre as pessoas é de que se trata de informações “anonimizadas”, mas a realidade é que os cruzamentos dos rastros eletrônicos permitem individualizar perfeitamente as pessoas, influindo em potencial perseguição política ou dificuldades no emprego. Mas o acesso às informações confidenciais das empresas também fragiliza radicalmente grupos econômicos menores frente aos gigantes, que podem ter acesso às comunicações internas. Não se trata apenas de alto nível de espionagem, como se viu na gravação de conversas de Dilma Roussef e Angela Merkel. Trata-se de todos nós, e com o apoio de um sistema mundial de captura e tratamento de informações do porte da NSA. O Big Brother is Watching You deixou de ser apenas literatura.[14]

A expansão dos lobbies, a compra dos políticos, a invasão do judiciário, o controle dos sistemas de informação da sociedade, a manipulação do ensino acadêmico e a invasão da privacidade representam alguns dos instrumentos mais importantes da captura do poder político geral pelas grandes corporações. Mas o conjunto destes instrumentos leva, em última instância, a um mecanismo mais poderoso que os articula e lhe confere caráter sistêmico: a apropriação dos próprios resultados da atividade econômica, por meio do controle financeiro em pouquíssimas mãos.
Vejamos agora um pouco o que são estas grandes corporações. É surpreendente, mas até 2012 não tínhamos nenhum estudo global de como funciona a rede mundial de controle corporativo. O Instituto Federal Suíço de Pesquisa Tecnológica, um tipo de MIT da Europa, selecionou 43 mil grupos mundiais mais importantes e estudou em profundidade como se dá, através de participações cruzadas e de fusões interempresariais, o controle do conjunto. Chegou a uma cifra impressionante que mudou a visão que temos do sistema econômico mundial: 737 grupos apenas controlam 80% do mundo corporativo, sendo que nestes um núcleo de 147 controla 40%. Estes últimos gigantes são essencialmente (75%) grupos financeiros. Ou seja, não precisam controlar diretamente o processo decisório, seguram o sistema, digamos assim, pelas partes delicadas, que é o acesso aos recursos. Um grupo tão limitado não precisa fazer conspirações misteriosas, são pessoas que se conhecem no campo de golfe ou no Open de Tênis da Austrália, se ajeitam confortavelmente entre si. Os autores da pesquisa concluem claramente que falar em mecanismos de mercado neste clube restrito não faz muito sentido.[15]

François Morin, assessor do banco central da França, concentra a sua análise na forma como os 28 maiores gigantes financeiros se articulam. Na análise estão todos: JPMorgan Chase, Bank of America, Citigroup, HSBC, Deutsche Bank, Santander, Goldman Sachs e outros, com um balanço de mais de 50 trilhões de dólares em 2012, quando o PIB mundial foi de 73 trilhões. A relação com os Estados é particularmente interessante, pois a dívida pública mundial, de 49 trilhões, está no mesmo nível que o faturamento dos 28 grupos financeiros que Morin analisa, também da ordem de 50 trilhões. Os Estados, fruto do endividamento público com gigantes privados, viraram reféns e tornaram-se incapazes de regular este sistema financeiro em favor dos interesses da sociedade. “Face aos Estados fragilizados pelo endividamento, o poder dos grandes atores bancários privados parece escandaloso, em particular se pensarmos que estes últimos estão, no essencial, na origem da crise financeira, logo de uma boa parte do excessivo endividamento atual dos Estados”. (Morin, 36)[16]

O poder político apropriado pelo mecanismo da dívida constitui uma parte muito importante do mecanismo geral. Os grandes grupos financeiros têm suficiente poder para impor a nomeação dos responsáveis em postos chave como os bancos centrais ou os ministérios da fazenda, ou ainda nas comissões parlamentares correspondentes, com pessoas da sua própria esfera, transformando pressão externa em poder estrutural internalizado. A política sugerida aos governos é de que é menos impopular endividar o governo do que cobrar impostos. “Estas instituições financeiras são as donas da dívida do governo, o que lhes confere poder ainda maior de alavancagem sobre as políticas e prioridades dos governos. Exercendo este poder, elas tipicamente demandam a mesma coisa: medidas de austeridade e ‘reformas estruturais’ destinadas a favorecer uma economia de mercado neoliberal que em última instância beneficia estes mesmos bancos e corporações”. É a armadilha da dívida. (Marshall)[17]

Os 28 controlam igualmente os chamados derivativos, essencialmente especulação com variações de mercados futuros: o volume atingido em 2015 é de mais de 600 trilhões de dólares, 8 vezes o PIB mundial. Se pensarmos que tantos países aceitaram de reduzir os investimentos públicos e as políticas sociais — inclusive o Brasil –, para satisfazer este pequeno mundo financeiro, não há como não ver a dimensão política que o sistema assumiu. Os grandes traders de commodities controlam nada menos que o comércio dos grãos (milho, trigo, arroz, soja), os minerais metálicos, os minerais não metálicos e os recursos energéticos, ou seja, o sangue da economia mundial. As gigantescas variações dos preços do petróleo, por exemplo, não resultam de variações da produção ou do consumo, muito estáveis na escala planetária, mas dos processos especulativos dos gigantes financeiros.[18]

O sistema é hoje articulado. Um aporte particularmente forte de François Morin é a análise de como este grupo de bancos foram se dotando, a partir de 1995, de instrumentos de articulação, a GFMA (Global Financial Markets Association), o IIF (Institute of International Finance), a ISDA (International Swaps and Derivatives Association), a AFME (Association for Financial Markets in Europe) e o CLS Bank (Continuous Linked Settlement System Bank). Morin apresenta em tabelas como os maiores bancos se distribuem nestas instituições. O IIF, por exemplo, “verdadeira cabeça pensante da finança globalizada e dos maiores bancos internacionais”, constitui hoje um poder político assumido: “O presidente do IIF tem um status oficial, reconhecido, que o habilita a falar em nome dos grandes bancos. Poderíamos dizer que o IIF é o parlamento dos bancos, seu presidente tem quase o papel de chefe de estado. Ele faz parte dos grandes tomadores de decisão mundiais”. (Morin, 61)

