sábado, 6 de abril de 2019


O exorcismo e descarrego final do autoritarismo 1964 virão do retumbante fracasso total do desgoverno bolsonarista. O aumento do desemprego, a desestruturação social do poder aquisitivo, o desmonte da saúde, a deforma da previdência, o descontrole da deseducação no MEC, o descarte da cultura, o desmoronamento da justiça com o juiz politiqueiro, o descrédito dos torturadores, a destruição dos direitos humanos dos excluídos e periféricos, a desnacionalização e privatização entreguista, todas essas desesperadas medidas promovem a desmoralização e deserção dos seus apoiadores no PSL, nas forças armadas, no sistema judicial, na grande mídia, no empresariado, na classe média troglodita, nos pastores de extrema-direita, nas hordas bolsonazistas. Todo apoio anterior se desmancha com incrível rapidez depois de 100 dias de um desgoverno horroroso, desestruturador, decrépito e sem destino. Bolsonaro será o ato final, o epílogo da desconstrução, derrota e decepção definitiva da ditadura de 1964. A extrema-direita será desprezada, descontada e descartada depois disso tudo.

Rco


Em uma sociedade moderna a ciência e a universidade possuem importante papel social ao fazerem a triagem entre verdade e mentira. No campo das ciências sociais e das humanidades as críticas das definições, formas e conteúdos são igualmente decisivos. 31 de março de 1964 foi golpe de uma parte reacionária da sociedade contra a democracia. O nazismo é de direita e sempre foi. Temer foi um dos chefes do golpe de 2016 contra a presidenta eleita Dilma e foi preso porque é culpado. Aécio Neves nunca foi preso porque apresenta capitais sociais e políticos familiares elitizados, já Lula se tornou um preso político e sem nenhuma evidência documental de crime comprovada porque é o chefe da oposição popular ao mesmo golpe. O sistema judicial e policial, o sistema socialmente real e existente no Brasil, é derivado das antigas Ordenações Filipinas, baseado em diferenças significativas entre "nobres", "peões" e "escravizados", "raça, cor e gênero", de modo que podemos entender como um helicóptero com quase meia tonelada de cocaína terá um tratamento diferenciado do jovem, negro, trabalhador de baixa renda e baixa escolaridade, morador de favelas da periferia. O papel da universidade e das ciências sociais, o papel das suas plurais comunidades científicas, é o debate sobre a verdade social e política, um intenso campo de lutas sociais e políticas. Quem reconhece a verdade e denuncia a mentira sobre a existência de golpes, de nazismos de esquerda, de terra plana, os antievolucionistas, as modernas fake news, velhas ideologias de extrema-direita, é a triagem e autoridade crítica da universidade. Não é o político, o militar, o religioso, o jurista, o jornalista, o astrólogo, o senso comum, quem definirá a verdade científica das teses, mas as bancas de professores doutores, profissionais de décadas de estudos, leituras, debates e ciência. Daí entendemos as rasas tentativas de ataques da direita ideológica anticientífica contra a universidade, contra os seus currículos, contra seus professores e cientistas, por parte de tipos analfabetos, sem diplomas, sem certificação de qualidade universitária, sem doutorado e sem critérios de excelência acadêmica, critérios para enfrentarem o duro combate cotidiano pela construção dialética, em constante mudança e transformação, das verdades sociais e políticas em metamorfose...

Ricardo Costa de Oliveira

A Mulher Monstro


A peça teatral mais discutida no Festival de Teatro de Curitiba desse ano é "A Mulher Monstro". A peça foi vetada pela Prefeitura de Curitiba e será apresentada em livre espaço público, nas Ruínas de São Francisco, de 4 a 7 de abril, 19 horas. Não existe fascismo e autoritarismo sem a conversão de mulheres "normais" em bestas fascistas. Todos nós conhecemos mulheres com limitada cultura e educação, que se metamorfosearam em "mulheres monstros". "Conges" de muitas falsas autoridades golpistas por aí, eram advogadas, gerentes de marketing, pastoras, policiais, pensionistas das forças armadas, pequenas lojistas, empresárias do agronegócio latifundiário, médicas, socialites, a lista é longa e extensa na deformação de um pensamento se trogloditizando, espumando ódio irracional na luta de classes, espelhos de confusões mentais e ideológicas na defesa ensandecida de seus pretensos privilégios e vantagens sociais. Falsa religiosidade cristã, intolerância, hipocrisia e peçonha. Como todo o resto do conjunto do bolsonarismo não é prova de força social, moral, de hegemonia cultural e política, mas prova de desespero e falência existencial porque sabem que o seu velho mundo de falcatruas e enganações pode desmoronar. Vale a pena.

Ricardo Costa de Oliveira

As ciências sociais têm sim o poder de análise e previsibilidade


As ciências sociais têm sim o poder de análise e previsibilidade, como qualquer ciência ! Escrevi o livro "Na Teia do Nepotismo" em 2012. Notícia de hoje comprovando o que escrevemos há anos - "A teia de parentes e amigos enredados na Quadro Negro. Quando se lê com atenção a lista de réus e demais implicados na Operação Quadro Negro e nas outras conduzidas pelo Ministério Público Federal e pelo Gaeco descobre-se a existência de variados graus de proximidade entre eles. Do exame, surge uma intrincada teia de sócios, amigos, parentes e subordinados que agem de maneira coordenada, cada um cumprindo papeis específicos com maior ou menor importância...Veja-se a lista dos já declarados réus da Quadro Negro: Beto Richa, Fernanda Richa, Luiz Abi Antoun, Ezequias Moreira, Jorge Atherino, Rafael Wawryniuk, João Gilberto Cominese Freire, Eduardo Lopes de Souza e Maurício Fanini. Quase todos eles são réus duas vezes na mesma ação penal, acusados ora por por corrupção e lavagem de dinheiro, ora por organização criminosa e obstrução de justiça"
Ricardo Costa de Oliveira

tchutchuca


Para quem acompanha os debates na CCJ da Câmara há vários anos ficou a impressão da covardia e principalmente ausência da bancada governista, se é que existe, depois das inquirições. O espetáculo dos ministros do Bozo "apanhando" no Congresso é o que há de mais constrangedor e oposicionista. O confisco das aposentadorias está para o governo Bolsonaro o que o confisco das poupanças esteve para o governo Collor, uma ameaça de pá de cal precoce. Querendo ou não querendo, concordando ou não com o termo tchutchuca, Zeca Dirceu passou a ser nacionalmente conhecido e consagrado como o deputado lacrador que detonou Guedes, uma técnica antes utilizada pela direita para um mundo de redes sociais, twitters e zaps, agora usada inversamente. As referências e citações ao nome de Zeca Dirceu bombaram ontem e o hipocorístico "pegou" e "colou" na sofrível imagem de Guedes. Qualquer criança do antigo pré-primário sabia que uma reação intempestiva só beneficiará e ampliará o efeito do apelido.

