quarta-feira, 6 de novembro de 2019


Não aspiro ao autocontrole. Autocontrole significa: querer atuar num ponto aleatório das irradiações infinitas da minha existência espiritual. Mas tenho de traçar estes círculos em torno de mim, por isso é melhor fazê-lo passivamente no puro espanto de admiração perante o imenso complexo e levar para casa apenas a força que, e contrario, essa visão oferece.

Franz Kafka
tradução: Modesto Carone

Sistema proporcional


Catilina abusa de nossa paciência


O juridiquês



Transgressão à direita



Por DANIEL SALGADO

Fóruns da internet brasileira são o berço de uma geração de jovens reacionários e misóginos, cooptados pela pregação online de gurus como Olavo de Carvalho, escreve Daniel Salgado em ensaio pessoal publicado na serrote 30. No texto, ele conta sua passagem por um movimento que, nascido nas profundezas da rede, hoje ocupa os holofotes da política nacional



Sem muito o que fazer aos 13 anos, preenchi um formulário que incluía um apelido e um avatar, e me registrei no Fórum Uol Jogos. Pelos cinco anos seguintes seria conhecido ali como FantaLight (tudo junto), sempre representado por uma mesma imagem: um desenho do gato Manda-Chuva, estrela de uma das animações do estúdio Hanna-Barbera. Nesse tempo, houve também quem me chamasse de Fanta, Fantinha, FL, danisab e, para os mais íntimos, Dani. Naquela página laranja-abrasivo, dei meus primeiros passos na web. E, sem o saber, acompanhei de perto os primórdios e o fortalecimento de um movimento decisivo da direita brasileira, hoje espalhado por toda a internet.

Antes da difusão das redes sociais, o Uol Jogos era uma segunda casa para adolescentes nerds e folgados, um fórum em que usuários relativamente anônimos exercitavam graus variados de exposição. Das dezenas de subfóruns, alguns eram tão óbvios quanto o Playstation e o Notícias; outros, mais improváveis e movimentados como o Vale Tudo e o Papo-Cabeça, que cobriam grande variedade de assuntos e, justamente por isso, acabavam reunindo milhares de usuários na segunda metade dos anos 2000.

No Vale Tudo, carinhosamente apelidado de VT, o ambiente era anárquico e sem muita intervenção dos moderadores. Milhares de mensagens eram postadas a cada hora, com centenas de usuários disputando espaço a tapa, sempre tentando emplacar a qualquer custo suas piadas. Não eram raros tópicos que chegassem à marca de centenas de páginas de comentários em poucas semanas; outros eram criados por usuários-camicase para postar conteúdo que descumpria as regras – pornografia, spam –, com o simples intuito de serem banidos pela moderação. Era proibido postar mais de uma vez a cada 30 segundos, o que parecia uma eternidade para a legião de usuários com dezenas de milhares de postagens contabilizadas. Legião em que eu me incluía.

Algumas histórias extrapolavam o anonimato da multidão. Todos lembravam do sujeito que citou o fórum no Beija Sapo, finado programa da MTV, ou da saga de outro usuário para ganhar um concurso de beleza da revista Capricho com a ajuda dos chamados “vtetas”, denominação adotada pelos membros. Havia ainda a notoriedade mais prosaica, alcançada pelos que eram conhecidos por fazer aniversário todos os dias, ou por aquele que, ao longo de anos, só criou tópicos baseados em péssimos trocadilhos e se despedia com o indefectível bordão “humor fino, humor 100sacional”.

O fórum teve seu impacto na internet brasileira. Foi o berço dos primeiros memes tupiniquins, a grande maioria deles hoje relegada ao cemitério virtual de piadas. Boa parte dos usuários se espalhou por outros recintos com senso de humor similar, em especial comunidades do Orkut. Em seu auge, elas funcionavam como fóruns, organizadas em tópicos e com milhares de usuários em um ambiente caótico. Mas, mesmo com similaridades, a diferença entre os dois espaços era clara. Os usuários do Vale Tudo, talvez por conta do maior grau de anonimato, tendiam a praticar um humor mais extremo do que no Orkut, tanto em seus temas quanto na agressividade de seus termos. Os inclinados a esse tipo de pré-história talvez se lembrem de expressões como “tenso” e “tá tudo bem agora”.1

O fórum foi também um dos criadouros de uma cultura masculina adolescente cooptada pela nova direita brasileira, concentrando um tipo de jovem cujo perfil se diluía em outros espaços. Diferentemente do Orkut e similares, lá não havia adultos, regras ou necessidade de interpretar um personagem. Seus membros se definiam como excluídos na “vida real” por suposta feiura, declarada inaptidão social, gostos tidos como “exóticos” ou mesmo falta de vontade de fazer amizades. Por isso, acreditavam eles, o mundo virtual deveria se adequar às suas vontades e tolerar seus costumes – dentre eles, a homofobia e o machismo.

Quando não discutíamos games ou outros aspectos da cultura geek, compartilhávamos técnicas para conquistar mulheres inacessíveis – e as desprezávamos imediatamente depois de receber uma recusa. Bordões surgiam, fotos eram vazadas, brigas homéricas se desenrolavam, e cada vez mais o ambiente cheirava a cueca. Mas a história que quero contar começa um pouco acima do Vale Tudo. Um clique acima, para ser mais exato: no subfórum Papo-Cabeça. Era nele que eu passava meu tempo quando não estava falando de desenhos japoneses ou desilusões amorosas no VT.

O conceito do Papo-Cabeça era simples e ingênuo: lá deveriam ser travadas todas as discussões consideradas intelectuais. No VT não havia, é claro, lugar para academicismos ou comentários sobre leituras. O nível de discussão alcançado em ambos era compatível com o de adolescentes e de recém-ingressos na faculdade. Havia um ou outro diletante, uma ou outra alma mais razoável, que logo desistia de discutir tópicos como “Jesus foi de verdade?”, “Refutei Marx em três linhas” e “O cristianismo não passa de uma fraqueza de espírito”. Quem tivesse lido um livrinho que fosse de Nietzsche ou Hermann Hesse, dois dos favoritos dos frequentadores, já se destacava.2

Como em boa parte dos sites parecidos daquela época, a tônica das discussões era anárquica. A cultura tóxica dominante estimulava a transgressão pela transgressão, ou seja, abraçar tópicos que incomodassem as pessoas consideradas “normais” – não eram raros, por isso, usuários defendendo o ateísmo e a descriminalização das drogas e do aborto. Mas isso mudou. E rapidamente.

Já na virada da década de 2010, o conservadorismo era dominante. Cada vez mais o usuário do Papo-Cabeça e do Vale Tudo se identificava como religioso, a favor do livre-mercado e contra as drogas. Até hoje me surpreendo ao lembrar a guinada do Walser, com quem conversava bastante: em menos de seis meses, ele passou de ateu fervoroso a crente convicto.

O que cativava aqueles jovens reacionários era um ideal de aceitação. À medida que a rede era cada vez mais ocupada por pautas progressistas, eficiente que é como ferramenta de amplificação    de vozes antes silenciadas, o VT e seus similares se radicalizavam na direção oposta. Seus membros manifestavam ressentimento e desprezo por aqueles que, em seu entender, pareciam ocupar ilegitimamente um lugar que consideravam exclusivo e inexpugnável. Quando a internet era mato, só quem a frequentava eram mesmo os nerds excluídos socialmente, ou seja, jovens, brancos e héteros impopulares na escola. Como assim vinham outros excluídos tomar o espaço? “Censurar” o debate e implantar o que se define, de forma pejorativa, como “politicamente correto”? Nesse contexto, a direita era tentadora, apontando para um novo refúgio, um alento ideológico que depreciava essas novas vozes. Para esses jovens, foi sedutor. E eu quase caí nessa.



Minha relação com essa ideologia foi tão súbita quanto breve. Em poucos meses, me interessei profundamente por aquelas ideias e as abandonei por conta de uma grande desilusão. E todo o processo orbitou em torno de um homem, um austríaco refugiado no Brasil que morreu mais de uma década antes de eu nascer, Otto Maria Carpeaux. Crítico literário e ensaísta, figura influente nos meios intelectuais brasileiros na segunda metade do século passado, Carpeaux foi deixando aos poucos de ser lido. Não foi completamente esquecido, mas teve o protagonismo reduzido com o progressivo deslocamento da crítica literária da imprensa para a universidade. E nesse período de baixa, Carpô, como prefiro chamá-lo, foi capturado por um cânone do qual jamais demonstrou querer fazer parte, o dos escritores que a direita resgata do ostracismo.