Um instrumento particularmente importante deste poder reside no uso dos paraísos fiscais, que a partir da crise de 2008 foram suficientemente estudados para que tenhamos hoje os contornos do seu funcionamento. Basicamente, para um PIB mundial da ordem de 73 trilhões de dólares em 2012, o estoque de recursos financeiros em paraísos fiscais situou-se entre 21 e 32 trilhões de dólares segundo a Tax Justice Network, cifra que a revista Economist arredonda para 20 trilhões.[19] Para se ter uma ideia dos valores, a grande decisão da cúpula mundial sobre o clima, em Paris em 2015, foi de alocar até, 2020, 100 bilhões de dólares anuais para salvar o planeta do aquecimento global: duzentas vezes menos do que está aplicado em paraísos fiscais, capital improdutivo e em grande parte ilegal. Os arquivos do Panamá abrem apenas uma janela do processo, mas mostram como dezenas de milhares de corporações fictícias geraram o caos financeiro atual. [20]O caos no sistema financeiro do Brasil é apenas um fragmento deste processo mundial.[21]

Estes recursos são hoje vitalmente necessários para financiar a reconversão tecnológica que nos permita de parar de destruir o planeta e para assegurar a inclusão produtiva de bilhões de marginalizados, reduzindo desigualdade que atingiu níveis explosivos. Com o grau presente de captura do processo decisório sobre a alocação de recursos, privou-se os Estados de qualquer controle: praticamente todas as grandes corporações têm filiais ou empresas “laranja” nos paraísos fiscais, onde o dinheiro simplesmente desaparece em termos formais, para reaparecer com nomes de outras empresas, gerando um espaço “branco” onde o seguimento do fluxo financeiro se interrompe, permitindo toda classe de ilegalidades, e em particular a evasão fiscal e inúmeras atividades ilegais como o comércio de armas e drogas.[22]

Com o poder hoje muito mais na mão dos gigantes financeiros do que das empresas produtoras de bens e serviços, estas últimas passaram a se submeter a exigências de rentabilidade financeira que impossibilitam iniciativas, no nível dos técnicos que conhecem os processos produtivos da economia real, de preservar um mínimo de decência profissional e de ética corporativa. Temos assim um caos em termos de discrepância com os interesses de desenvolvimento econômico e social, mas um caos muito direcionado e lógico quando se trata de assegurar um fluxo maior de recursos financeiros para o topo da hierarquia. A sua competição caótica pode levar a crises sistêmicas, mas quando se trata de travar iniciativas de controle ou regulação estas corporações reagem de forma unida e organizada.

De que dimensões estamos falando? As corporações financeiras classificadas no SIFI (Systemically Important Financial Institutions) trabalham cada uma com um capital consolidado médio (consolidated assets) da ordem de $1.82 trilhões para os bancos e $0,61 trilhões para as seguradoras analisadas. Para efeitos de comparação lembremos que o PIB do Brasil, 7ª potência mundial, é da ordem de $1,4 trilhões. Mais explícito ainda é lembrar que de acordo com os dados de Jens Martens, o sistema das Nações Unidas dispõe de 40 bilhões dólares anuais para o conjunto das suas atividades, o que por sua vez representa apenas 2,3% das despesas militares mundiais.[23]

Frente ao poder global das corporações, não temos instrumentos públicos correspondentes. Pelo contrário: está sendo documentada a captura do processo decisório da ONU pelos grupos mesmos corporativos. Estudo do Global Policy Forum foca diretamente o fato dos interesses corporativos terem adquirido uma influência desproporcional sobre as instituições que redigem as regras globais. O documento apresenta “a crescente influência do setor empresarial sobre o discurso político e a agenda”, questionando “se as iniciativas de parcerias permitem que o setor corporativo e os seus grupos de interesse exerçam uma influência crescente sobre a definição da agenda e o processo decisório político dos governos”. Segundo Leonardo Bissio, “este livro mostra como Big Tobacco, Big Soda, Big Pharma e Big Alcohol terminam prevalecendo, e como a filantropia e as parcerias público-privadas deformam a agenda internacional sem supervisão dos governos, mas também descreve claramente as formas práticas para preveni-lo e para recuperar um multilateralismo baseado em cidadãos”. (Martens, 1 e 9)

Em termos de mecanismos econômicos, é central na fase atual a apropriação da mais-valia já não tanto nas unidades empresariais que pagam mal os seus trabalhadores, mas crescentemente através de sistemas financeiros que se apropriam do direito sobre o produto social através do endividamento público e privado. Esta forma de mais-valia financeira tornou-se extremamente poderosa. Frente aos novos mecanismos globais de exploração, que atuam em escala planetária, e recorrem inclusive em grande escala aos refúgios nos paraísos fiscais, os governos nacionais tornaram-se em grande parte impotentes. Temos uma finança global descontrolada frente a um poder político fragmentado em 195 nações, isto que o poder dentro das próprias nações, nas suas diversas dimensões, está sendo em grande parte capturado. Tornámo-nos sistemicamente disfuncionais.