Ricardo Costa de Oliveira

A virada na avaliação negativa de Bolsonaro


Podemos verificar a virada na avaliação negativa de Bolsonaro pelas pesquisas de opinião e também pelo sentimento das conversas nas ruas. Quando as pessoas simples começam a criticá-lo nos supermercados, estacionamentos, postos de combustíveis, locais públicos, é sinal que finalmente a onda de direita está em acelerado refluxo na direção contrária. O termômetro do cotidiano nas ruas. Uma das melhores definições foi a de um senhor que conheço e cumprimento há muitos anos. Nas eleições era um bolsonarista convicto alegando que tínhamos que colocá-lo lá porque os outros não resolveriam. Agora reclamou do roubo das aposentadorias e lembrou uma coisa que nós mal lembrávamos. O que decretou a falência mesmo da ditadura militar no governo Figueiredo foi a alta do preço do feijão, justamente o que acontece agora com a subida dos preços do feijão, 20% de aumento, ao lado da contínua subida dos combustíveis e a sensação do Bozo como um déjà vu, definitivamente instalado na imensa rejeição de um Figueiredo, Sarney, Collor, FHC nos finais de mandatos. Agora está gostoso criticar e falar mal do desgoverno bolsonaresco, torna-se uma conversa popular, um tema em que quase todos concordam e socializam na falta de outros assuntos. Que mudança da tensão eleitoral quando se iludiam com a farsa bolsonarista e estavam cegos e mesmo agressivos. Agora é seguro começar uma conversa com pessoas que não tenhamos intimidade malhando o desgoverno e sua penca de péssimos ministros, o papelão de um Moro fracassado, um Guedes, o colombiano do cai não cai, e rola mais apoio e concordância ao criticarmos os ilegítimos na presidência, do que ao falarmos do clima ou do último resultado esportivo ! Falar mal dos Bozos virou tema reconhecido por todos, assunto corriqueiro, banal e quase consensual.

Ricardo Costa de Oliveira

Ler um romance





Acompanhamos essas histórias como se observássemos uma paisagem e, transformando-a em pintura com os olhos da mente, deixamos que ela nos influencie

Um romance é uma segunda vida. Como os sonhos de que fala o poeta francês Gérard de Nerval, os romances revelam cores e complexidades de nossa vida e são cheios de pessoas, rostos e objetos que julgamos reconhecer. Assim como no sonho, quando lemos um romance, às vezes ficamos tão impressionados com a natureza extraordinária das coisas que nele encontramos que esquecemos onde estamos e nos vemos no meio dos acontecimentos e das pessoas imaginárias que contemplamos. Em tais ocasiões, achamos o mundo fictício que descobrimose apreciamos mais real que o mundo real. O fato de essa segunda vida nos parecer mais real que a realidade muitas vezes indica que substituímos a realidade pelo romance. Ou no mínimo o confundimos com a vida real. Mas nunca lamentamos essa ilusão, essa ingenuidade. Ao contrário, assim como em alguns sonhos, queremos que o romance que estamos lendo prossiga e esperamos que essa segunda vida continue evocando em nós uma sensação consistente de realidade e autenticidade. Apesar do que sabemos sobre a ficção, ficamos irritados e aborrecidos se um romance deixa de sustentar a ilusão de que é, na verdade, a vida real.

Sonhamos supondo que o sonho é real; essa é a definição de sonho. Do mesmo modo, lemos um romance supondo que ele é real – mas no fundo sabemos muito bem que não é assim. Esse paradoxo se deve à natureza do romance. Comecemos por enfatizar que a arte do romance conta com nossa capacidade de acreditar ao mesmo tempo em estados contraditórios.

Leio romances há quarenta anos. Sei que podemos adotar muitas posturas em relação ao romance, que existem muitas maneiras de engajar alma e mente nele, tratando-o com leviandade ou seriamente. Da mesma forma, aprendi pela experiência que há muitos modos de ler um romance. Às vezes, lemos logicamente; às vezes, com os olhos; às vezes, com a imaginação; às vezes, com uma pequena parte do cérebro; às vezes, como queremos; às vezes, como o livro quer; e, às vezes, com todas as fibras de nosso ser. Houve uma época, em minha juventude, na qual me dediquei por completo aos romances, lendo-os com atenção – até com êxtase. Naquele tempo, dos 18 aos 30 anos (1970 a1982), eu queria descrever o que me passava pela cabeça e pela alma da mesma forma como um pintor retrata com precisão e clareza uma paisagem vívida, complexa, animada, cheia de montanhas, planícies, rochedos, bosques e rios.

O que ocorre em nossa cabeça, e em nossa alma, quando lemos um romance? Em que essas sensações interiores diferem do que sentimos quando vemos um filme, contemplamos um quadro ou escutamos um poema, mesmo um poema épico? De quando em quando, um romance pode proporcionar os mesmos prazeres que uma biografia, um filme, um poema, um quadro ou um conto de fadas. No entanto, o efeito singular e verdadeiro dessa arte é fundamentalmente diferente do de outros gêneros literários, do filme e do quadro. E talvez eu possa começar a mostrar essa diferença falando sobre as coisas que eu fazia e as complexas imagens que surgiam dentro de mim quando eu lia romances apaixonadamente em minha juventude.


 *O texto abaixo, escrito por Orhan Pamuk, foi publicado na edição número 62 da revista Piauí.
Saiba mais


Me destierro



[Poema - Texto completo.]

Miguel de Unamuno

Me destierro a la memoria,
voy a vivir del recuerdo.
Buscadme, si me os pierdo,
en el yermo de la historia,

que es enfermedad la vida
y muero viviendo enfermo.
Me voy, pues, me voy al yermo
donde la muerte me olvida.

Y os llevo conmigo, hermanos,
para poblar mi desierto.
Cuando me creáis más muerto
retemblaré en vuestras manos.

Aquí os dejo mi alma-libro,
hombre-mundo verdadero.
Cuando vibres todo entero,
soy yo, lector, que en ti vibro.

Biblioteca Digital Ciudad Seva


De Caio Fernando Abreu à escritora Hilda Hilst:




29/12/1970

Hildinha,

a carta para você já estava escrita, mas aconteceu agora de noite um negócio tão genial que vou escrever mais um pouco.

Depois que escrevi para você fui ler o jornal de hoje: havia uma notícia dizendo que Clarice Lispector estaria autografando seus livros numa televisão, à noite. Jantei e saí ventando. Cheguei lá timidíssimo, lógico. Vi uma mulher linda e estranhíssima num canto, toda de preto, com um clima de tristeza e santidade ao mesmo tempo, absolutamente incrível. Era ela. Me aproximei, dei os livros para ela autografar e entreguei o meu "Inventário". Ia saindo quando um dos escritores vagamente bichona que paparicava em torno dela inventou de me conhecer e apresentar. Ela sorriu novamente e eu fiquei por ali olhando. De repente fiquei supernervoso e sai para o corredor. Ia indo embora quando (veja que GLÓRIA) ela saiu na porta e me chamou: - “Fica comigo.” Fiquei. Conversamos um pouco. De repente ela me olhou e disse que me achava muito bonito, parecido com Cristo. Tive 33 orgasmos consecutivos. Depois falamos sobre Nélida (que está nos States) e você. Falei que havia recebido teu livro hoje, e ela disse que tinha muita vontade de ler, porque a Nélida havia falado entusiasticamente sobre "Lázaro". Aí, como eu tinha aquele outro exemplar que você me mandou na bolsa, resolvi dar a ela. Disse que vai ler com carinho. Por fim me deu o endereço e telefone dela no Rio, pedindo que eu a procurasse agora quando for.