Quem esteve à frente da “retomada” de Carpeaux, ainda nos anos 1990, foi Olavo de Carvalho, que se tornaria uma espécie de guru de parte estridente da nova direita brasileira. Nos cursos que ministrava na internet, arregimentando centenas de alunos, o filósofo autodidata passou a comentar sistematicamente o autor de A cinza do purgatório. Em seu talk-show chamado True Outspeak, Olavo criou informalmente um cânone de pensadores e escritores que, a seu ver, foram convenientemente esquecidos por serem vistos pela esquerda como “ameaças” ao consenso marxista que, segundo ele, domina as universidades públicas – nomes supostamente deixados para trás por não se conformarem às expectativas de uma academia “gramsciana”.

Para toda uma legião de jovens pupilos, o raciocínio é irretocável – e, portanto, irresistível. Afinal de contas, apela-se à valorização de quem, em tese, se quis apagar da história. A promessa de revelar uma verdade oculta é, finalmente, tudo o que um jovem busca, a porta para um novo mundo de conhecimento que, de outra forma, lhe seria negado. É uma ideia de elevação intelectual. Dessa maneira, Olavo montou sua biblioteca-base, repleta de nomes não exatamente desconhecidos, mas esquecidos o suficiente para permitir novas edições – muitas lançadas por seus alunos, em pequenas editoras –, e para que seu público o entendesse como uma espécie de monge detentor de tradições há muito esquecidas. Olavo apontava para um oásis, zelando pelo conhecimento supostamente ameaçado de destruição e protegido nas páginas de nomes como o polímata espanhol José Ortega y Gasset, o cientista político Eric Voegelin e o escritor católico francês Georges Bernanos.

Foram seus alunos que me apresentaram a Carpô, antes de todos os outros. Suas ideias eram irresistíveis para mim, um moleque de 14 anos que queria mergulhar no mundo da literatura, mas só tinha meios de o fazer em guias como 1001 livros para ler antes de morrer ou 501 grandes escritores (este último surpreendentemente bom, viria a perceber mais tarde). Não foram necessárias mais que cinco postagens exaltando a História da literatura ocidental assinadas por Musil, um dos usuários do Papo-Cabeça, para que o monumento crítico de quatro volumes se tornasse meu principal objeto de desejo naquele ano. Apoquentei meus pais por alguns meses, argumentando que a publicação da Biblioteca do Senado, até então a única disponível, seria o caminho para aprender algo sobre literatura.3 Não por coincidência, era essa a edição que aparecia na biblioteca de Olavo, emoldurando os vídeos de suas aulas.

E assim foi. Os calhamaços chegaram em minha casa pelos correios, e logo me apaixonei pela erudição de Carpeaux, que desfilava um conhecimento enciclopédico sobre a história dos autores ocidentais, sempre generoso com o leitor, cristalino em seu estilo. Lá me deparei com as primeiras leituras sérias da vida para além das páginas de introdução de revistas ou dos textos do colégio. O ensaísta desafiava os livros e não se furtava de dizer o que achava deles. O impacto foi tamanho que por muito tempo meu sonho era ser crítico literário.

Nos meses que se seguiram, conforme me embrenhava nas milhares de páginas do livro de capa amarela, aumentava minha frequência de postagens no Papo-Cabeça, sempre mais arrogante, por meu recém-adquirido conhecimento – e cada vez mais aberto às sugestões vindas dos meus colegas a partir da biblioteca informal de Olavo. Quis ver do que se tratavam aqueles nomes que não havia visto em lugar nenhum. Se chegassem vagamente perto de Carpeaux, teria valido a pena. Em uma viagem à Argentina, não hesitei em comprar A rebelião das massas e O tema de nosso tempo, de Ortega y Gasset.

Ao mesmo tempo, uma dúvida começara a tomar corpo. O Carpeaux apresentado por Olavo e meus colegas não era exatamente o mesmo que eu encontrava naquelas páginas. Se eles insistiam na faceta do crítico que parecia ter lido tudo em todas as línguas, conhecia as profundezas da literatura cristã medieval e valorizava autores conservadores, para mim o personagem tinha outras características marcantes. Via, isso sim, um autor aberto às inovações de estilo e forma, interessado em tudo o que havia de novo em seu tempo, que dedicou a Bertolt Brecht quatro páginas inteiras em sua história da literatura e, num ensaio de 1947, definiu-o como “o maior talento literário em toda a emigração alemã”. Um crítico que considerava o cubano Alejo Carpentier um dos autores “mais significativos do século”, e era apaixonado por Carlos Drummond de Andrade, “poeta da mais alta categoria”.

A equação, que não fazia sentido, foi de vez para o espaço ainda naquele ano. Num sebo de Botafogo, no Rio de Janeiro, deparei com o primeiro volume dos ensaios reunidos de Carpeaux, organizados pelo próprio Olavo, também autor de uma apresentação ao volume, anos antes de o autor de O imbecil coletivo ter se tornado figura pública em cursos e polêmicas. Vi a lombada vermelha dando sopa e comprei. Cheguei em casa ansiosíssimo, meus amigos não iriam acreditar na minha sorte. Por isso, fui direto à introdução de Olavo. Era um repasse biográfico e crítico de Carpeaux, uma tentativa de contextualização de meu autor favorito, sobre quem tão poucas informações estavam disponíveis na internet.

Naquelas páginas, Olavo deixava claro o descontentamento, depois insistentemente reiterado, com o establishment cultural. Já escrevia lamentando o destino de “nossas universidades, às quais sobram tempo e energias para despejar anualmente sobre este resignado mundo uma tempestade de teses de doutoramento sobre sambistas, cronistas esportivos, amantes de escritores, poetas que poderiam ter sido e não foram”. Denunciava uma suposta “debilitação intelectual brasileira das últimas décadas”, que, a julgar por seus cursos, só fazia piorar. O desprezo estendia-se, curiosamente, aos próprios leitores, que teriam dificuldade de compreender as referências de Carpô – o filósofo insistia no desaparecimento, ao longo das quatro décadas anteriores, de um público medianamente culto.

Até aí, tudo bem. Não era um discurso lá muito diferente do que lia no Fórum, e eu não tinha repertório para discordar ou mesmo concordar inteiramente. O ponto de cisão apareceria mais adiante. Recusando-se a aceitar as muitas facetas de Carpeaux, o filósofo hoje autoexilado nos Estados Unidos se mostrava nada menos do que mesquinho ao descrever os últimos anos do austríaco. Tudo porque Carpeaux decidira se engajar na luta contra a ditadura militar. Olavo fazia malabarismos para retratar Carpô como um homem senil que, apesar de supostamente conduzido à esquerda, mantinha-se conservador. Segundo ele, o ensaísta era o “apologista da revolução cubana” que “tinha horror da politização geral da cultura”, um “denunciador das mazelas do capitalismo” que “fazia a apologia do economista Friedrich Hayek”. E, ainda, alguém que alimentava “o mais fundo desprezo pelas massas de bacharéis que as universidades despejam todo ano na atividade cultural e política, vazios de cultura superior e intoxicados de slogans demagógicos”.

Por mais mirabolantes que fossem os saltos e contorcionismos retóricos, Olavo tinha que se render à evidência de que, nos últimos anos, Carpeaux dedicou-se sobretudo a publicações de resistência à ditadura. Mas o fazia com curiosas ressalvas: “É verdade que, à medida que os anos passavam, ele se permitiu cada vez mais ser afetado por uma atualidade política mesquinha, deixando dissolver-se em parte, no ambiente do imediatismo brasileiro, a soberana concentração espiritual que lhe permitira sair ileso das mais deprimentes experiências europeias. Mas ainda em seus últimos ensaios críticos – contemporâneos de suas mais violentas polêmicas antiamericanas – ele mostra um senso da supratemporalidade que só pode ser diagnosticado como idealista ou como cristão e que é estranho a toda sensibilidade marxista.”