Wolfgang Streeck traz uma interessante sistematização desta captura do poder público no nível dos próprios governos. Por meio do endividamento do Estado e dos o outros mecanismos vistos acima, gera-se um processo em que o governo, cada vez mais, tem de prestar contas ao ‘mercado”, virando as costas para a cidadania. Com isto, passa a dominar, para a sobrevivência de um governo, não quanto está respondendo aos interesses da população que o elegeu, e sim se o mercado, ou seja, essencialmente os interesses financeiros, se sentem suficientemente satisfeitos para declará-lo ‘confiável’. De certa forma, em vez de república, ou seja, res publica, passamos a ter uma res mercatori, coisa do mercado. Um quadro resumo ajuda a entender o deslocamento radical da política:[24] (81)



Naturalmente, um se financia através dos impostos, o outro se financia através do crédito. Um governo passa assim a depender “de dois ambientes que colocam demandas contraditórias sobre o seu comportamento”(80) Entre a opinião pública sobre a qualidade do governo, e a ‘avaliação de risco’ deste mesmo governo deixar de pagar elevados juros sobre a sua dívida, a opção de sobrevivência política cai cada vez mais para o lado do que qualificamos misteriosamente de ‘os mercados’. Onde havia estado de bem-estar e políticas sociais teremos austeridade e lucros financeiros. Não é secundária, evidentemente, a transformação deste poder corporativo em sistemas tributários que oneram proporcionalmente mais os que menos ganham. A força vira lei, o estado vira instrumento de privatização dos próprios impostos. Segundo Streeck, não é o fim do capitalismo, mas sim do capitalismo democrático.

A pesquisa e compreensão das novas articulações de poder são indispensáveis para se entender os mecanismos e a escala radicalmente novos de acumulação de riqueza nas mãos dos 0,01% da população mundial, e a espantosa cifra de 62 bilionários que são donos de mais riqueza do que a metade mais pobre da população mundial. Igualmente significativo é o fato da economia brasileira estar em recessão quando os bancos Bradesco e Itaú, por exemplo viram seus lucros declarados aumentarem entre 25% e 30% em 12 meses [25]. De certa forma, ao analisarmos os mecanismos de captura do poder, estamos desvendando os canais que permitem o dramático reforço da desigualdade entre e dentro das nações, além do travamento do crescimento econômico pelo desvio dos recursos do investimento para aplicações financeiras (26).

Restabelecer a regulação e o controle sobre estes gigantes financeiros que passaram a reger a economia mundial e as decisões internas das nações é hoje simplesmente pouco viável, tanto pela dimensão, como pela estrutura organizacional sofisticada de que hoje dispõem, além evidentemente dos sistemas de controle sobre a política, o judiciário, a mídia e a academia– e portanto a opinião pública – conforme vimos acima. A dimensão internacional aqui é crucial, pois a quase totalidade destes grupos é constituída por corporações de base norte-americana ou da União Europeia. É a poderosa materialização de um poder que é global mas no essencial pertencente ao que nos temos acostumado a chamar de “Ocidente”. As tentativas de constituir um contrapeso por meio da articulação dos BRICS mostram aqui toda a sua fragilidade. O poder financeiro global tem nacionalidades, com governos devidamente apropriados pelos mesmos grupos.

Se há uma coisa que não falta no mundo, são recursos. O imenso avanço da produtividade planetária resulta essencialmente da revolução tecnológica que vivemos. Mas não são os produtores destas transformações, desde a pesquisa fundamental nas universidades públicas e as políticas públicas de saúde, educação e infraestruturas, até os avanços técnicos nas empresas efetivamente produtoras de bens e serviços, que levam vantagem: pelo contrário, ambas as esferas, pública e empresarial, encontram-se endividadas nas mãos de gigantes do sistema financeiro, que rendem fortunas a quem nunca produziu, e que conseguem, ao juntar nas mãos os fios que controlam tanto o setor público como o setor produtivo privado, nos desviar radicalmente do desenvolvimento sustentável hoje vital para o mundo.