Saí de lá meio bobo com tudo, ainda estou numa espécie de transe, acho que nem vou conseguir dormir. Ela é demais estranha. Sua mão direita está toda queimada, ficaram apenas dois pedaços do médio e do indicador, os outros não têm unhas. Uma coisa dolorosa. Tem manchas de queimadura por todo o corpo, menos no rosto, onde fez plástica. Perdeu todo o cabelo no incêndio: usa uma peruca de um loiro escuro. Ela é exatamente como os seus livros: transmite uma sensação estranha, de uma sabedoria e uma amargura impressionantes. É lenta e quase não fala. Tem olhos hipnóticos, quase diabólicos. E a gente sente que ela não espera mais nada de nada nem de ninguém, que está absolutamente sozinha e numa altura tal que ninguém jamais conseguiria alcançá-la. Muita gente deve achá-la antipaticíssima, mas eu achei linda, profunda, estranha, perigosa. É impossível sentir-se à vontade perto dela, não porque sua presença seja desagradável, mas porque a gente pressente que ela está sempre sabendo exatamente o que se passa ao seu redor. Talvez eu esteja fantasiando, sei lá. Mas a impressão foi fortíssima, nunca ninguém tinha me perturbado tanto. Acho que mesmo que ela não fosse Clarice Lispector eu sentiria a mesma coisa. Por incrível que pareça, voltei de lá com febre e taquicardia. Vê que estranho. Sinto que as coisas vão mudar radicalmente para mim – teu livro e Clarice Lispector num mesmo dia são, fora de dúvida, um presságio.

Fico por aqui, já é muito tarde.

Um grande beijo do teu

Caio.

CONTINUITY GIRL



 (Dominique Fourcade / trad. Paula Glenadel)

verificar bem se de uma tomada à outra eu uso as mesmas meias, a mesma pochette com jeito de coisa fina combinando não sei com quê. ela é intratável. hoje cedo estava furiosa porque eu não estava com a mesma voz. ao mesmo tempo a escrita é uma profissão em que a gente deve se apresentar irreconhecível. e realmente não sei como me virar.

Portugal ao contrário




Como se pode começar
Aquilo que já acabou
Como se pode acabar
Aquilo que não começou
Triste fado o fado nosso
O fado de um povo triste
Que nem a rezar pai-nosso
Evita este alegre despiste
O de ser ex-povo poeta
Porque virou nobre pateta

Ó meu Portugal
Que me dás o dia inteiro
A possibilidade de funeral
E todos os dias de nevoeiro
De afonsos sem qualquer dom
Sem segundos nem penúltimos
Porque agora sobes o tom
De sermos os primeiros dos últimos
Como cantar então a tua glória
Se só na derrota cantas vitória

Deste destino não me livro
De tanto bruxedo e feitiçaria
Narro-te em trovas de um livro
Porque é negra a tua magia
Desfeito dos teus feitos heróicos
Que te dilataram a fé e o império
Agora um punhado de paranóicos
Armados em heróis a sério
Cambada de panascos importantes
Que além do mais são praticantes

Já não acredito em querer
Que um dia vá acreditar
Na fé desse grande crer
Que me possas salvar
E me faças outra vez de novo
Filho de gente que sente
Gente de gente, gente do povo
Do povo de nação valente
E agora vai pior que mal
Numa estupidez imortal

Onde raio estão nossos irmãos
Para onde fugiram nossos amores
A quem dar as nossas mãos
Num país de desertores
Viraram-se todos ao contrário
Fugindo apressados à realidade
Montados neste triste cenário
Sem esperança na saudade
E do amigo ficou o esboço
Do inimigo a apertar o pescoço

Ó Portugal da mensagem
Já sem rosto de Pessoa
De Camões sem linhagem
Sem Porto e sem Lisboa
Virou fantasma o Viriato
Sebastião um morto-vivo
O teu povo no estrelato
Tua pátria um nado-vivo
E já nem o velho do restelo
Te idolatra como camelo

Foste castelos de tantas quinas
De reis e governantes além-mar
E agora hipotecas as salinas
Porque te esquivas ao teu mar
Foste o senhor de tanta guerra
Em busca do além-mundo
E agora enterras a tua terra
Enterrando o machado bem fundo
Que será de ti ó Portugal
Que só de besta se faz bestial

Reina e impera a estupidez
Governa a avidez e a ganância
E de olhos fechados tu não vês
Que a tua prol é ignorância
Que a votar não vota bem
Que a não votar vota mal
Porque o voto vota alguém
Que não te vota Portugal
São votos brancos, votos de chulos
São tudo votos, votos nulos

Canto-te assim o fim do império
Numa poesia de raiva e dor
Que te prova muito a sério
O tanto de tão pouco amor
E que te vê a desmaiar
Em queda tornada coma
Num hospício a tratar
E à venda na vandôma
A Europa desfigura-te o rosto
E o teu vinho sabe a mosto

Ó Portugal moribundo
A afogar-se à beira-mar
Destes mundos ao mundo
Sem o mundo nada te dar
Vais agora de vento em popa
Rumo à morte com certeza
Das migalhas fazes a sopa
Restos cozidos-à-portuguesa
Eis Portugal ao inverso
Lagutrop do meu verso

José Lourenço

AS FOTOS DO SEXO


 (Lupe Gómez / trad. Pedro Serra)

A pornografia é a cara cortada das mulheres. É um campo livre, onde todos corremos buscando palavras, paz e sexo. É o título do meu primeiro livro, onde escrevo, protesto e rebento. É abrir o baú guardado da infância e da inocência. É roubar à religião a sua parte falsa. É ir pelo monte, buscando corpos que te amem. É rasgar as cuecas. Sermos putas que sangram muito e de forma muito profunda na noite. Quando amam. Quando lhes escapa o coração da caixa dos sonhos mortos. Pornografia é cuspir na cara violada de um homem. Os homens não entendem este falar nosso e feminino, ou lutam por entender. Eu creio nas fotos do sexo. Como creio na sinceridade da poesia. Palavras brutais carregadas de beleza. Creio que o ser humano nasceu para vencer o medo através do amor e do sexo. Que a história não deixou falar as mulheres e agora deixamos de calar. Tiramos as saias e os sapatos que nos doíam e vamos como vacas pela vida, com os olhos abertos, animais, selvagens e por fim livres, abertas, faladoras, liberadas.