Ao terminar o ensaio, eu estava mudado. Além de profundamente irritado com Olavo, que projetava na obra de Carpeaux suas leituras de mundo, identifiquei ali o discurso dos meus colegas de internet, que em sua maioria mal passavam dos 20 anos. Havia algo de muito errado: ou Olavo tinha a argumentação de um jovem recém-formado ou seus alunos simplesmente regurgitavam tudo que o mestre dizia. E isso era exatamente o que Carpeaux jamais fez em sua vida intelectual. Com todas as idiossincrasias – que o impediram, por exemplo, de apreciar a crônica como gênero –, foi um homem de pensamento próprio, pouco influenciável, dotado de uma “supratemporalidade” – para usar as palavras do próprio Olavo.

Pouco depois, passei a identificar um padrão que ia além da controvérsia em torno de Carpeaux. O rancor contra a esquerda extrapolava a influência de Olavo: era possível detectá-lo no Vale Tudo e em outros fóruns da internet, como os estrangeiros Reddit e 4chan, que cada vez mais passavam a atacar sistematicamente qualquer comportamento ou ideia relacionado com a esquerda. O ressentimento, que a princípio eu supunha motivado apenas por uma noção de injustiça intelectual associada ao esquecimento de ideias e autores, era inseparável dos preconceitos que até então não percebera entre meus colegas. Nesse contexto, o que se identifica no senso comum como “politicamente correto” virou uma espécie de panaceia do mal: assim se classificam os textos considerados “emburrecedores” dos universitários brasileiros, o policiamento de piadas tão caras àqueles adolescentes e, mais importante, as críticas ao discurso machista e homofóbico em plena vigência em toda a sociedade. Para os meus colegas usuários, tratava-se de um ataque frontal: numa tacada só, estavam suprimindo suas leituras, seu senso de humor e até a possibilidade de ventilar suas frustrações amorosas. O Fórum, aos poucos, ganhava contornos de um espaço de “resistência”, e o que antes era só lamentação por uma vida amorosa frustrada deixou de parecer papo de adolescente para se transformar num celeiro de ódio contra as mulheres e outros grupos.

*

Para entender em que pé estavam as coisas, resolvi este ano voltar ao Vale Tudo. A experiência não foi boa: não passei da primeira página. Fui incapaz de reconhecer um usuário sequer. Os nomes que eu tanto via foram previsivelmente soterrados pelo tempo. Entre os vinte e tantos tópicos, há chamadas como “por que alguns mulatos se chamam de pardos?”, “a vagabunda não disse que não toma anticoncepcional”, “chegou aquele momento diário de depressão e choque de realidade”, “o Arthur do Val considera esse cara como ‘branco’ risos”, “mais uma vítima dos desarmamentos” e “o que as garotas podem esperar de nós esse ano”. Não quis saber. Fechei a janela do Fórum.

A pergunta continua, no entanto, martelando minha cabeça: o que levou jovens a esse nível de conservadorismo e intolerância?

No livro Kill All Normies (2017), Angela Nagle sustenta que o fenômeno é resultado de uma nova cultura de transgressão. Para a jornalista, que estuda e descreve o funcionamento do 4chan – o fórum americano que inspirou a cultura do VT e chega aos milhões de usuários –, trata-se de um movimento que “tem mais em comum com o slogan de esquerda de 1968, ‘é proibido proibir!’, do que com qualquer coisa que imaginemos ser parte da direita tradicionalista”. E que, ainda assim, foi parte essencial na campanha eleitoral que elegeu Donald Trump em 2016. Ou seja, o jovem conservador de hoje não tem paralelo com aquele que, nos anos 1960, repudiou a cultura hippie como produto de um amontoado de maconheiros fedorentos, ou que, na década de 1980, abraçou o mundo yuppie. Mas, ainda assim, o novo jovem conservador – ou alt-right para os americanos – busca a transgressão. Ele não quer ser parte do status quo das famílias tradicionais e nem do mainstream cultural que ele condena como “gramsciano” e liberal.

Seu objetivo primeiro é chocar, abalar as estruturas para tentar provocar mudanças que prometam menos um novo futuro do que o retorno do passado. Seu combustível preferencial é o rancor, independentemente de suas posições políticas. A cultura on-line é regida por um acordo tácito de que o escárnio vem sempre antes do elogio. Basta passar algumas horas no Facebook ou no Twitter para que isso se torne evidente. Apesar do esforço das gigantes de tecnologia para transformar suas redes em locais seguros, numa espécie de realidade cor-de-rosa, o conteúdo delas é tóxico.

O ressentimento do jovem de direita extrapola o hate mais comum da internet, que costuma ser direcionado a uma personalidade, um filme ou um time. O veneno desse pequeno conservador tende a se dirigir a um grupo específico dentro da sociedade: as mulheres. Mesmo em suas críticas a produtos culturais, o objetivo final costuma ser o de ofendê-las. Foi o caso, por exemplo, do movimento gamergate, que em 2016 assolou a comunidade de gamers na internet numa suposta campanha por mais ética e transparência nas críticas de jogos feitas pelos portais “liberais” da mídia anglófona. Para os leitores, em sua maioria inclinados politicamente a essa nova direita, as resenhas de seus jogos favoritos estavam cada vez mais “amordaçadas pelo politicamente correto”. Ou seja, passaram a apontar nos jogos o que se discute na sociedade: a ausência injustificável nos games de protagonistas negros e mulheres ou a carência de uma análise sociológica do que ali está em questão.

Para os gamers, no entanto, a mudança não se tratava de um amadurecimento da crítica ou uma transformação no perfil dos jornalistas. Era, “claramente”, uma tentativa de deslegitimar a cultura de games existente até então. Apontar estereótipos batidos sobre as personagens femininas nos roteiros de jogos não seria uma crítica válida, mas uma tentativa de “silenciar” e desmerecer as “grandes narrativas” protagonizadas por brucutus fardados que dominavam o mercado.

O gamergate tinha alvos bem definidos: mulheres, desenvolvedoras ou jornalistas, e alguns raros homens que foram considerados cúmplices da “ideologia de gênero”. O alvo principal, a desenvolvedora Zoë Quinn, recebeu centenas de ameaças de morte e estupro. Isso por ter sido a “pivô” da confusão: quando um ex-namorado fez uma postagem de blog insinuando que Quinn teria tido um relacionamento com um crítico em troca de boas notas para seu jogo Depression Quest, os gamers caíram matando. Não bastou a falta de nexo do relato original, a linha do tempo conflitante (Quinn se envolveu com o jornalista bem depois do lançamento de seu jogo, e o portal em que ele trabalhava mal cobriu sua estreia), ou as críticas de que a reação era desmedida. Este era um ataque havia muito incubado, e bastava uma faísca para expelir aquela misoginia numa comunidade com cada vez mais desenvolvedores, críticos e artistas mulheres e LGBT.

Esse tipo de comportamento não é uma exceção no mundo da internet. Pelo contrário, é quase um lugar-comum. Em outras situações, se manifesta como apoio a um comediante criticado por fazer piadas ofensivas ou um ator acusado de assédio. Quem faz isso não se importa de verdade com o desenvolvedor de jogos ou o comediante que defende. O que o move é a ilusão de que qualquer diálogo que não termine com ele dando sua opinião certeira é silenciador. A certeza de que qualquer passa-fora em alguém parecido com ele é agressivo e desnecessário. O combustível do ódio, do ressentimento e do rancor é o seu suposto silenciamento.

Nada muito diferente do que animava a criação do “cânone esquecido” de Olavo de Carvalho. Mais do que resgatar o passado, o objetivo é combater aqueles que supostamente ameaçam o protagonismo de quem o deteve por muito, muito tempo, abalar um suposto novo status quo demarcado, de um lado, pelo que chamam de “marxismo cultural” e “gramsciano” das faculdades brasileiras, e, de outro, pela atuação “liberal” e “autoritária” de movimentos sociais que brigam para serem ouvidos e respeitados. É com essa retórica que a direita na internet conquista os jovens. “Rechaçados” pela esquerda, ou melhor, desafiados por ela em suas certezas, muitos veem nos conservadores o refúgio de um mundo cada vez mais “chato”. Entre seus iguais, eles finalmente voltariam a ter voz para falar o que bem entendessem.

O conservadorismo oferece a esse jovem uma aura de transgressão. Nesse meio, o consenso é incomodar e agredir os discursos das minorias, minimizando denúncias de machismo, racismo e homofobia que aparecem na grande imprensa. Para esse jovem recém-radicalizado e com vontade de chocar, é importante pronunciar-se contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo, opor-se às leis que caracterizam o feminicídio ou defender a proibição do aborto em qualquer circunstância. Sua tática não é o debate, mas o constrangimento. Como certos políticos, buscam palanque com suas provocações.