Quanto à população de um país como o Brasil, que busca resgatar um pouco de soberania na sua posição periférica, o que parece restar é um sentimento de impotência. Perplexas e endividadas, as famílias vêm aparecer o seu “nome sujo” na Serasa-Experian – aliás uma multinacional – caso não respeitem as regras do jogo. Na confusão das regras financeiras, contribuem para a concentração de riqueza e de poder através dos altos juros que pagam nos crediários e nos bancos, através dos juros surrealistas da dívida pública, e através das políticas ditas de ‘austeridade’ que as privam dos seus direitos. Estas regras do jogo profundamente deformadas serão naturalmente apresentadas como fruto de um processo democrático e legítimo, pois está escrito na Constituição que todo o poder emana do povo. A construção de processos democráticos de controle e alocação de recursos constitui hoje um desafio central. Boaventura de Souza Santos fala muito justamente na necessidade de aprofundar a democracia. Mas na realidade, precisamos mesmo é resgatá-la da caricatura que se tornou.
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[1] Uma visão mais detalhada da análise apresentada no presente artigo pode ser encontrada em Governança Corporativa, http://dowbor.org/2015/11/ladislau-dowbor-o-caotico-poder-dos-gigantes-financeiros-novembro-2015-16p.html/ ; a dimensão propriamente brasileira da deformação financeira encontra-se em Juros Extorsivos no Brasil, Ética Editora, Imperatriz, 2016, http://dowbor.org/blog/wp-content/uploads/2012/06/Dowbor-Juros-_pdf-com-capa.pdf
[2] Octávio Ianni – A política mudou de lugar – capítulo do livro Desafios da Globalização, L. Dowbor, O. Ianni e P. Resende (Orgs.), ed. Vozes, Petrópolis, 2003.
[3] Joris Luyendijk – Swimming with sharks – Guardian Books, London, 2015 http://www.theguardian.com/business/2015/sep/30/how-the-banks-ignored-lessons-of-crash
[4] The Guardian, Revealed: How Google enlisted members of the US Congress http://www.theguardian.com/world/2015/dec/17/google-lobbyists-congress-antitrust-brussels-eu
[5] Joseph Stiglitz – On Defending Human Rights – Geneva, 3 December 2013 http://www.ohchr.org/Documents/Issues/Business/ForumSession2/Statements/JosephStiglitz.doc
[6] Warren, Elizabeth – Rigged Justice – Jan. 2016, 16 p. http://www.warren.senate.gov/files/documents/Rigged_Justice_2016.pdf and New York Times 29/01/2016 http://www.nytimes.com/2016/01/29/opinion/elizabeth-warren-one-way-to-rebuild-our-institutions.html?_r=0
[7] Monbiot, George – A global ban on leftwing politics”, in How Did we Get into this Mess, Verso, London, New York, 2016 – http://www.monbiot.com/2013/11/04/a-global-ban-on-left-wing-politics/
[8] Provost, Claire and Matt Kennard – The obscure legal system that lets corporations sue countries – The Guardian, June 2015 – https://www.google.com/url?q=http://www.theguardian.com/business/2015/jun/10/obscure-legal-system-lets-corportations-sue-states-ttip-icsid&sa=U&ved=0ahUKEwid0aacve3JAhWJXR4KHXkHAv4QFggFMAA&client=internal-uds-cse&usg=AFQjCNE_bryAhhqokmP_TQPeoYdWUmYckQ
[9] Ver em particular o documentário Chomsky&Cia, legendado em português, https://www.youtube.com/watch?v=IHSe9FRGpJU
[10] James Hoggan – The Climate Cover-up: the cruzade to deny global warming –ver http://dowbor.org/2009/12/climate-cover-up-the-cruzade-to-deny-global-warming-2.html/ ; sobre os financiadores, ver http://dowbor.org/2010/04/petroleira-dos-eua-deu-us-50-mi-a-ceticos-do-clima-6.html/ ; ver também o ver artigo de Jane Mayer The dark money of the Koch Brothers, 2016, http://www.truth-out.org/news/item/35450-the-dark-money-of-the-koch-brothers-is-the-tip-of-a-fully-integrated-network
[11] Ver o curto e excelente comentário de George Monbiot, How did we get into this mess, no livro do mesmo nome – Verso, London/New York, http://www.monbiot.com/2007/08/28/how-did-we-get-into-this-mess/
[12] Helena Ribeiro – Os protestos nas universidades por um novo ensino da economia – Jornal dos Negócios, Lisboa, dezembro de 2013 – http://dowbor.org/2013/12/helena-oliveira-o-protesto-nas-universidades-por-um-no-ensino-da-economia-dezembro-2013-3p.html/
[13] V. Larivière, S. Haustein e P. Mongeon – The Oligopoly of Academic Publishers in the Digital Era – PlosOne, 2015, http://dowbor.org/2016/02/the-oligopoly-of-academic-publishers-in-the-digital-era-vincent-lariviere-stefanie-haustein-philippe-mongeon-published-june-10-2015-15p.html/
[14] Lane, S. Frederick – The Naked Employee- AMACOM, New York, 2003 http://dowbor.org/2005/06/the-naked-employee-o-empregado-nu-privacidade-no-emprego.html/
[15] Vitali, Glattfelder e Battistoni, Zurich, 2011; Ver A rede do poder corporativo mundial – 2012 – http://dowbor.org/2012/02/a-rede-do-poder-corporativo-mundial-7.html/
[16] François Morin – L’hydre mondiale: l’oligopole bancaire – http://dowbor.org/2015/09/francoismorin-lhydre-mondiale-loligopole-bancaire-lux-editeur-quebec-2015-165p-isbn-978-2-89596-199-4.html/
[17] Andrew C. Marshall – Bank crimes pay under the thumb of the global financial mafiocracy – Truthout, 8 Dec. 2015 – http://www.truth-out.org/news/item/33942-bank-crimes-pay-under-the-thumb-of-the-global-financial-mafiocracy
[18] Sobre os derivativos e o poder dos traders de commodities, ver o nossoProdutores, intermediários e consimidores, 2013, http://dowbor.org/?s=produtores%2C+intermedi%C3%A1rios+e+consumidores
[19] Henry, James – The Price of off-shore revisited – Tax Justice Network, http://www.taxjustice.net/2014/01/17/price-offshore-revisited/
[20] ICIJ – The Panama Papers – https://panamapapers.icij.org/
[21] Barbara Adams and Jens Martens – Fit for whose purpose? – Global Policy Forum, New York, Sept. 2015 – https://www.globalpolicy.org/images/pdfs/images/pdfs/Fit_for_whose_purpose_online.pdf
[22] Um excelente estudo destes mecanismos pode ser encontrado em Shaxson, Nicholas – Treasure Islands: uncovering the damage of offshore banking and tax havens – St. Martin’s Press, New York, 2011 – http://dowbor.org/2015/10/nicholas-shaxson-treasure-islands-uncovering-the-damage-of-offshore-banking-and-tax-havens-st-martins-press-new-york-2011.html/
[22] Joseph Stiglitz – On Defending Human Rights – Geneva, 3 December 2013 http://www.ohchr.org/Documents/Issues/Business/ForumSession2/Statements/JosephStiglitz.doc
[23] Barbara Adams and Jens Martens – Fit for whose purpose? – Global Policy Forum, New York, Sept. 2015 – https://www.globalpolicy.org/images/pdfs/images/pdfs/Fit_for_whose_purpose_online.pdf
[24] Wolfgang Streeck, Buying time – Verso, London 2014 – http://dowbor.org/category/dicas-de-leitura/
[25] Relativamente a 2013, os bancos Itaú e Bradesco tiveram aumento nos lucros declarados de 30,2% e 25,9%, respectivamente. Ver o relatório Dieese – http://www.dieese.org.br/desempenhodosbancos/2015/desempenhoBancos2014.pdf
[26] A dimensão da concentração de renda e de patrimônio tem sido sistematizada pela OXFAM, ver o relatório de janeiro 2016 https://www.oxfam.org/sites/www.oxfam.org/files/file_attachments/bp210-economy-one-percent-tax-havens-180116-summ-pt.pdf



quarta-feira, 20 de novembro de 2019

A capacidade de constituição de novos horizontes da esquerda brasileira, hoje, é nula”