valter hugo mãe

biografia breve (do site do autor): valter hugo mãe nasceu em Saurimo, Angola, no ano de 1971. Licenciado em Direito, pós-graduado em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea. Vive em Vila do Conde. Publicou cinco romances:O filho de mil homens (2011), a máquina de fazer espanhóis (2010) o apocalipse dos trabalhadores (2008), o remorso de baltazar serapião, vencedor do Prémio José Saramago (2006) e o nosso reino (2004). A sua obra poética está revista e reunida no volume contabilidade (Objectiva/Alfaguara, 2010). É autor dos livros para os mais novos: O rosto (Agosto 2010), As mais belas coisas do mundo (Agosto 2010), A verdadeira história dos pássaros (2009) e A história do homem calado (2009). Escreve a crónica Autobiografia imaginária no Jornal de Letras. valter hugo mãe é vocalista do grupo musical Governo e esporadicamente dedica-se às artes plásticas. Letrista dos músicos/projectos Mundo Cão, Paulo Praça, Indignu, Salto, Frei Fado Del’Rei, Blandino e Eliana Castro. Recebeu, em 2009, o troféu Figura do Futuro, atribuído pelo Correio da Manhã. Recebeu, em 2010, a Pena de Camilo Castelo Branco. Em 2010 recebeu a Medalha de Mérito Singular de Vila do Conde.

contra mim bate a esperta difusão

contra mim bate a esperta difusão
do tempo, a extensa confusão do
olhar, a vibrante galeria da
cor: o espaço. durante uma
pequena e qualquer loucura, não
me componho.
se não somos mudos, ficarei
surdo. nestas rochas onde o
sol se desleixa e persegue as
águias que escondem ninhos
secos.
e é quando tento agarrar
o sol que reparo ter
as mãos convexas

valter hugo mãe 


se o vento é a ignição

se o vento é a ignição
das árvores venha o
temporal, elas ateadas sobre
as nossas cabeças, desmembradas
da terra como voadores desajeitados, meu pai
já conheço o vão da tua fome, peço-te,
faz de mim uma colher
divina


valter hugo mãe 

o céu é aquela clareira

o céu é aquela clareira
onde deito os olhos com ténues
cambiantes de cor que quase
gasto nas mãos, e como. como
o céu e aguardo uma
digestão convulsa. enquanto
o aguaceiro seca na terra antes que o
possa beber e deus se
vinga de mim ditando
os versos que escondem
a água ao mundo. já as
fogueiras florindo em volta,
murchando o dia que me
persegue. uma intervenção
divina para me resistir

valter hugo mãe 

estou escondido na cor amarga do fim da tarde

estou escondido na cor amarga do
fim da tarde. sou castanho e verde no
campo onde um pássaro
caiu. sinto a terra e orgulho
por ter enlouquecido. produzo o corpo
por dentro e sou igual ao que
vejo. suspiro e levanto vento nas
folhas e frio e eco. peço às nuvens
para crescer. passe o sol por cima
dos meus olhos no momento em que o
outono segue à roda do meu tronco e, assim
que me sinta queimado, leve-me o
sol as cores e reste apenas o odor
intenso e o suave jeito dos ninhos ao
relento

valter hugo mãe 

A Pequena Revolução de Jacques Prévert


 – José Paulo Paes

Há um poeta imóvel

No meio da rua.
Não é anjo bobo
Que viva de brisa
Nem é canibal
Que coma carne crua.
Não vende gravatas,
Não prega sermão,
Não teme o inferno,
Não reclama o céu.
É um poeta apenas,
Sob seu chapéu.
À sua volta, o trânsito
Escorre, raivoso,
E o semáforo muda,
Célere, os sinais.
Mas o poeta não sai
De seu lugar. Jamais.
Diz um padre: – “É pecador.
Blasfemou, praticou
Fornicação, assalto.
Por castigo ficou
Atado ao asfalto.”
Diz um rico: “É anarquista,
Que mastiga pólvora,
Que bebe cerveja.
E espera a explosão
Da bomba sob a igreja.”
Diz um soldado: “É agente
De potência estrangeira.
Aguarda seus cúmplices,
Ocultos em algum
Lugar desta ladeira.”
Diz um doutor: “É vítima
De mal perigoso.
Está paralítico,
Ou talvez nefrítico,
Ou então leproso.”
Ante notícias
Tão contraditórias,
Há queda na Bolsa,
Pânico na Sé,
Cai o Ministério,
E foge o doutor,
O padre, o soldado,
O rico, o ministro,
O governador.
Sem donos, o povo
Livra-se dos impostos;
Sem padres, o povo
Livra-se da missa;
Sem doutores, o povo
Livra-se da morte.
As ruas se animam
De vozes, de cores,
De passos, pregões,
Abraços, canções.
E, no meio da rua
Sob seu chapéu,
Sob o azul do céu,
O poeta sorri,
Completo,
Feliz.

José Paulo Paes (in "Poesia Completa")



A descoberta do mundo


– Clarice Lispector


O que eu quero contar é tão delicado é tão delicado quanto a própria vida. E eu queria poder usar delicadeza que também tenho em mim, ao lado da grossura de camponesa que é o que me salva.
Quando criança, e depois adolescente, fui precoce em muitas coisas. Em sentir um ambiente, por exemplo, em aprender a atmosfera íntima de uma pessoa. Por outro lado, longe de precoce , estava em incrível atraso em relação a outras coisas importantes. Continuo aliás atrasada em muitos terrenos. Nada posso fazer: parece que há em mim um lado infantil que não cresce jamais.
Até mais que treze anos, por exemplo, eu estava em atraso quanto ao que os americanos chamam de fatos da vida. Essa expressão se refere à relação profunda de amor entre um homem e uma mulher, da qual nascem os filhos. Ou será que eu adivinhava mas turvava minha possibilidade de lucidez para poder, sem me escandalizar comigo mesmo, continuar em inocência a me enfeitar para os meninos? Enfeitar-me aos onze anos de idade consistia em lavar o rosto tantas vezes até que a pele esticada brilhasse. Eu me sentia pronta, então. Seria minha ignorância um modo sonso e inconsciente de me manter ingênua para poder continuar, sem culpa, a pensar nos meninos? Acredito que sim. Porque eu sempre soube coisas que nem eu mesma sei que sei.
As minhas colegas de ginásio sabiam de tudo e inclusive contavam anedotas a respeito. Eu não entendia mas fingia compreender para que elas não me desprezassem e à minha ignorância.
Enquanto isso, sem saber da realidade, continuava por puro instinto a flertar com os meninos que me agradavam, a pensar neles. Meu instinto precedera a minha inteligência.
Até que um dia, já passados os treze anos, como se só então eu me sentisse madura para receber alguma realidade que me chocasse, contei a uma amiga íntima o meu segredo: que eu era ignorante e fingira de sabida. Ela mal acreditou, tão bem eu havia fingido. Mas terminou sentindo minha sinceridade e ela própria encarregou-se ali mesmo na esquina de me esclarecer o mistério da vida. Só que também ela era um amenina e não soube falar de um modo que não ferisse a minha sensibilidade de então. Fiquei paralisada olhando para ela, misturando perplexidade, terror, indignação, inocência mortalmente ferida. Mentalmente eu gaguejava: mas por quê? Mas por quê? O choque foi tão grande – e por uns meses traumatizante – que ali mesmo na esquina jurei alto que nunca iria me casar.
Embora meses depois esquecesse o juramento e continuasse com meus pequenos namoros.
Depois, com o decorrer de mais tempo, em vez de me sentir escandalizada pelo modo como uma mulher e um homem se unem, passei a achar esse modo de uma grande perfeição. E também de grande delicadeza. Já então eu me transformara numa mocinha alta, pensativa, rebelde, tudo misturado a bastante selvageria e muita timidez.
Antes de me reconciliar com o processo da vida, no entanto, sofri muito, o que poderia ter sido evitado se um adulto responsável se tivesse encarregado de me contar como era o amo. Esse adulto saberia como lidar com uma alma infantil sem martirizá-la com a surpresa, sem obrigá-la a ter toda sozinha que se refazer para de novo aceitar a vida e os seus mistérios.
Porque o mais surpreendente é que, mesmo depois de saber de tudo, o mistério continua intacto. Embora eu saiba que de uma planta brotar um flor, continuo surpreendida com os caminhos secretos da natureza. E se continuo até hoje com pudor não é porque ache vergonhoso, é pudor apenas feminino.
Pois juro que a vida é bonita.