Essa radicalização dos jovens na internet não foi tão intensa na minha geração. As pessoas que conheci no Vale Tudo não necessariamente aderiram à direita. Uma parcela considerável adotou pautas progressistas. Outros se aprofundaram no conservadorismo e até continuaram a frequentar os cursos de Olavo. Foi o preço a se pagar pela tentativa de tirar o melhor de uma internet até então sem muitas leis. Os fóruns anônimos nos abriram uma porta para um mundo maior do que nossas escolas e nossos bairros, com tudo de bom e de ruim que isso trouxe.

As coisas mudaram desde que entrei no Vale Tudo, no final da década passada. Hoje, a proteção do anonimato não é indispensável como antes. A cultura da transgressão e da agressão virtual se transportou para nossos perfis em redes sociais. Basta ver os comentários de uma notícia ou postagem do Facebook ou Twitter: conteúdo violento, comentários desmerecedores e ofensas gratuitas, mas proferidos por perfis legítimos. Deve-se considerar, é claro, as hordas de robôs virtuais, mas não é preciso grande esforço para encontrar, entre nossos conhecidos, quem ofenda com prazer na internet. Se a gestação do fenômeno foi anônima, a maturidade parece chegar de cara lavada. Resta especular o que a internet de hoje nos reserva para os próximos dez anos.



NOTAS:

1. “Tenso”, de origem nebulosa, foi popularizado no VT e costumava aparecer para descrever situações ou imagens bizarras. “Tá tudo bem agora”, por sua vez, surgiu após a postagem de um usuário, Lord Eternal, que descrevia um encontro em um sonho com um personagem da série de jogos Pokémon. A criatura, chamada Entei, lhe confortava em momentos difíceis de sua vida e finalizava o discurso com a expressão, que caiu no gosto dos usuários, debochando da situação exótica.

2. Para além desses dois nomes, os frequentadores do fórum também costumavam declarar amores ao filme Clube da luta e aos dirigidos por Quentin Tarantino. Na música, a coisa variava bastante entre metal e outros subgêneros do rock.

3. Posteriormente, a obra voltou a ser editada no Brasil, numa versão em dez volumes menores, publicada pela Casa da Palavra em parceria com a Livraria Cultura

Fonte :  https://www.revistaserrote.com.br/2018/11/transgressao-a-direita-por-daniel-salgado/

Breve história crítica dos feminismos no Brasil



Por CARLA RODRIGUES

Excluídas da história oficial, as mulheres fazem do ato de contar a própria trajetória uma forma de resistência. Neste ensaio, publicado na serrote #30, a filósofa Carla Rodrigues enlaça as várias linhas dos movimentos feministas no país nas últimas décadas
Das mulheres, já se disse muita tolice. Para que não alcançassem a cidadania, Rousseau as restringiu à esfera privada. Kant confinou-as à pura sensibilidade e, ao deixá-las de fora do campo da razão, manteve-as longe da ciência. Devido ao suposto mistério envolvendo sua sexualidade, Freud considerou-as um enigma indecifrável. Excluídas da história, criaram uma historiografia própria para se opor ao apagamento e à invisibilidade da existência, fazendo do ato de contar a própria trajetória uma forma de resistência.1 Dicionários nomeiam, classificam e ordenam as pensadoras como forma de articular política editorial e estratégias de perpetuar a memória onde havia esquecimento.2 Esta breve história dos feminismos é costurada a partir do entrelaçamento de quatro feixes, quatro linhas históricas que serão trançadas como os cabelos das mulheres negras ou como as tramas das cestarias, nas quais a trama é menos visível do que a forma final que os fios produzem. Quero contar uma história despida de qualquer historicismo, de qualquer pretensão a estabelecer um nexo causal entre vários momentos, uma história que parte do tempo do agora.

“O histórico e o a-histórico são na mesma medida necessários para a saúde de um indivíduo, um povo e uma cultura”, escreve Friedrich Nietzsche em sua Segunda consideração intempestiva, de 1874,3 cujo subtítulo instiga quem se engaja na historiografia – “da utilidade e da desvantagem da história para a vida”. O texto entrou para a tradição filosófica como tendo exercido grande influência sobre as Teses sobre o conceito de história (1940), em que Walter Benjamin propõe, entre tantas outras coisas, capturar o passado “somente como imagem que lampeja no instante de sua recognoscibilidade, para nunca mais ser vista”. O argumento começa na tese V e continua na VI: “Articular o passado historicamente não significa conhecê-lo ‘tal como ele propriamente foi’”, mas “capturar uma imagem do passado como ela inesperadamente se coloca para o sujeito histórico no instante do perigo. O perigo ameaça tanto o conteúdo dado da tradição quanto os seus destinatários.”4 Se é verdade que os feminismos são plurais e abertos, eles o são exatamente ali onde não podem se constituir numa história monumental. Escrita a partir do encontro de Nietzsche com Benjamin, esta pequena história é crítica e se tece costurando quatro fios: os movimentos de mulheres e suas resistências; a constituição dos estudos feministas; a recepção do conceito de gênero e seus desdobramentos teóricos; e as relações internacionais tanto dos movimentos quanto das teorias. A cada tempo, a cada nó ou a cada onda, esses cruzamentos se modificam conforme a trama, como se as tranças fossem ao mesmo tempo hierárquicas e rizomáticas, lógicas e borromeanas, compatibilizando sistemas contraditórios entre si. Nessas amarrações, há movimentos de busca de elementos históricos, assim como há descontinuidades, curtos-circuitos onde algo parece se perder para vir a ser retomado depois. É como se o aforismo de Nietzsche – da história, trata-se de saber o que lembrar e o que esquecer – nem sempre funcionasse a contento. Há inúmeras iniciativas de reconstituição da trajetória dos movimentos de mulheres, seus erros, acertos e descontinuidades.5 Por vezes, cai no esquecimento aquilo que teria potência histórica; em outros casos, lembram-se de mais episódios que poderiam ser, senão esquecidos, pelo menos trançados com outros fios da memória.

#FIO 1 – RESISTÊNCIAS

A ressignificação da figura histórica de Luíza Mahin como mito libertário da escravidão tem sido, desde a publicação de Um defeito de cor (2006), o romance premiado de Ana Maria Gonçalves (1970), mola propulsora para o fortalecimento do movimento de mulheres negras e fundamental para desenhar novos símbolos, contrários à violenta associação entre ser negra e ser subalterna. Ex-escrava, Luíza liderou, no século 19, a revolta dos Malês, descrita por Ana Maria e tomada como ponto de resistência das mulheres negras e de oposição à tradição de subserviência. Faz parte desse movimento   a criação do Dia de Tereza de Benguela e da Mulher Negra no calendário da cidade do Rio de Janeiro, a ser comemorado   no dia 25 de julho, resultado da aprovação de projeto da vereadora Marielle Franco e também direcionado a enaltecer mulheres negras em posição de poder e resistência. Fenômenos parecidos podem ser encontrados nas diferentes formas de retomada das obras de escritoras como Carolina Maria de Jesus (1914-1977) e Conceição Evaristo (1946) – só recentemente reconhecida pelo grande público, embora veiculasse seus textos desde os anos 1980 nos Cadernos Negros, série anual de coletâneas de poesia e prosa dedicada a dar espaço e visibilidade a autoras e autores negros. A estratégia de voltar ao passado tem sido fundamental para as coletivas nas universidades, formadas por jovens que, em muitos casos, são as primeiras da família a escapar do trabalho doméstico para uma promessa de vida intelectual. O recurso a outra visão do passado tem produzido muitos efeitos no presente. Do slogan “Mulher negra tem história” à multiplicação de pesquisas acadêmicas,6 passando pela mobilização semanal de 120 coletivos de mulheres negras que se reúnem na capital paulista, há também as novas candidatas para os parlamentos estadual e federal, as disputas de poesia como o Slam das Minas, e a publicação, pela Companhia das Letras, de Quem tem medo do feminismo negro? (2018), de Djamila Ribeiro (1980). Além de autora, Djamila edita o selo Feminismos Plurais, da editora Letramento, que reúne obras de mulheres negras e títulos sobre racismo. Ainda que mais tímidos, há também fios trançados em torno da memória da feminista Lélia Gonzalez (1935-1994). Uma biografia de Lélia e a reedição de seus ensaios prometem ser parte desse desenho.7 Sua obra foi escrita em intenso diálogo com a feminista norte-americana Angela Davis, hoje mais editada aqui (com três títulos traduzidos nos últimos dois anos pela Boitempo) do que a brasileira.