. Entrevista com Vladimir Safatle

Em análise sobre a crise da esquerda e as conjunturas brasileira e chilena, o filósofo Vladimir Safatle é enfático ao criticar o Estado Brasileiro e a violência por ele perpetuada conta sua população. Para ele, "O Estado brasileiro tem como única função operar em graus inimagináveis de violência contra sua própria população, é um Estado baseado no extermínio, no desaparecimento, é um Estado baseado nas formas mais brutais de morte sem sepultura que você possa imaginar; e isso como prática normal de governo. A prática normal de governo no Brasil é essa".
Segundo professor, para renovar a política, é necessária a "constituição de novos horizontes", algo que, conforme aponta Safatle, a esquerda não consegue fazer porque a "capacidade de constituição de novos horizontes da esquerda brasileira, hoje, é nula". Além disso, Safatle também avalia que a crise chilena se dá em virtude do processo de acumulação primitivo gerado pelo modelo neoliberal.
Professor na USP, o filósofo comenta seu último livro, Dar corpo ao impossível: O sentido da dialética a partir de Theodor (São Paulo: Autêntica, 2019), e explica que a obra tem como finalidade "mostrar as estruturas dinâmicas da dialética negativa que podem orientar, ainda no presente, uma reflexão crítica a respeito do existente, a respeito das possibilidades de transformação, a respeito das dinâmicas gerais de movimento dentro do nosso processo histórico, da nossa sociedade".
A entrevista é de Edison Urbano, publicada por Ideias de Esquerda, 17-11-2019.


Eis a entrevista.
Pode começar nos falando um pouco sobre seu último livro, “Dar corpo ao impossível”? Em que sentido você vê a importância do resgate da dialética para entender e atuar no mundo de hoje? Qual a relação disso com a ideia do “dar corpo”, que está no título?
Acho que a dialética é uma das figuras fundamentais do pensamento crítico, que ainda guarda muito de sua atualidade, especialmente em sua última tradição, que é a dialética negativa adorniana.
A ideia fundamental do livro era mostrar as estruturas dinâmicas da dialética negativa que podem orientar, ainda no presente, uma reflexão crítica a respeito do existente, a respeito das possibilidades de transformação, a respeito das dinâmicas gerais de movimento dentro do nosso processo histórico, da nossa sociedade. “Dar corpo” vem muito do fato de insistir que a dialética é uma teoria da realização dos impossíveis, de uma certa forma, da incorporação dos impossíveis; esse é um dos elementos fundamentais da sua dinâmica transformadora: sair de uma teoria aristotélica do movimento, baseada numa ideia do par “possível” e “atual”, “potência” e “ato”, para uma teoria mais elaborada, na qual aquilo que, para uma situação atual, é impossível, acaba sendo o embrião fundamental de uma outra forma.
Isso leva a uma segunda pergunta que queríamos fazer. No livro, você propõe um resgate do pensamento de Theodor Adorno, um teórico geralmente associado ao pessimismo histórico ou até ao ceticismo quanto à luta de classes e a revolução social. No entanto, a apropriação de Adorno que o livro propõe se afasta dessa leitura e parece sugerir quase um “Adorno revolucionário”, talvez. Até que ponto, em sua visão, a interpretação corrente recai em incompreensões ou lacunas sobre os textos de Adorno, ou em que medida seria de fato uma (re)interpretação criativa aquela que você propõe?
Olha eu diria o seguinte, essa interpretação mais usual de uma espécie de Adorno conservador, se podemos dizer assim, é muito fruto dos fantasmas que assombram a sociedade alemã, com a crença atávica e necessária numa espécie de pacto geral produzido pelo Estado e traduzido pela economia social de mercado, pelo “Estado de bem-estar social”, e com o colapso desses dispositivos de gestão social, a função que os intelectuais tiveram dentro desse horizonte, ao serem simplesmente uma espécie de portadores um tanto nostálgicos da recuperação desse modelo, muito vinculado a uma dinâmica que não é nem social-democrata, é uma dinâmica social-democrata/democracia-cristã. Aí, de uma certa forma, seria importante para esses intelectuais que o Adorno aparecesse como um niilista, como um derrotista, alguma coisa dessa natureza.
O que eu acho que está longe, mas muito longe de ser verdade, é alguém que em momento algum abandona o horizonte de transformação revolucionária como elemento normativo fundamental do pensamento. O que ele faz é compreender a complexidade da efetivação desse processo dentro da situação que ele viveu, que era o momento dos 30 gloriosos, o momento um pouco áureo dos modelos de coalizão e consenso dentro da democracia liberal. Ele insiste um pouco no colapso da constituição dos sujeitos históricos, vinculados à classe operária, ao proletariado… o que não significa de maneira nenhuma que ele abra mão, isso que eu queria dizer: compreender a complexidade do processo não significa você abrir mão dele. É isso que ele faz: quais são as condições para que uma dinâmica revolucionária realmente se realize no interior das sociedades ocidentais, esse é um problema fundamental para o Adorno. Eu desafio qualquer pessoa que o leia de fato com interesse a provar o contrário.
Compreender a complexidade do processo não significa você abrir mão dele. É isso que Adorno faz: quais são as condições para que uma dinâmica revolucionária realmente se realize no interior das sociedades ocidentais – Vladimir Safatle
Passando já então para o nosso segundo bloco, que é mais internacional, a primeira pergunta parte de constatar que estamos diante de um cenário extremamente dinâmico na América Latina, com grandes revoltas de massas como as do Equador e agora no Chile, e tentativas de golpe de direita, como vimos também agora na Bolívia. Como você analisa esses processos? Considera pertinente a hipótese de que o processo dos Coletes Amarelos na França, no final do ano passado, abriu um novo período para formas novas de expressão da luta de classes?