[Jornal do Brasil - 06/07/1968]

 

A Extraordinária Aventura Vivida por Vladímir Maiakóvski no Verão na Datcha



A tarde ardia com cem sóis.
O verão rolava em julho.
O calor se enrolava
no ar e nos lençóis
da datcha onde eu estava.
Na colina de Púchkino, corcunda,
o monte Akula,
e ao pé do monte
a aldeia enruga
a casca dos telhados.
E atrás da aldeia,
um buraco
e no buraco, todo dia,
o mesmo ato:
o sol descia
lento e exato.
E de manhã
outra vez
por toda a parte
lá estava o sol
escarlate.
Dia após dia
isto
começou a irritar-me
terrivelmente.
Um dia me enfureço a tal ponto
que, de pavor, tudo empalidece.
E grito ao sol, de pronto:
“Desce!
Chega de vadiar nessa fornalha!”
E grito ao sol:
“Parasita!
Você, aí, a flanar pelos ares,
e eu, aqui, cheio de tinta,
com a cara nos cartazes!”
E grito ao sol:
“Espere!
Ouça, topete de ouro,
e se em lugar
desse ocaso
de paxá
você baixar em casa
para um chá?”
Que mosca me mordeu!
E o meu fim!
Para mim
sem perder tempo
o sol
alargando os raios-passos
avança pelo campo.
Não quero mostrar medo.
Recuo para o quarto.
Seus olhos brilham no jardim.
Avançam mais.
Pelas janelas,
pelas portas,
pelas frestas,
a massa
solar vem abaixo
e invade a minha casa.
Recobrando o fôlego,
me diz o sol com a voz de baixo:
“Pela primeira vez recolho o fogo,
desde que o mundo foi criado.
Você me chamou?
Apanhe o chá,
pegue a compota, poeta!”
Lágrimas na ponta dos olhos
- o calor me fazia desvairar –

eu lhe mostro
o samovar:
“Pois bem,
sente-se, astro!”
Quem me mandou berrar ao sol
insolências sem conta?
Contrafeito
me sento numa ponta
do banco e espero a conta
com um frio no peito.
Mas uma estranha claridade
fluía sobre o quarto
e esquecendo os cuidados
começo
pouco a pouco
a palestrar com o astro.
Falo
disso e daquilo,
como me cansa a Rosta,
etc.
E o sol:
“Está certo,
mas não se desgoste,
não pinte as coisas tão pretas.
E eu? Você pensa
que brilhar
é fácil?
Prove, pra ver!
Mas quando se começa
é preciso prosseguir
e a gente vai e brilha pra valer!”
Conversamos até a noite
ou até o que, antes, eram trevas.
Como falar, ali, de sombras?
Ficamos íntimos,
os dois.
Logo,
com desassombro
estou batendo no seu ombro.
E o sol, por fim:
“Somos amigos
pra sempre, eu de você,
você de mim.
Vamos, poeta,
cantar,
luzir
no lixo cinza do universo.
Eu verterei o meu sol
e você o seu
com seus versos.”
O muro das sombras,
prisão das trevas,
desaba sob o obus
dos nossos sóis de duas bocas.
Confusão de poesia e luz,
chamas por toda a parte.
Se o sol se cansa
e a noite lenta
quer ir pra cama,
marmota sonolenta,
eu, de repente,
inflamo a minha flama
e o dia fulge novamente.
Brilhar para sempre,
brilhar como um farol,
brilhar com brilho eterno,
gente é pra brilhar
que tudo o mais vá prá o inferno,
este é o meu slogan
e o do sol.

Vladimir Maiakovski, 1920.

(Tradução de Augusto de Campos)

A desinvenção


 – Antonio Prata

Há no sertão do Ceará uma pequena cidade chamada Salitre. Salitre tem pouco mais de 5 mil habitantes, que dormem, comem e amam em pequenas casas caiadas das mais diversas cores. Na rua atrás da igreja, entre a casa azul, de seu Dedé, e a casa amarela, de Dona Lurdes, há uma casa roxa. Na casa roxa mora o físico Anderson Motta do Nascimento. Desconhecido no Brasil, há poucas semanas Nascimento – como é chamado lá fora – vem causando calorosos debates na comunidade científica internacional, desde que apresentou sua tese no 28º Encontro Internacional de Física, na Bulgária. Anderson só conseguiu comparecer ao encontro graças à venda de três bodes, uma carroça e alguns sacos de feijão de corda, plantado nas últimas chuvas. No congresso, falando um russo fluente (coisa que mesmo os russos têm certa dificuldade em fazer), Anderson expôs sua invenção.Pelo que se tem comentado, trata-se da maior revolução tecnológica desde a invenção do pregador de roupas, e o brasileiro tem sido comparado a Sigmundo Bernstein, pai (e mãe) da tampa de rosca.Não é, na verdade, uma invenção, mas o contrário. Ele propôs, diante da platéia boquiaberta, nada menos que a desinvenção do carro. Segundo seu raciocínio, se o carro fosse desinventado, acabariam os acidentes de trânsito, uma vez que o próprio trânsito sumiria. Sem trânsito e sem a queima de combustíveis fósseis, o efeito estufa deixaria de existir, a poluição chegaria a níveis irrisórios (e risíveis) e o número de doenças pulmonares cairia drasticamente. Tendo que usar as pernas para a locomoção (coisa que, dizem alguns antropólogos,era costume em algumas tribos pouco desenvolvidas das Américas e da Polinésia), as pessoas seriam menos ansiosas, mais bonitas e saudáveis e o colesterol, numa visão otimista, também seria desinventado, ficando os enfartes, derrames e tromboses praticamente extintos.Sem a necessidade de asfalto por tudo que é lado, o solo poderia voltar a ser permeável e as enchentes nunca mais aconteceriam. A lista de benefícios que a desinvenção do automóvel traria é infinita, e não caberia num tratado, muito menos numa crônica.

Empolgados com os estudos de nosso ilustre conterrâneo, cientistas já declaram estarmos vivendo uma mudança nos paradigmas da ciência. Entramos, segundo o historiador Eric Hobsbawn, na Era das Desinvenções – possível título de seu próximo livro. Boatos indicam que a NASA estaria estudando os impactos sociais da desinvenção do telefone, o que acabaria com a linha ocupada, os trotes, os enganos, as chamadas a cobrar e faria com que as pessoas, a cada vez que quisessem se falar, se encontrassem.Ninguém ousa ainda comentar o que acontecerá se as desinvenções forem levadas a cabo, mas em Salitre, Ceará, dentro das casas coloridas, onde os amigos e parentes de Anderson dormem, comem e amam, agora também se prepara muita buchada, jerimum e farofa para a chegada do filho pródigo na próxima semana. Pelo menos por ali, durante alguns dias, a rotina está sendo desinventada.