A estratégia das mulheres negras de recuperação da sua história é similar a um tipo de proposta comum em outro grupo de mulheres, a geração que, anterior à segunda onda do feminismo, ficou imprensada entre as sufragistas e a explosão que viria nos anos 1970. É um grupo heterogêneo, formado principalmente por escritoras e intelectuais que, no rastro do Movimento Modernista de 1922, tomam como óbvio aquilo que na verdade era ainda muito estranho: que mulheres pudessem ser intelectuais e ocupar o espaço público e, sobretudo, o lugar do pensamento, da arte e da escrita. Esse momento das mulheres de letras no Brasil da primeira metade do século 20 é fundamental para abrir caminhos para as que viriam a seguir. Inclui Clarice Lispector (1920-1977), por exemplo, assim como Carmen da Silva (1919-1985), que fez história como editora e colunista na revista Claudia.8 É desse período também a literatura de Ruth Guimarães (1920-2014), mulher negra cujo romance de estreia, Água funda (1946, relançado em 2018 pela Editora 34), recebeu elogios e prefácio de Antonio Candido: “É um romance, mas escrito como se fosse prosa fiada, como se fosse narrativa caprichosa que vai indo e vindo ao sabor da memória, ao jeito dos contadores de casos. Esta primeira impressão é justa, mas não deve esconder do leitor o que há neste livro de composição deliberada, de técnica bastante complexa, rica em elipses, em saltos temporais, em subentendidos.” Raça, classe ou gênero não aparecem na avaliação de Candido.

Era um tempo em que escritoras flertavam com o que então se chamava “a questão feminina”, como Lygia Fagundes Telles (1923) ou Marina Colasanti (1937), e discutiam os problemas do gênero literário. “Existe uma literatura feminina?”  era uma pergunta a embalar algumas daquelas mulheres de letras. Merece destaque o trabalho da pesquisadora Zahidé Muzart (1939-2015), cuja carreira docente na UFSC foi dedicada à recuperação de autoras brasileiras ignoradas pelo cânone literário. Publicou livros, orientou pesquisas de mestrado e doutorado, fundou a Editora Mulheres – espelhada na iniciativa francesa da Éditions des Femmes, liderada pela feminista Antoinette Fouque – e foi pioneira na edição da crítica literária sobre Hilda Hilst (1930-2004).9 Zahidé compilou autoras brasileiras como Emília Freitas (1855-1908) e Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) e tornou conhecida a trajetória de Nísia Floresta (1810-1885),10 o que nos remeteria a outros fios dessa trama: a estratégia de legitimar as pautas feministas brasileiras a partir de autoras estrangeiras e a permanente interlocução dos movimentos no Brasil com os movimentos internacionais.


Gego, Sem título, 1970 Foto: Reinaldo Armás Ponce / Arquivo Fundación Gego

#FIO 2 – ESCREVER, EDITAR, PUBLICAR

Traduzir e editar textos feministas tem sido fundamental para os movimentos de mulheres desde que, no final do século 19, a educadora Nísia Floresta verteu “livremente” textos da feminista inglesa Mary Wollstonecraft, publicando Direitos das mulheres e injustiça dos homens em 1832 e entrando para a história como precursora intelectual dos ideais feministas de igualdade e emancipação.11 A estratégia de se apresentar como tradutora se entrelaça com a busca de legitimidade internacional para seus escritos, fio que vai se encontrar, na segunda metade do século 20, com o trabalho de Rose Marie Muraro (1930-2014), coordenadora do selo Rosa dos Tempos – hoje relançado pelo grupo Record – e editora de inúmeros textos fundamentais para a teoria feminista. Além do histórico A mística feminina, que trouxe a americana Betty Friedan ao Brasil nos anos 1970, há também o pioneirismo de Feminismo como crítica da modernidade (Rosa dos Tempos, 1991), onde está um dos primeiros textos de Judith Butler publicados em português, “Variações sobre sexo e gênero – Beauvoir, Wittig e Foucault”, espécie de laboratório para o clássico Gender Trouble (1990), publicado no Brasil em 2003 como Problemas de gênero. Tem papel fundamental também o trabalho de Heloisa Buarque de Hollanda (1939) na edição de coletâneas feministas. Está em Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura (Rocco, 1994), organizado por ela, o hoje clássico “Um manifesto para os cyborgs”, de Donna Haraway, e “Quem reivindica a alteridade”, de Gayatri Spivak, precursor de um dos textos fundadores do pensamento pós-colonial, Pode o subalterno falar? (Editora UFMG, 2010).

Percorrendo as linhas estratégicas da edição, é preciso mencionar também o trabalho de Danda Prado (1929). Quando chegou do exílio na França, nos anos 1980, Danda encontrou na Brasiliense uma linha editorial engajada, que procurava dar espaço para a publicação de autoras nacionais. A coleção Primeiros Passos, idealizada por Caio Graco, irmão de Danda, e dirigida pelo jovem Luiz Schwarcz, servia aos interesses feministas de oferecer textos acessíveis a grupos militantes. Títulos como O que é o feminismo, O que é o aborto e O que é a família – este assinado pela própria Danda – foram parte da sua interseção entre ativismo e produção intelectual. É da Brasiliense também a primeira edição de Breve história do feminismo no Brasil (1993), de Maria Amélia de Almeida Teles (1944), reeditado como Breve história do feminismo no Brasil e outros ensaios (Alameda Editorial, 2017). Já à professora Guacira Lopes Louro (1945) coube o pioneirismo na recepção da teoria queer, em especial no campo da educação, incluindo a tradução da introdução de Bodies That Matter – On the Discursive Limits of Sex (1993), de Judith Butler, complemento necessário aos debates iniciados em Gender Trouble.12 Faz parte dos desacertos nas leituras de Butler no Brasil a quase ignorância desse livro, onde estão algumas das respostas que ela oferece a críticas recebidas por Problemas de gênero.

#FIO 3 – INTERNACIONAL E DECOLONIAL

Outro nó se amarra aqui. Enquanto os movimentos se animam com as leituras, na constituição do campo dos estudos feministas acontece o debate sobre o problema da colonização dos saberes, que nos colocariam numa condição de dependência em relação à produção intelectual internacional. Impulsionadas primeiro por críticas pós-coloniais, como a de Gayatri Spivak, e hoje pelo que se renomeou como pensamento decolonial, teóricas feministas brasileiras se engajam nas escavações de pensadoras brasileiras, como fez Zahidé, e em críticas de políticas de tradução com ênfase em nomes consagrados, legando ao esquecimento autoras indispensáveis nas bibliografias de pesquisa, mas nem sempre palatáveis ao mercado editorial. Destaco a coletânea Traduções da cultura: perspectivas críticas feministas (1970-2010), volume que dá continuidade à estratégia de preencher lacunas bibliográficas e reúne a tradução de textos fundamentais para a teoria feminista. Inclui, por exemplo, “O riso da Medusa”, de Hélène Cixous, “O pensamento straight”, de Monique Wittig, “O olhar oposicional: espectadoras negras”, de bel hooks, além de comentadoras brasileiras das respectivas traduções.13

Táticas de guerrilha cumpriram a função de amarrar teoria e prática. Foi o que aconteceu, por exemplo, em relação a “The Traffic in Women: Notes on the ‘Political Economy’ of Sex” (1975), da antropóloga Gayle Rubin, considerado peça fundamental para a compreensão do sistema sexo/gênero e da crítica feminista à antropologia estruturalista de Lévi-Strauss. A necessidade de se valer desse texto nos debates políticos e   o obstáculo de não haver edição em português fizeram com que três ativistas traduzissem o artigo, que começa a circular ainda em mimeo, depois em cópias xerox, muitas enviadas pelo correio. Foi editado pelo SOS Corpo, organização não governamental atuante na defesa dos direitos das mulheres.14 Nos anos 1990, com a chegada da internet, passou a estar disponível online. Só em 2017 ganhou edição em livro.15

O ponto da crítica à bibliografia faz nó, por exemplo, com a criação, pela ONU, do Ano Internacional da Mulher. Era 1975, momento crucial para feministas e movimentos de resistência à ditadura civil-militar, unidos apesar das diferenças internas (bons tempos…). A importância do apoio internacional pode ser encontrada no balanço dos 40 anos de atuação da Fundação Ford no Brasil,16 cujo trabalho no país começa em 1962 e chega aos anos 1990 com o financiamento a projetos sociais de mulheres e para mulheres. Desde o final dos anos 1950, a Ford seguia uma preocupação comum à época: o crescimento populacional em países em desenvolvimento. No Brasil, deu apoio decisivo para áreas como demografia, planejamento familiar e reprodução, tendo participado da chamada transição demográfica brasileira, que significou, nas décadas de 1970 e 1980, a queda do número de filhos por mulher. Nos anos 1990, o programa foi revisto, por ser considerado “controlista” e muito ligado a abordagens médicas, e a Ford passou a atuar junto aos movimentos de mulheres e às comunidades de base. Assim, a área deixa de se chamar População para tornar-se aberta a outros temas e ser rebatizada de Sexualidade e Saúde Reprodutiva, com expressivo apoio à agenda da ONU.17 Estratégias de internacionalização ganham reforço, em menor grau de investimento, da Fundação MacArthur, cujo programa de bolsas foi responsável pela formação de lideranças feministas em diferentes áreas de atuação.