É, eu não sei se o marco são mesmo os Gilets Jaunes [Coletes Amarelos] franceses, acho que é um processo que vem na verdade, desde a Primavera Árabe, que vai se consolidando de uma forma paulatina como uma dinâmica animada por lutas de classes; agora, eu acho que na verdade o que faz o ponto de viragem é o movimento chileno, que aí fica muito explícito. É claro que há questões econômicas muito profundas na pauta dos franceses, mas no caso dos chilenos você tem as pautas econômicas e a exigência de uma transformação social radical, uma transformação institucional radical e uma articulação transversal das lutas, com uma hegemonia muito, muito forte, ligada a pautas de reconhecimento, de opressões, da opressão dos mapuches, de uma outra reconfiguração do vínculo social.
O processo francês foi paulatinamente em direção a isso: como todo movimento de rua, ele começa um pouco com contradições internas, e essas contradições vão se amainando, inclusive com a capacidade que alguns grupos tiveram de conseguir intervir no processo de construção de hegemonia. Mas o que eu acho é que, a partir de agora, a gente tem uma tendência que deve ser explorada de recondução da luta de classes para o centro das lutas políticas, dos processos de mobilização e manifestação; isso seria uma coisa absolutamente fundamental daqui pra frente, para que a gente conseguisse ter uma capacidade não só aglutinadora maior, mas também uma capacidade de transformação efetiva.
A gente tem uma tendência que deve ser explorada de recondução da luta de classes para o centro das lutas políticas, dos processos de mobilização e manifestação; isso seria uma coisa absolutamente fundamental daqui pra frente, para que se conseguir ter uma capacidade não só aglutinadora maior, mas também uma capacidade de transformação efetiva – Vladimir Safatle
 Nós íamos passar para outra pergunta, mas aproveitando então o interesse da questão do Chile, só uma última pergunta, porque uma das demandas que tem sido discutida a partir do movimento, e que o próprio governo Piñera tentou abordar à sua maneira, é a questão da Assembleia Constituinte. Como você vê a relação disso com esse desejo de ruptura institucional que você acabou de comentar?
Eu acho fundamental, fundamental. E é muito engraçado que isso volte, porque esse é o modelo da luta dos islandeses. Os islandeses fizeram suas lutas contra os pactos financistas ligados às receitas do Fundo Monetário Internacional, e uma questão fundamental é uma nova Assembleia Constituinte, uma nova Constituição. Porque eles percebem que a crise não é só econômica, a crise é política também, a questão fundamental é que tipo de regime político é esse que permite uma crise econômica dessa natureza. Que não é exatamente uma crise, diga-se de passagem, é simplesmente uma nova volta do processo de acumulação primitiva. O caso islandês é um caso clássico, porque eram quatro bancos que tinham dívidas enormes fora do país e que diziam que agora o estado socializasse suas dívidas, preservando sua dinâmica de acumulação.
E o caso chileno, bem, é a crítica a um processo de concentração que é o elemento fundamental do horizonte neoliberal, o qual não é exatamente uma forma de gestão social, é uma forma de recolocar no centro do processo econômico uma dinâmica de acumulação primitiva. Então eles percebem que, se isso aconteceu, é porque você tem uma estrutura política que não é imune a isso, que é completamente permeada por esse tipo de pressão, então é necessário você quebrar institucionalmente o processo que garante isso, e reconstituir a institucionalidade da vida nacional.
Recentemente, você fez comparações, em artigos e palestras, entre a esquerda brasileira e figuras como Jeremy Corbyn e Bernie Sanders. E, em outra chave, também fez uma colocação que repercutiu bastante, sobre a necessidade de “dividir, para depois poder unir”. Pode falar um pouco de como analisa esses personagens do cenário internacional, Corbyn e Sanders, que aparecem como contraponto a uma onda de direita e extrema-direita que vinha, e resgatar para os nossos leitores o sentido daquela comparação com a esquerda brasileira?
Veja que vergonha, onde a esquerda brasileira chegou? Um candidato do Partido Democrata e o líder do Partido Trabalhista, estão a anos-luz de radicalidade de qualquer partido ou de qualquer organização da esquerda brasileira – Vladimir Safatle
 Então, essa discussão, não é que eu reconheça o Bernie Sanders e o Corbyn como uma espécie de horizonte normativo para as lutas da esquerda mundial, não era isso. Era simplesmente para insistir: veja que vergonha, olha que coisa pavorosa, onde a esquerda brasileira chegou? Um candidato do Partido Democrata e o líder do Partido Trabalhista, estão a anos-luz de radicalidade de qualquer partido ou de qualquer organização da esquerda brasileira que seja minimamente relevante eleitoralmente. Acho que é uma questão a se pensar: pega o programa do Sanders, ele tem tópicos que ninguém na esquerda brasileira, ninguém, nem PT, nem PSOL, nem nada, chegou sequer a cogitar colocar como programa. Por exemplo, a ideia de que 20% das ações de todas as empresas devem ser dispostas para os trabalhadores; de que os boards [conselhos de administração] das empresas devem ter pelo menos metade de trabalhadores na sua constituição; leis de restrição a concentração e oligopólio financeiro, nada disso tem nenhum programa brasileiro; ou o programa ecológico do Corbyn…
Para um país que passou por três catástrofes ambientais em um ano, catástrofes monstruosas, você tem um autismo ecológico da esquerda que é uma coisa inacreditável. Então é simplesmente para dizer: o Brasil é um país onde até a esquerda radical é moderada, então isso deve ser realmente pensado, no sentido forte do termo. Aí o que acontece, quando a gente tem uma situação de radicalização como agora? A esquerda é a primeira a fazer um horizonte legalista, um horizonte de frente ampla, de defesa da democracia…
Esse é um horizonte que é o horizonte clássico, tradicional da política brasileira, se você pega, por exemplo, o Marighella falando do papel do PCB nos anos 40 e 50, ele vai fazer o mesmo tipo de crítica: vocês entraram numa lógica aliancista, de aliança com setores ditos progressistas da burguesia, que só conseguiu travar qualquer possibilidade de auto-organização da classe trabalhadora. E é isso que vai acontecer de novo, na verdade, vai acontecer uma coisa ainda pior, vai acontecer uma coisa como a que ocorreu na Itália: todo mundo se organiza contra o Berlusconi, você vai criando uma massa completamente indigesta e indiferenciada, e no final das contas quando o Berlusconi cai ainda aparece um sujeito mais radical, que é o único que fez política, enquanto os outros ficam lá tentando reagir, ou resistir, ou qualquer coisa que o valha. Eu temo que esse é o verdadeiro modelo da esquerda brasileira.