14




sofro o fio que o
cabelo alinha no chão. a
noite que vem comer a luz
ao dia. minha voz
superior. deus certamente
corrige meus olhos. vejo o
frio, a paralisia do
vento. e preocupo-me
lentamente. um estar vivo
sem qualquer obrigação. vou
dizendo o escuro pormenorizadamente

valter hugo mãe 

La sed de Cristo



Cuando desde la altura de su patíbulo, abriendo las desecadas fauces, exhaló Cristo la más angustiosa de las Siete Palabras, María Magdalena, que estaba como idiota de dolor, estrechamente abrazaba al tronco de la cruz, se estremeció y, recobrando energía y actividad, a impulsos de una compasión que la penetraba toda, se lanzó en busca de agua que aplacase la sed del moribundo Maestro.
No muy lejos del Calvario, sabía Magdalena que manaba, entre peñascos, purísimo y cristalino manantial. Pidió prestada una taza de arcilla a un hombre del pueblo de Jerusalén, de los que en tropel rodeaban la cruz, y se encaminó hacia la escondida fuente. Poco tardó en encontrarla, sintiendo profundo regocijo al pensar que aquella linfa fresquísima calmaría, siquiera momentáneamente, los sufrimientos del mártir. Surtía el chorro, más claro que cristal, de una grieta tapizada de musgo y finos helechos, y el rumor de su corriente lisonjeaba el oído y el corazón. Al recoger en el cuenco de barro el agua, Magdalena notó que estaba fría, helada casi, y de nuevo se alegró, pensando lo refrigerante que sería para Jesús el sorbo. Con su taza rebosante corrió al lugar del suplicio, y a fuerza de ruegos logró que le permitiesen los sayones amontonar unas piedras y encaramarse hasta acercar el agua a los labios cárdenos del crucificado. Y cuando esperaba verle paladear el agua consoladora, he aquí que Jesús la rechaza, moviendo la cabeza y repitiendo en un soplo imperceptible: «Sed tengo».

Con la penetración del amor -porque en verdad os digo que no hay nada que ilumine el entendimiento de la mujer como amar mucho y de veras-, Magdalena adivinó que Cristo deseaba otra bebida más exquisita y rara que el agua natural, y era necesario traérsela a cualquier precio. Mientras se precipitaba hacia Jerusalén, iba recordando que el despensero y mayordomo del tetrarca Herodes la había obsequiado antaño con un falerno añejísimo, ardiente como fuego y dulce como miel, del cual una sola gota es capaz de reanimar un yerto cadáver. Suplicante y presurosa rogó la arrepentida a su antiguo galán, y como accediese a sus ruegos, volvió al Calvario radiante, escondiendo bajo su manto el ánfora de inestimable valor, y apoyó el pico en la boca de Jesús. Un movimiento más acentuado de repugnancia y un débil gemido donde casi expiraba inarticulado el lastimoso «Sed tengo», revelaron a la Magdalena que tampoco esta vez poseía el medio de calmar las torturas de la santa víctima.

En su desconsuelo y en su enojo contra sí misma por no haber acertado, reverdeció más y más en la Magdalena la memoria de su escandalosa juventud. Bien presente tenía que un patricio romano, epicúreo fastuoso, lector de Horacio y algo poeta, que por la hermosa hierosolimitana hizo mil locuras, solía hablar de los banquetes del Olimpo pagano y de la misteriosa virtud e incomparable esencia del néctar de los dioses, que infunde la felicidad e inyecta vida a oleadas en las venas exhaustas y en el cuerpo expirante. Y como si algún maléfico poder oculto -tal vez el de Satanás, empeñado hasta la última hora en tentar al Redentor para probar su divinidad- fuese cómplice del insensato anhelo de la pecadora, he aquí que se sintió arrollada y transportada con velocidad increíble en alas del viento, que la depositó suavemente sobre la cumbre de una montaña deliciosa, poblada de olivos, laureles, naranjos cuajados de azahar, que alternaban con boscajes de mirtos y rosales en flor, de embriagador perfume. Bajando airosamente la escalinata de un elegante templete de mármol blanco, salió al encuentro de Magdalena hermoso mancebo sonriente, de rizos color de jacinto y brillantes pupilas, y le presentó una crátera de oro maravillosamente cincelada, donde chispeaba un licor transparente, rosado, de fragancia embriagadora, que trastornaba los sentidos. Llena de gozo, Magdalena estrechó contra su pecho la sagrada ambrosía y sólo pensó ya en ofrecérsela a Jesús, porque era imposible que aquel licor glorioso, escanciado por Ganímedes, no arrebatase el alma del mártir, haciéndole olvidar sus dolores. Sólo con llevar la copa de ambrosía en las manos sentíase Magdalena presa de dulce fiebre y deliquio, y la Naturaleza le parecía más bella, el sol más claro y el aire más ligero, elástico y luminoso. ¡Desengaño cruel! Así que pudo acercar una copa colmada de ambrosía a los labios de Jesús, cuyos tendones estallaban y cuyo rostro descomponía un padecer horrible, el moribundo hizo un gesto de violenta repulsión, y licor y copa rodaron al suelo, derramándose sobre la seca tierra la bebida de los dioses paganos.

Entonces Magdalena, víctima de la tentación, sintió redoblar su amargura. Los resabios de los años de iniquidad resurgieron, porque el pecado deja sedimentos en el alma y sube a la superficie apenas lo remueve la pasión, y aunque la doctrina de Cristo había inflamado el espíritu de aquella mujer, faltaba todavía que la penitencia la purificase y destruyese la vieja levadura. Sucedió, pues, que Magdalena, ofuscada por el dolor de ver que no sabía estancar la sed de Cristo, se imaginó que el Cordero torturado, si rechazaba el falerno que halaga el paladar y la ambrosía que transporta la imaginación, tal vez aceptaría el vino de la venganza y de la ira; tal vez se aplacasen sus sufrimientos al gustar la sangre del enemigo que le clavó en la afrentosa cruz. Y con este pensamiento, Magdalena se acercó a uno de los sayones, el mismo que había fijado sobre la cabeza de Cristo la escarnecedora placa del Inri, y, engañándole, le llevó lejos del Calvario, a un lugar desierto, y aprovechando su descuido le hirió en el cuello con su propia espada, empapó la caliente sangre en una esponja y volvió segura de que Jesús bebería. Y esta vez, al contrario, fue cuando Cristo, con sobrehumano impulso, se irguió sobre los traspasados pies, y exclamó con fúnebre entonación: «Sed tengo.»