Uma das peculiaridades no trabalho da Fundação Ford foi apoiar pesquisas acadêmicas. Em 1996, começou a financiar o Programa em Gênero, Sexualidade e Saúde Reprodutiva, coordenado pela antropóloga Maria Luiza Heilborn (1953) no Instituto de Medicina Social (Uerj), onde de novo se cruzam dois feixes desta trama: o desenvolvimento do campo universitário e a recepção do conceito de gênero na pesquisa sobre mulheres – nas ciências sociais em geral e na antropologia em particular. Na linha da constituição dos estudos de gênero, o apoio à Revista de Estudos Feministas, criada na UFRJ e hoje editada pela UFSC, é ponto de amarração entre teoria e prática. Em tese de doutorado18 recém-defendida na Unicamp, a pesquisadora Marília Moschkovich (1986) retoma a recepção do conceito de gênero entre os anos 1980 e 1990. Dedica o trabalho às antropólogas Maria Luiza Heilborn e Elisabeth Souza-Lobo (1943-1991), duas mulheres que são parte importante nessa costura. O percurso de Maria Luiza, por exemplo, passa pelos quatro fios entrelaçados aqui: atuação no movimento de mulheres, constituição do campo de pesquisa, recepção do conceito de gênero, com formação de pesquisadoras na área, e interlocução internacional como pioneira no projeto financiado pela Ford em 1996. Haveria muitas outras autoras a citar, legadas ao esquecimento, talvez porque cada vez mais as bibliografias de pesquisa sejam feitas nas prateleiras dos lançamentos das livrarias e menos nas empoeiradas estantes das bibliotecas.

Em termos de internacionalização, a década de 1990 foi marcada por conferências da ONU, desde a Rio 92, onde as organizações feministas estiveram representadas no “Planeta fêmea” – montado no aterro do Flamengo a fim de dar visibilidade aos projetos com e de mulheres ao redor do mundo –, passando pela Cairo 94, com o tema da população, e Beijing 95, abordando os direitos das mulheres. Foram pelo menos 20 anos de intensa participação brasileira em redes internacionais. Desse período se trança uma iniciativa contemporânea, costurada desde 2002, o Observatório de Sexualidade e Política (SPW, na sigla em inglês), sediado na Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids e dirigido por Sonia Corrêa (1948) e Richard Parker, ambos articuladores dos ativismos nacionais com os internacionais.



#FIO 4 – CONSTRUÇÃO E DESCONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE GÊNERO

No eixo da formação acadêmica, a geração precursora da segunda onda do feminismo, nos anos 1970, se inspirou no admirável trabalho da socióloga Heleieth Saffioti (1934-2010). Sua tese de livre-docência defendida em 1967 nas Ciências Sociais da Unesp antecipava, pelo viés marxista, o debate sobre as desigualdades sociais e econômicas que pesavam sobre as mulheres. Publicada em livro,19 tornou-se referência nesse cruzamento entre materialismo e feminismo, em que as relações de poder entre homens e mulheres são pensadas em tensão dialética, o que em muitos movimentos contemporâneos infelizmente se perdeu na perspectiva simplista de opor vítimas e algozes. “Como na dialética entre o escravo e seu senhor, homem e mulher jogam, cada um com seus poderes. O primeiro para preservar sua supremacia, a segunda para tornar menos incompleta sua cidadania”, escreve Saffioti num artigo da coletânea Uma questão de gênero, editada em 1992 pela Fundação Carlos Chagas como balanço dos primeiros 15 anos de recepção do conceito de gênero nos estudos brasileiros. Embora seja impossível encontrar o único ponto de costura inicial dessa rede, ou exatamente por isso, vale a pena seguir a tese de Marília, que reconta a criação do primeiro grupo de trabalho sobre gênero na Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs). Em 1990, dois núcleos estudavam temas ligados às mulheres, um voltado para a participação na política e outro, para a inserção no mercado de trabalho. A decisão de se unirem em um novo grupo, “O caráter transversal do gênero nas ciências sociais”, coordenado pela economista Lena Lavinas (1953), promoveu a criação do primeiro núcleo oficial de pesquisa sobre gênero no país.

Aqui, vale a pena fazer um point de capiton, aquele usado no capitonê francês, metáfora lacaniana para o ponto de interrupção da rede de significantes pensada pela linguística estruturalista. Hoje sob ataque cerrado de “ideólogos” que enxergam nele o fim da família – e quiçá da humanidade –  ou de teóricos que consideram necessário substituí-lo pela crítica à heteronormatividade, o conceito de gênero se estabelecia na década de 1990 a partir de sua construção política e discursiva em prol do debate sobre diferença sexual    e assimetria do papel de homens e mulheres na vida social. Fazendo eco a um debate sobre o quanto o termo “gênero” poderia estar subsumindo a categoria mulher, Maria Luiza Heilborn escreve: “Em geral, a entrada da perspectiva do gênero foi saudada como uma grande renovação nas ciências sociais […]. Nos primeiros momentos imaginou-se que uma revolução estava em curso nas ciências sociais, mas um balanço um pouco menos ufanista assinala que a incorporação da perspectiva de gênero foi menos transformadora do que se supõe.”20

Antropólogas de ontem e de hoje continuam trabalhando e criticando o conceito de gênero, com amarrações, por exemplo, na sua recente expansão para o campo da filosofia. Em que pese o pioneirismo de Maria de Lourdes Borges (1961) e Marcia Tiburi (1970) em seminários e publicações sobre a mulher na filosofia no início dos anos 2000, é preciso registrar o quão recente é a criação do primeiro grupo de trabalho sobre filosofia e gênero na Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (Anpof), reunião dos programas de pós-graduação em filosofia nas universidades brasileiras. Apenas em 2016, por iniciativa de Susana de Castro Amaral Vieira (1967), o tema foi institucionalizado num ambiente filosófico que há dez anos considerava Simone de Beauvoir “apenas” uma grande escritora francesa premiada. Entre as precursoras das pesquisas sobre a filósofa francesa está a mineira Magda Guadalupe dos Santos (1957), participante assídua dos congressos anuais da Simone de Beauvoir Society. Até bem pouco tempo atrás, ainda era necessário justificar diante de agências de fomento a realização de pesquisas sobre Beauvoir em filosofia. Entre o Fazendo Gênero e o (Des)fazendo Gênero, dois encontros em torno da recepção do conceito nas ciências sociais, a filosofia chega para ampliar o caráter multidisciplinar do gênero.