O Brasil é um país onde até a esquerda radical é moderada, então isso deve ser realmente pensado, no sentido forte do termo – Vladimir Safatle
Passando para o nosso último bloco, que é justamente sobre o Brasil. Em primeiro lugar, saber como você tem analisado o próprio governo Bolsonaro e suas principais medidas.
Eu diria o seguinte, o governo Bolsonaro faz tudo certo. Infelizmente, se tem alguém que sabe fazer política nesse país, é o Bolsonaro. Dentro da lógica dele, ele fez tudo correto: chamá-lo de inepto, de inapto, é simplesmente uma espécie de delírio de superioridade moral e intelectual que acomete a esquerda nesses momentos dramáticos. Ele sabe que o Brasil é ingovernável, que não é possível governar o Brasil, não nesse modelo. E ele faz um pouco a velha dinâmica “eu contra todos”: eu estou no governo, mas eu não consigo governar; não consigo, porque o Supremo Tribunal não deixa, porque o Parlamento não deixa, porque meu partido não deixa, porque a imprensa não deixa, porque ninguém deixa. Ou seja, isso lhe permite entregar muito pouco, e ainda continuar mobilizando um setor fundamental da sociedade, que é mais ou menos 30%, e que se consolidou ideologicamente em torno dele, ou seja, ele conseguiu criar um bastião ideológico.
Esses 30% não vão cair, porque eles têm uma adesão ideológica, no sentido tradicional do termo, toda a pauta ideológica, neofascista, de extrema-direita, ele conseguiu consolidar. Então o que ele faz? Ele espera um momento de ruptura, porque ele sabe que esse momento vai vir, ele sabe que você vai ter… você vai vendo, as convulsões sociais à sua volta, uma hora isso vai chegar no Brasil. E ele já está preparado para isso, e a esquerda não está preparada. Ele está preparado, porque ele vai fazer duas coisas, ele vai agir de uma forma brutal, como já tem dito, e ele vai dizer: “olha, eu preciso fortalecer o governo, porque tem um caos, e eu nunca consegui governar porque todas essas instituições me atrapalharam, e a situação agora é uma situação excepcional, então agora a gente vai partir para uma experiência ditatorial mais explícita”; é isso, esse é o seu horizonte.
Pegando um aspecto específico do governo, que se liga a uma ideia que está presente em algumas das suas últimas palestras: como você vê o Sérgio Moro, que veio da operação Lava Jato e, agora, com esse pacote anticrime, qual a relação dele com esse projeto, e na verdade, talvez mais amplamente, aquela ideia que temos visto em algumas colocações suas, de que aos olhos do próprio Estado no Brasil existe uma separação na sociedade entre os brasileiros “matáveis” e os “não-matáveis”. Como se relaciona com esse pacote anticrime do Moro e com a crítica da transição pós-ditadura que a gente teve aqui no Brasil?
Bom, a primeira coisa é que o Moro é uma peça fundamental de todo esse processo, ele é o segundo na linha sucessória, assim que o Bolsonaro cair ele, vai estar à frente, então você já tem uma linha sucessória em operação desde o início. Os seus interesses eleitorais são explícitos. Ele é uma figura própria das tragédias mais sórdidas de Shakespeare, é uma coisa da ordem do Eduardo II, um sujeito que na verdade se serve da posição de juiz para prender o candidato que poderia ocupar o cargo que ele quer ocupar. Tudo que ele fez foi porque ele quer ser presidente da República, é uma coisa próxima do inimaginável. Agora, é claro, a despeito dessas questões da ordem dos interesses pessoais, é claro que ele expressa de uma maneira muito clara a natureza necropolítica, necrofascista, do Estado brasileiro. O seu pacote é muito evidente nesse sentido.
O Estado brasileiro tem como única função operar em graus inimagináveis de violência contra sua própria população, é um Estado baseado no extermínio, no desaparecimento – Vladimir Safatle
O Estado brasileiro tem como única função operar em graus inimagináveis de violência contra sua própria população, é um Estado baseado no extermínio, no desaparecimento, é um Estado baseado nas formas mais brutais de morte sem sepultura que você possa imaginar; e isso como prática normal de governo. A prática normal de governo no Brasil é essa. Independentemente de qual seja o partido, isso nunca mudou, pode ter ficado mais explícito em alguns momentos, ou mais implícito em outros momentos, mas era uma questão de visibilidade, não era uma questão de mudança de práticas.
Então se tem alguma coisa que é necessário fazer nesse país é quebrar a máquina necropolítica do Estado brasileiro, que opera cotidianamente, que teve na sua experiência ditatorial a consolidação do seu aparato institucional, a consolidação das polícias militares, as práticas ostensivas de tortura, as operações punitivas nas periferias, os assassinatos a esmo, como forma de gestão do medo social; todo esse tipo de coisas que nós conhecemos muito, muito bem, e preferimos não lembrar. Ele [Moro] é a expressão máxima disso, a expressão descomplexada disso. Então, de fato, de todos os personagens talvez ele seja de fato o pior. E é claro que esse pacote anticrime entra nesse horizonte onde você tem medidas econômicas que são medidas concentracionistas, são medidas econômicas de destruição de qualquer possibilidade de resistência econômica da classe trabalhadora, e é claro que eles sabem fazer contas, sabem que isso produz conflito social. Então por isso que vai uma medida junto com a outra, vai o aprofundamento da estrutura destruidora do Estado brasileiro junto com essas medidas econômicas.