María Magdalena cayó al pie de la cruz, desplomada, retorciéndose las manos y arrancándose a mechones las rubias y sueltas guedejas. Su impotencia para aliviar la sed de Cristo la enloquecía, y principió a acusarse interiormente de su impura existencia, sintiendo sobre la frente humillada el rubor y la pena de tanta disipación, del seco erial de su conciencia, donde no tuvo asilo la piedad. Muchas noches, mientras ella derrochaba oro en su opulenta mesa y se reclinaba sobre tapices tirios y pérsicas alfombras, los pobres, a su puerta, esperaban como perros las migajas del festín, y las mujeres de bien, velándose el rostro, apresuraban el paso para no oír las risotadas y las canciones impúdicas. Por eso, sin duda, no podía disfrutar ahora el consuelo de aplacar la sed de Cristo, sed que neciamente creyó satisfacer con el vino de la gula, la ambrosía del placer o la sangre de la venganza. Y al recapacitar, ablandábase poco a poco el corazón de la pecadora, y subiendo a sus ojos el agua del arrepentimiento y de la humildad fluía de sus lagrimales, resbalando lentamente por sus mejillas. Era tanto lo que lloraba Magdalena, que parecía liquidarse su espíritu, y las lágrimas empapaban la ropa y los hermosos extendidos cabellos. Y como levantase los ojos hacia el rostro de Jesús, vio en él una súplica, un ansia tan viva y tan amorosa que, inspirada, juntó las manos y recogió en el hueco de ellas aquel sincero llanto de contrición, y alzándose hasta Jesús, lo llegó a su boca. Por primera vez, en lugar del acongojado «Sed tengo», Jesús respondió a la Magdalena abriendo los labios y bebiendo ávidamente, al par que transfiguraba su rostro una expresión de inefable dicha.

FIN

 Emilia Pardo Bazán

04 Apr 2012

Biblioteca Digital Ciudad Seva

Borges no inferno


 – José Eduardo Agualusa

Jorge Luis Borges soube que tinha morrido quando, tendo fechado os olhos para melhor escutar o longínquo rumor da noite crescendo sobre Genebra, começou a ver. Distinguiu primeiro uma luz vermelha, muito intensa, e compreendeu que era o fulgor do sol filtrado pelas suas pálpebras. Abriu os olhos, inclinou o rosto, e viu uma fileira de densas sombras verdes. Estava estendido de costas numa plantação de bananeiras.

Aquilo deixou-o de mau humor. Bananeiras?! Ele sempre imaginara o paraíso como uma enorme biblioteca: uma sucessão interminável de corredores, escadas e outros corredores, ainda mais escadas e novos corredores, e todos eles com livros empilhados até o tecto.

Levantou-se. Endireitou-se com dificuldade, sentindo-se desconfortável dentro do próprio corpo subitamente rejuvenescido (quando morremos reencarnamos jovens e Borges não se recordava de como isso era). Caminhou devagar entre as bananeiras.
Parecia-lhe pouco provável encontrar ali alguém conhecido, ou seja, alguém de quem tivesse lido algo. Ou alguém sobre quem tivesse lido algo. Nesse caso seria alguém um pouco menos conhecido, ou um pouco menos alguém, ou ambas as coisas.

A plantação prolongava-se por toda a eternidade. Uma dúvida começou a atormentá-lo: talvez estivesse, afinal, não no paraíso, mas no inferno. Para onde quer que olhasse só avistava as largas folhas verdes, os pesados cachos amarelos, e sobre essa idêntica paisagem um céu imensamente azul. Borges lamentava a ausência de livros. Se ali ao menos existissem tigres – tigres metafóricos, claro, com um alfabeto secreto gravado nas manchas do dorso –, se houvesse algures um labirinto, ou uma esquina cor-de-rosa (bastava-lhe a esquina), mas não: só avistava bananeiras, bananeiras, ainda bananeiras.

Bananeiras a perder de vista.

Percorreu sem cansaço, mas com crescente fastio, a infinita plantação. Era como se
andasse em círculos. Era como se não andasse. Fazia-lhe falta a cegueira. Cego, o que não via tinha mais cores do que aquilo – além do mistério, claro. Como é que um homem morre na Suíça e ressuscita para a vida eterna entre bananeiras?

Borges não gostava da América Latina. A Argentina, como se sabe, é um país europeu (ou quase), que por desgraça faz fronteira com o Brasil, Chile, Uruguai e Paraguai. Para Borges, aquele quase sempre foi um espinho cravado no fundo da alma. Isso e a vizinhança. Os índios ele ainda tolerava. Tinham fornecido bons motivos para a literatura e além disso estavam mortos. O pior eram os negros e os mestiços, gente capaz de transformar o grande drama da vida – da vida, meu Deus! – numa festa ruidosa. Borges sentia-se europeu. Gostava de ler os clássicos gregos (gostaria de os ter lido em grego). Gostava do silêncio poderoso das velhas catedrais.

Foi então que a viu. À sua frente uma mulher flutuava, pálida e nua, sobre as bananeiras. A mulher dormia, com o rosto voltado para o sol e as mãos pousadas sobre os seios, e era belíssima, mas isso para Borges não tinha grande importância (a especialidade dele sempre foram os tigres). Horrorizado compreendeu o equívoco. Deus confundira-o com outro escritor latino-americano. Aquele paraíso fora construído, só podia ter sido construído, a pensar em Gabriel García Marquez.

Jorge Luis Borges sentou-se sobre a terra úmida. Levantou o braço, colheu uma banana, descascou-a e comeu-a. Pensou em Gabriel García Marquez e voltou a experimentar o intolerável tormento da inveja. Um dia o escritor colombiano fechará os olhos, para melhor escutar o rumor longínquo da noite, e quando os reabrir estará deitado de costas sobre o lajedo frio de uma biblioteca. Caminhará pelos corredores, subirá escadas, atravessará outros corredores, ainda mais escadas e novos corredores, e em todos eles encontrará livros, milhares, milhões de livros. Um labirinto infinito, forrado de estantes até o tecto, e nessas estantes todos os livros escritos e por escrever, todas as combinações possíveis de palavras em todas as línguas dos homens.

Jorge Luis Borges descascou outra banana e nesse momento um sorriso – ou algo como um sorriso – iluminou-lhe o rosto. Começava a adivinhar naquele equívoco cruel um inesperado sentido: sendo certo que o paraíso do outro era agora o inferno dele, então o paraíso dele haveria de ser, certamente, o inferno do outro. Borges terminou de descascar a banana e comeu-a. Era boa. Era um bom inferno, aquele.

Jesus


 – Humberto de Campos


A casa de José, o carpinteiro, em Nazaré, ficava à margem do caminho que leva a Tiberíades. Pequena e humilde, mais humilde parecia, ainda, pela ancianidade, e por não ser possível ao dono reconstruí-la. Edificada por Jacó, primogênito de Matran, tornara-se, por morte deste, propriedade do esposo de Maria, filha de Ana, da casa de Davi. E como o carpinteiro já se encontrasse velho e alquebrado de forças, ia deixando que o casebre se desmoronasse, açoitado pelos grandes ventos que sopravam no verão, das bandas do golfo de Caifa, e no inverno, da alta cordilheira que orna o país de Sichen. Sem cercas que a defendessem, era a casa rodeada de limoeiros, que embalsamavam o ar, e que a afogavam, com as suas frondes de um verde escuro, como punhados de manjericão em torno de uma rosa fanada.