Na história, em certa medida impulsionadas pela importância do trabalho de Joan Scott – no artigo “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”, cuja tradução fez parte do fio estratégico da edição de textos fundamentais21 –, muitas feministas se engajam na costura entre o passado e o contemporâneo. É de imensa relevância a pesquisa da historiadora Margareth Rago (1948) sobre o pensamento anarquista-libertário de Maria Lacerda de Moura (1887-1945), escritora, militante anarquista, dedicada a pensar formas anti-hierárquicas de viver e engajada na luta internacional antifascista, em diálogo com a italiana Luce Fabbri (1908-2000) e com anarquistas latino-americanas, principalmente as argentinas. Maria Lacerda de Moura começa a publicar seus textos em 1908, mas será entre as décadas de 1910 e 1930 que seus livros estarão carregados de críticas à situação social da mulher e à moral sexual opressora. Amor livre, amor plural, educação sexual, direito ao prazer e prostituição são alguns dos temas abordados por ela e que se amarram à emergência dos atuais coletivos feministas anarquistas, aos grupos defensores do poliamor e à mobilização das prostitutas pela legalização da profissão. A pesquisa de Margareth sobre a atuação política de Maria Lacerda de Moura está a serviço do seu interesse em contestar a narrativa hegemônica do feminismo branco e bem-comportado da burguesia.22 Significa dizer, no rastro das manifestações de junho de 2013 e da expansão das formas anarquistas de política, aí incluindo os movimentos antiencarceramento, que há grandes lacunas a preencher para costurar as lutas futuras com as passadas. São inúmeras as tentativas de ligações históricas desses nós tramados entre as mulheres de hoje e de ontem, e há sempre aquilo que resta a ser contado, costurado, amarrado e lembrado.

#CESTARIA

Da reedição de Parque industrial,23 de Patrícia Galvão, a Pagu (1910-1962), à emergência de uma imprensa feminista24 para se contrapor ao velho modelo da imprensa feminina, passando pela volta das velhas tensões entre esquerda e feminismos, indicadas no neologismo “esquerdomacho” – termo que poderia ter sido criado pelas militantes feministas, sempre enfrentando dificuldade com a pauta de mulheres nos movimentos de resistência à ditadura –, os pontos de encontro são muitos. As mulheres da periferia de São Paulo da década de 1970 se reconheceriam nos movimentos de negras em favelas, assim como as protagonistas das campanhas de denúncia da violência contra a mulher estariam – e muitas delas ainda estão – nas Marchas das Vadias iniciadas a partir do Canadá em 2011. As mulheres negras de hoje gostariam de ter estado presentes numa das reuniões do primeiro Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, criado em 1985, quando duas feministas se enfrentaram – a negra acusando a branca de “nunca abandonar sua atitude de sinhazinha” –, em termos não muito diferentes dos usados hoje pelas feministas negras para acusar as brancas de autoritarismo, racismo e hierarquia. As lésbicas, que já nos anos 1980 reivindicavam maior visibilidade dentro dos encontros feministas, gostariam de conversar com as mulheres trans, ainda invisíveis nas amplas pautas atuais, e talvez enfrentar juntas algumas das dificuldades de aceitação por parte de grupos mais radicais. As atuais redes de apoio político-jurídico a mulheres que buscam o direito ao aborto se encontrariam com as feministas que nos anos 1980 ofereciam suporte à interrupção de gravidez para mulheres pobres, para as quais as clínicas clandestinas de qualidade eram inacessíveis. Exemplo recente foi a mobilização em torno da jovem Rebeca Mendes (1987), que, depois de ver negado seu pedido junto ao STF de fazer um aborto legal, foi amparada pela Anis – Instituto de Bioética (organização não governamental feminista) para realizá-lo na Colômbia, onde a prática já está descriminalizada.

Mas se é verdade que, como argumenta Paulo Arantes,25 vivemos em um tempo sem horizonte, encolhendo o nosso campo de ação por não dispormos mais de parte do futuro, também podemos voltar a Walter Benjamin para pensar que vivemos num tempo sem passado. Em 2018, ano do inominável assassinato da vereadora Marielle Franco (1979-2018), uma pequena história dos feminismos no Brasil talvez nos sirva para despertar, a partir da potência dos movimentos políticos que ela encarnava, algum tipo de esperança se não no futuro, pelo menos na tarefa da rememoração. A radiante mulher negra em seus turbantes e brincos coloridos havia sido eleita com o dito de campanha “eu sou porque nós somos”, referência à força da comunidade contra a fraqueza da individualidade, outra forma de criticar o feminismo liberal branco de matriz individualista.26 Os fios da resistência, da teoria, do conceito e das relações internacionais são entrelaçamentos entre teoria e prática, outra das preocupações de Benjamin nas suas teses sobre o conceito de história, seja a partir da influência de György Lukács, seja pela importância do materialismo histórico na fase madura de sua obra. Uma das potências da rememoração está em trançar passado, presente e futuro para fora de qualquer linha de progresso, seguindo Max Horkheimer na sua proposição de que a transformação radical da sociedade e o fim da exploração não são uma aceleração do progresso, mas um salto para fora do progresso.

Somos, numa proposição de Max Weber tomada pelo antropólogo Clifford Geertz na definição de cultura, seres amarrados em teias de significado que nós mesmas tecemos, ou atados pela história que contamos sobre nós mesmas e sempre recontamos, porque é infinita a necessidade de separar o que lembrar e o que esquecer, e redesenhar as imagens que lampejam do passado, em constelações muito menos coerentes do que gostaríamos de acreditar. Se essas teias pudessem formar um cesto que contorna o vazio, configurar um receptáculo que dá lugar a todas as reivindicações e, mais, onde sempre pode caber a cada vez uma nova pauta política, passaríamos a propor transformações ao modo dos feminismos, que estão sempre sendo costurados, feitos, desfeitos e refeitos, a fim de tornar as nossas tramas outro modo de fazer revolução.



NOTAS

Destaco o trabalho da francesa Michelle Perrot, autora, entre outros tantos títulos, da inspiradora coletânea de ensaios Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. São Paulo: Paz e Terra, 2017.
Schuma Schumaher e Érico Vital Brazil, Dicionário Mulheres do Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2000; Nelly Novaes Coelho, Dicionário crítico de escritoras brasileiras. São Paulo: Escrituras, 2002; Helena Hirata, Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Editora Unesp, 2009; Béatrice Didier, Antoinette Fouque, Mireille Calle-Gruber, Le Dictionnaire universel des créatrices. Paris: Éditions des Femmes, 2013; Ana Maria Colling e Losandro Antonio Tedeschi, Dicionário crítico de gênero. Dourados: Editora UFGD, 2015.
Friedrich Nietzsche, Segunda consideração intempestiva: da utilidade e da desvantagem da história para a vida. Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2003.
Estou citando a tradução das teses feita por Jeanne Marie Gagnebin e Marcos Lutz Müller, publicada em Michael Löwy, Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005.
Apenas como exemplo, cito duas autoras que vêm se dedicando a contar histórias dos feminismos no Brasil: Céli Regina Jardim Pinto, Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003; Rachel Soihet, Feminismos e  antifeminismos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2017.
Gostaria de destacar, no movimento de valorização da trajetória de Luíza Mahin, o trabalho de Dulcilei da Conceição Lima, Desvendando Luíza Mahin: um mito libertário no cerne do feminismo negro. Dissertação de mestrado em Educação, Arte e História da Cultura, Universidade Mackenzie, São Paulo, 2011.
Alex Ratts e Flavia Rios, Lélia Gonzalez. São Paulo: Selo Negro Edições, 2010; Lélia Gonzalez, Primavera para as rosas negras. São Paulo: Território Africano, 2018.
Ana Rita Fonteles Duarte, Carmen da Silva: o feminismo na imprensa brasileira. Fortaleza: Expressão Gráfica; Edições Nudoc, 2005.
Vera Queiroz, Hilda Hilst: três leituras. Florianópolis: Editora Mulheres, 2000.
Constância Duarte, Nísia Floresta: a primeira feminista do Brasil. Florianópolis: Editora Mulheres, 2005.
Nísia Floresta, Direito das mulheres e injustiças dos homens, publicado em Recife em 1832, em Porto Alegre em 1833, no Rio de Janeiro em 1839. Há uma quarta edição comentada por sua biógrafa, Constância Lima Duarte (São Paulo: Cortez, 1989). Durante muito tempo, o texto de Nísia foi citado como a primeira tradução de A Vindication of the Rights of Woman: With Strictures on Political and Moral Subjects, escrito em 1792 por Mary Wollstonecraft, hoje editado no Brasil como Reivindicação dos direitos da mulher. Trad. Ivania Pocinho Motta. São Paulo: Boitempo, 2016.
Estou me referindo à publicação de “Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do ‘sexo’” em coletânea organizada por Guacira Lopes Louro com textos traduzidos por Tomaz Tadeu da Silva, O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
Izabel Brandão, Ildney Cavalcanti, Claudia de Lima Costa e Ana Cecília A. Lima (orgs.), Traduções da cultura: perspectivas críticas feministas (1970-2010). Florianópolis: Edufal/Editora Mulheres/ Editora da UFsC, 2017.
As tradutoras são Christine Rufino Dabat, Edileusa Oliveira da Rocha e Sonia Corrêa.
Gayle Rubin, “Tráfico de mulheres: notas sobre a ‘economia política’ do sexo”, in Políticas do sexo. Trad. Jamile Pinheiro Dias. São Paulo: Ubu, 2017.
Nigel Brooke e Mary Witoshynsky (orgs.), Os 40 anos da Fundação Ford no Brasil: uma parceria para a mudança social. São Paulo: Edusp; Ford, 2002.
Conforme relato de Cecília de Mello e Souza em “Dos estudos populacionais à saúde reprodutiva”, in Os 40 anos da Fundação Ford no Brasil, op. cit.
Marília Moschkovich, Feminist Gender Wars: a recepção do conceito de gênero no Brasil (1980s -1990s) e as dinâmicas globais de produção e circulação de conhecimento. Tese de doutorado, Programa de Pós-Graduação em Educação da Unicamp, Campinas, 2018.
Heleieth Saffioti, A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. Petrópolis: Vozes, 1976.
Maria Luiza Heilborn, “De que gênero estamos falando?”. Sexualidade, gênero e sociedade, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, 1994, pp. 1-8, apud Marília Moschkovich, op. cit., p. 30.
Joan Scott, “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Trad. Guacira Lopes Louro. Revista de Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 15, n. 2, 1990.
Mais sobre a figura histórica de Maria Lacerda de Moura nas leituras de Margareth Rago, “Entre o anarquismo e o feminismo: Maria Lacerda de Moura e Luce Fabbri”, Revista Verve. São Paulo, n. 21, 2012, pp. 54-78; Miriam L. Moreira Leite, Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura. São Paulo: Ática, 1984; Liane Peters Richter, Emancipação feminina e moral libertária: Emma  Goldman e Maria Lacerda de Moura. Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em História da Unicamp, Campinas, 1998, defendida sob orientação de Margareth Rago.
São Paulo: Linha a Linha, 2018.
Destaco a pesquisa Comunicação e gênero: as narrativas dos movimentos feministas contemporâneos, em que Ana Beatriz Rangel Pessanha da Silva faz um amplo levantamento de publicações feministas. Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Gradução em Comunicação e Cultura da ECO/UFRJ, 2017.
Paulo Arantes, O novo tempo do mundo e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014.
Sobre esses limites, sigo as argumentações de Nancy Fraser em “O feminismo, o capitalismo e a astúcia da história”. Trad. Anselmo da Costa Filho e Sávio Cavalcante. Mediações, Londrina, v. 14, n. 2, 2009, pp. 11-33.