Chegando a nossa última pergunta. É comum ouvir discursos vindos dos próprios centros dirigentes da esquerda brasileira de que não há lutas mais radicalizadas até o momento, apesar dos enormes motivos para tal, porque os trabalhadores e o povo não querem. Em certa medida esses setores terminam se apoiando num senso comum, elaborado ideologicamente pelas classes dominantes, do mito do brasileiro pacífico e cordial. E esse é um dos elementos sobre o qual a esquerda brasileira tradicional se apoia para projetar nos trabalhadores e no povo uma passividade que é criada por ela. Como você avalia isso hoje, frente a fatos como a soltura do Lula e as esperanças eleitorais que isso deflagra? E como romper esse ciclo de passividade e conciliação e abrir caminho para uma alternativa de esquerda distinta?
Olha, esses setores da esquerda tradicional, eles são cúmplices de todo o aparato de violência que produz essa ilusão de passividade, porque eles no governo não fizeram nada, absolutamente nada para desmontá-lo. Ao contrário, eles deixaram isso operar e eles se aproveitaram dessa situação. Então eles são parte do problema, eles não são parte da solução. Porque falar uma coisa dessas é de uma demência absoluta, porque na verdade o que acontece é que você tem uma população que… bem, eu sugiro o seguinte: suba o Complexo do Alemão, e você vai poder encontrar barricadas nas ruas contra os caveirões da polícia, você vai poder ouvir as mães de filhos assassinados dizendo do tipo não só de assassinato a seco, mas também a humilhação cotidiana mesmo com os filhos assassinados, você vai poder encontrar balas de fuzil nos tetos, que mostram cotidianamente o que ocorre, daí você vai entender por que o povo não se revolta; talvez aí eles consigam entender um pouco quando eles perceberem o grau de política de extermínio ao qual essa população está submetida…
Talvez eles possam entender, então, o que isso significa. E mesmo assim, ao contrário: esse povo se revolta, eles fazem mobilização, eles fazem manifestação, eles desafiam a polícia, eles desafiam as milícias, eles desafiam o tráfico, então isso, até do ponto de vista moral, é uma das coisas mais ignóbeis que se possa falar do povo brasileiro. Porque o povo brasileiro é um povo de uma história, que é uma história de luta contínua.
Agora, é claro, eles precisam desse tipo de coisa para poder justificar sua própria inércia, para poder justificar seu próprio modelo de compreensão de luta política, que é uma luta política própria da Nova República; são as lutas palacianas, são as lutas florentinas, são as lutas dos conchavos, são as lutas dos processos eleitorais travados. Porque são processos eleitorais em que você vai tendo certas coalizões que são feitas para te travar, para depois você entrar no governo e falar “olha, eu não posso fazer nada porque a correlação de forças não me permite”, todo esse tipo de coisa.
A política não vive de resistência, ela vive da constituição de novos horizontes, e a capacidade de constituição de novos horizontes da esquerda brasileira, hoje, é nula – Vladimir Safatle
Isso está insuportavelmente jogado na cara do povo brasileiro há décadas, então eu diria o seguinte: a gente precisa lembrar de uma outra história da esquerda brasileira, que não é essa história do populismo de esquerda que nos assombra desde os anos de 1940, desde um certo alinhamento da esquerda brasileira com o varguismo, e que continuou, continuou com o petismo, e tende a continuar, infelizmente. Eu diria que a gente precisa recuperar uma outra história, que é uma história de radicalização e de luta; que é constitutiva da nossa experiência. E compreender que o que aconteceu no Brasil nesses últimos anos foi o colapso desse modelo populista de esquerda.
Entrando agora na questão sobre a soltura do Lula, porque o Lula é a expressão máxima disso: o que o Lula faz é exatamente o que as figuras dentro desse modelo de corporação social fazem, ele vai tentar articular alianças, ele vai fazer aquele tipo de promessas contraditórias: ele promete pra você uma coisa, vai prometer pra você radicalização, vai prometer pro outro moderação; pra você uma mudança de processo econômico, pro outro ele vai dizer que não, não, vamos preservar o parque produtivo; aquela coisa de sempre. E tentar reinstalar e reinstaurar, mais uma vez, isso, é só repetir uma catástrofe. É claro que como você tem desespero enorme da sociedade brasileira diante dessa ascensão neofascista, então o que aparecer as pessoas seguram…
Só que o fato é que a política não vive disso, ela não vive de resistência, ela vive da constituição de novos horizontes, e a capacidade de constituição de novos horizontes da esquerda brasileira, hoje, é nula. E é por isso que ela não consegue sair dessa sua posição defensiva, ela é incapaz de dizer para a sociedade brasileira: “olha, o que a gente quer agora do processo econômico?, o que a gente quer da institucionalidade política?”. A única coisa que ela consegue falar é sobre questões vinculadas a dinâmicas sociais de reconhecimento, que são absolutamente fundamentais, essas questões que dizem respeito à situação de vulnerabilidade e de opressão de vários setores da sociedade brasileira, mas essa é a única coisa que ela consegue colocar na pauta, porque ela não tem coragem de oferecer mais nada, e isso infelizmente não é suficiente.