Era à sombra de um desses limoeiros que José trabalhava, quando fazia bom tempo, manejando, trêmulo, o seu serrote e a plaina primitiva. E era sob a copa de todos os outros que brincavam, a manhã toda, e a tarde inteira, as crianças das casas vizinhas. Atraídas para ali pela frescura do local, vinham elas, isoladamente, ou duas a duas, ou três a três, com o seu perfil judaico, os olhos muito vivos e chegados um ao outro, para as correrias habituais. Trazia-as, muitas vezes, João, filho de Zacarias, antigo sacerdote do Templo, em Jerusalém. O senhor, entre elas, da casa e dos limoeiros, era, porém, Jesus, filho do carpinteiro, mais moço do que João quase um ano, e que era ainda seu parente, pois que Maria, esposa de José, e Isabel, esposa do velho sacerdote, eram primas e, apesar da diferença de idade, amigas e confidentes.

As duas famílias, a de Zacarias como a do carpinteiro, traziam no espírito, constantemente, duas preocupações. Segundo a palavra dos Profetas, o povo de Israel teria de cair sob o jugo do estrangeiro, do qual o livraria, no entanto, um grande Rei, que viria disfarçadamente à terra, com o sangue de Davi. A primeira parte das profecias estava cumprida. Os sucessores dos Macabeus haviam ateado a guerra civil na Judéia, e invocado, em certo o auxílio dos romanos, que tinham escolhido entre eles um rei, de nome Herodes, o qual reinava em Jerusalém. E a outra, a mais grave e difícil, parecia, agora, em via de realização.

Efetivamente, nove anos antes, achando-se Zacarias sozinho no Templo, em Jerusalém, incensando o altar, ouvira um ruído, que lhe parecera o de um grande pássaro em vôo. Volvera, lento, o rosto, e estacara, surpreso. Diante dele, vestido de uma túnica diáfana, e que parecia feita com o fumo do turíbulo, estava um mancebo de fisionomia resplandecente, de cujas espáduas saíam grandes asas, e que lhe dissera, em palavras sem mistérios, que sua esposa, Isabel, lhe daria, dentro de alguns meses, um filho varão. Dissera isto, e desaparecera.

Suspeitando dos próprios olhos e dos próprios ouvidos, duvidava o sacerdote do próprio entendimento. Se a esposa, na mocidade, não lhe dera um filho, como lho daria, agora, quando os dois, ele e ela, já se sentiam velhos? Que fazer, pois, naquela emergência? Narrar o sucedido? Contar à mulher, e aos íntimos, a ocorrência do Templo? Melhor seria, talvez, não pecar pela palavra, quem já pecava, incrédulo, pelo pensamento. E desse dia em diante, aguardando os acontecimentos de cada hora, os seus lábios se selaram para o mundo, enquanto a sua alma se descerrava, inteira, para os olhos de Deus.

Semanas depois, o mesmo Enviado aparecia, belo e fulgurante, na casa do carpinteiro, em Nazaré. Levava àquele outro lar uma notícia idêntica. Maria, esposa de José, seria mãe, e o seu filho, neto de Reis, seria o Rei da Judéia.

De acordo com o anunciado, Isabel tivera, em verdade, um filho, que tomou o nome de João. E Maria concebera outro, que era, agora, essa triste criança, de seis anos, sob cujos olhos, de uma estranha doçura, as outras vinham, de longe, brincar à sombra cheirosa dos limoeiros.

Desde o nascimento do menino, em Belém, quando iam àquela cidade para serem recenseados por ordem de Augusto, o carpinteiro e a esposa se haviam convencido dos altos destinos do filho. Daquele infante dependia, desde aquela hora, a sorte do Povo de Deus. Daí os cuidados de que 0 rodeavam, a cautela com que o vigiavam dia e noite, o susto com que acompanhavam as suas menores enfermidades. Naquele pequenito moreno, de olhos claros e fisionomia meiga, estava, não apenas o filho único, mas o Rei; não unicamente o rebento miraculoso de um casal que ia desaparecendo sem prole, mas o Salvador de uma raça, prometido pelas profecias do fundo remoto dos séculos.

Jesus havia nascido, entretanto, tão alegre como os outros meninos de Nazaré. Ao se lhe enrijar o pequeno corpo, de linhas modelares e puras, procurara correr, como os outros, e, como os outros, subir às árvores, roubar o ninho aos pássaros, ou banhar-se no lago, quando a família ia a Genezaré ou a Tiberíades. Mal, porém, tentava uma dessas distrações infantis, a mãe acorria aflita, ou acorria o pai, preocupado, detendo-lhe o gesto ou o desejo. E essa diferença de tratamento acordava-lhe dúvidas no espírito e no coração. Por que, sendo o mundo tão vasto, e a vida tão boa, só lhe não cabia, a ele, a alegria de ser livre como as crianças? Aquelas ondas cariciosas do lago, e aqueles ninhos de rouxinol dos olivais, teriam sido feitos unicamente para Mateus, filho de Marta, para Barnabé, filho de Manassés, para Eleazer, filho de Josué, ou, mesmo, para João, seu primo, tão violento que só procurava brinquedos de guerra, em que sempre saía vencedor? Por que, ainda, a curiosidade de toda a gente, em torno da sua pessoa: 0 sorriso de zombaria de uns, ao apontá-lo de passagem, e o respeito comovido de outros, alguns dos quais chegavam, até, a ajoelhar na poeira dos caminhos para beijar-lhe, chorando, a fímbria grosseira da túnica?

Sob os limoeiros copados, cujas ramas, aqui e ali, roçavam o chão, as crianças brincavam, correndo em algazarra, simulando combates de judeus e romanos. Por cima das ramagens, o céu era todo azul e ouro, e uma brisa fresca soprava, como uma carícia, das bandas do lago. Balouçado por ela, o limoal escrevia em hebraico, aqui e ali, no solo pedregoso, com letras de luz abertas na sombra, pequenos poemas misteriosos. Tudo era, em torno, festivo e jovial. As próprias aves, tontas de luz, cantavam mais alto.

Sentado junto ao muro limoso de um poço, Jesus, ele só, estava triste.

— Pai — havia pedido, momentos antes, ao carpinteiro —, deixa-me brincar com os outros!

— Não, meu filho; não podes, — respondera, paternal, o ancião, passando a mão trêmula e rude pelos seus cabelos castanhos. — E se caísses, em uma dessas correrias, que seria de nós, e do teu Povo?

Aquelas palavras eram, para ele, um mistério. Que significavam elas? Que Povo era esse, que era seu, e que ele não conhecia?

Os seus olhos, doces, e mansos, encheram-se de sombra. Uma lágrima correu, lenta e límpida, parando aqui e ali, pela sua face morena, vindo deter-se ao canto da boca miúda, pondo, nela, um desagradável gosto de sal.
Jesus de Nazaré começava a sofrer, nesse dia, a tristeza de ter nascido Deus...
-=-=-
Humberto de Campos, em "Contos de Natal" (Vilma Maria da Silva, org.), São Paulo: Landy, 2006.