sexta-feira, 13 de agosto de 2010

A morte e o sapateiro

Nunca tive medo da morte, achei que houvesse algo de branco e libertário nela. Luzes e corredores infinitos. Na minha infância a morte tinha uma tristeza glamourosa como nos filmes: guarda-chuvas, roupas pretas, uma garoa fina e o salmos com seu cajado e seus vales verdejantes. Agora, estava ali, diante de mim, um corpo grande e inchado para caber na fúria tempestuosa da vida, um sol bonito e brilhante de uma falsa primavera e um Cristo gordo que nega mostrar o sangue quente de suas feridas. Lembro que sempre havia uma atmosfera tenebrosa quando meu pai lustrava seus sapatos e cortava seus cabelos. A morte é um velho e cansado sapateiro, ele ruminava entre os dentes amarelos e sem frestas. Não havia nenhum tipo de falhas naquele homem. Eu observava-o com olhos gulosos de infância. Eram rituais que acompanhavam as mortes e sua boca, quase cotidianamente muda, procurava explicações para o obtuso, ele que era péssimo até mesmo com o óbvio. Sentia um cheiro amargo de flores e grama, milimetricamente plantada com a petulância própria dos vivos. Mas não sentia dor, isso era privilégio dos homens que já tinham passado dos quarenta, eu era nova demais para conhecer o gosto telúrico e aveludado da saudade. Aquele caixote de madeira afundava na boca da terra, enquanto mãos espremiam botões de rosas de todas as cores. E a morte me parecia ainda mais branca. A mortalha me fascinava, vestir-se para um jogo, no qual não há adversários nem juízes, apenas derrotados.

Do meu lado uma muda apalpava um lenço de pano, dele saiam centenas de pássaros negros e cobriam o teto do velório, enquanto isso ela flertava lascívia com o silêncio da revoada.

- Quem é?

- Nelson.

- Era seu marido?

- Não.

Poderia responder milhares de coisas para aquele trombadinha, no entanto, não disse nada. Afinal, ele sabia tanto da vida e tão pouco da morte, que nenhuma explicação seria plausível. Ele pisava os pés encardidos nos defuntos, violava suas covas, mas não sabia nada sobre morrer. A morte era uma multidão de gente falando de feitos estrangeiros, uma intrusa, eram corvos penetrando virgens.

Os gatos pardos reviram a noite e anseiam serem vistos.

Penso em arrastar-me e seguir o cortejo. Entretanto, não há mais cortejos, apenas os urubus esperam famintos do lado de fora.


Márcia Barbieri

Marcia Barbieri é paulistana. Publicou textos na Revista Literária eletrônica Cronópios, Germina, Escritoras Suicidas e Meio Tom. Edita o blog: http://www.avidanaovaleumconto.blogspot/.com Lançou em 2009 o livro de contos Anéis de Saturno pelo Clube de Autores.

E-mail: marcia_barbieri@hotmail.com
Fonte :Cronópios

Um amor impossível

(para Márcia)

Amanhã

este fogo cresce.

Amanhã, tremor

Amanhã, suspiro.

Insiste

um amor impossível

amanhã.

Insiste,

sim.

Um amor impossível pode ser amanhã.

Angela Melim
Mais Dia, Menos Dia, Editora Sette Letras, 1996 – Rio de Janeiro – Brasil

Chove

A chuva cai.

Os telhados estão molhados,

Os pingos escorrem pelas vidraças.

O céu está branco,

O tempo está novo.

A cidade lavada.

A tarde entardece,

Sem o ciciar das cigarras,

Sem o jubilar dos pássaros,

Sem o sol, sem o céu.

Chove.

A chuva chove molhada,

No teto dos guarda-chuvas.

Chove.

A chuva chove ligeira,

Nos nossos olhos e molha.

O vento venta ventado,

Nos vidros que se embalançam,

Nas plantas que se desdobram.

Chove nas praias desertas,

Chove no mar que está cinza,

Chove no asfalto negro,

Chove nos corações.

Chove em cada alma,

Em cada refúgio chove;

E quando me olhaste em mim,

Com os olhos que me seguiam,

Enquanto a chuva caía

No meu coração chovia

A chuva do teu olhar.

Ana Cristina Cesar


Novembro 65. Do livro Inéditos e Dispersos

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