Carla Rodrigues (1961) é feminista, filósofa, professora de filosofia na UFRJ e pesquisadora da Faperj. É uma das organizadoras da antologia Problemas de gênero, da coleção Ensaios Brasileiros Contemporâneos, editada pela Funarte em 2017. Na serrote, publicou “Os nomes do capital” (#9), “Revolta” (#15) e “Erguer, acumular, quebrar, varrer, erguer…” (#24).

site da revista Serrote, publicação do Instituto Moreira Salles,

A ideia de um mundo sem fronteiras



Por ACHILLE MBEMBE

A utopia da livre circulação entre os países é hoje solapada pelo reforço das restrições de movimento que reproduzem e intensificam a vulnerabilidade de grupos estigmatizados e mais marcados racialmente

A capacidade de decidir quem pode se mover, quem pode se estabelecer onde e sob quais condições, ocupa cada vez mais o centro de lutas políticas por soberania, nacionalismo, cidadania, segurança e liberdade. Com a expansão colonial do ocidente, e de modo mais decisivo com o advento do capitalismo, a raison d’être da fronteira se relaciona a questões­-chave como: a quem pertence a terra? Quem tem o direito de reivindicar partes dela e os vários seres que nela habitam? Quem determina sua distribuição ou divisão? Ao enquadrar a questão da fronteira dessa forma, estou tentando mostrar que o poder da fronteira está em sua capacidade de regular as múltiplas distribuições das populações – humanas e não humanas – sobre o corpo da terra, e, assim, afetar as forças vitais de todos os tipos de seres.

No século 21, torna-­se evidente um desejo global renovado dos cidadãos e de seus respectivos Estados por um controle mais rígido da mobilidade. Para onde quer que se olhe, o impulso é em direção ao cercamento ou, em todo caso, a uma dialética mais intensa de territorialização e desterritorialização, de abertura e fechamento. Ganha força a crença de que o mundo seria mais seguro se ao menos os riscos, as ambiguidades e as incertezas pudessem ser controladas, se ao menos as identidades pudessem ser fixadas de uma vez por todas. Técnicas de gerenciamento de risco estão se tornando, cada vez mais, um método para governar a mobilidade. Sobretudo na medida em que a fronteira biométrica se expande para múltiplos domínios, não apenas na vida social, mas também no corpo, o corpo que não é meu.

Gostaria de prosseguir nessa linha de argumentação sobre a redistribuição da terra. Não apenas por meio do controle dos corpos, mas do controle do movimento em si e de seu corolário, a velocidade, pois é a isso que as políticas de controle migratório estão de fato relacionadas: controlar os corpos, mas também o movimento. Mais especificamente, quero investigar se, e sob quais condições, poderíamos reengendrar a utopia de um mundo sem fronteiras, e, por extensão, reengendrar um mundo sem fronteiras, uma vez que, pelo que sei, a África é parte do mundo. E o mundo é parte da África.

É importante levar em consideração que a questão de um mundo sem fronteiras é uma intenção obviamente utópica. Desde a sua origem, o “movimento”, ou mais precisamente “a ausência de fronteiras”, tem sido central para várias tradições utópicas. O próprio conceito de utopia refere-­se ao que não tem fronteiras, a começar pela imaginação em si. O poder da utopia consiste em sua capacidade de representar a tensão entre a ausência de fronteiras, o movimento e o lugar, uma tensão – se observarmos com cuidado – que marcou as transformações sociais na era moderna. Essa tensão continua nas discussões contemporâneas sobre processos sociais baseados no movimento, especialmente a migração internacional, as fronteiras abertas, o transnacionalismo e até o cosmopolitismo. Nesse contexto, a ideia de um mundo sem fronteiras pode ser um recurso poderoso, embora problemático, para o social, o político e até mesmo para a imaginação estética. Por causa da atual atrofia da imaginação utópica, o espírito do nosso tempo foi colonizado por imaginários apocalípticos e narrativas de desastres cataclísmicos e futuros desconhecidos. Mas que política as visões do apocalipse e da catástrofe engendram, se não uma política da separação, em vez de uma política da humanidade, de espécies começando a existir plenamente? Porque nós herdamos uma história em que a norma é o sacrifício recorrente de algumas vidas para a melhoria de outras, e porque estes são tempos de medos profundamente enraizados, incluindo o medo de um planeta dominado por outras pessoas de raças diferentes; por tudo isso, a violência racial está amplamente codificada na linguagem da fronteira e da segurança. Como resultado disso, as fronteiras contemporâneas correm o risco de se tornarem lugares de reforço, reprodução e intensificação da vulnerabilidade para grupos estigmatizados e desrespeitados, para os mais marcados racialmente, cada vez mais dispensáveis, aqueles que, na era do desamparo neoliberal, pagam o preço mais alto pelo período em que mais se construíram prisões em toda a história humana. Aqui me refiro à prisão, às paisagens carcerárias de nosso mundo, precisamente como a antítese do movimento, da liberdade de se mover. Não há oposição mais dramática à ideia de movimento do que a prisão. E a prisão é uma característica-­chave da paisagem dos nossos tempos.

Ao propor um reexame da questão de uma África sem fronteiras e de um mundo sem fronteiras, gostaria de manter distância dos tratamentos dominantes que esse assunto tem recebido. Isto é, sob o signo de Kant e sua promessa de um cosmopolitismo sem limites, e sob o signo de um individualismo liberal visto como antídoto para os impulsos fascistas arraigados na governança e na burocracia europeias. Embora pareçam dois mundos diferentes, ambas as abordagens são articuladas em torno do conceito das quatro liberdades.
  

AS QUATRO LIBERDADES DE MOVIMENTO

No pensamento liberal clássico, existem três liberdades fundamentais: antes de tudo, a liberdade de ir e vir. Dentro da liberdade de ir e vir, existe a liberdade de movimentação do capital, a maior prioridade. Mas, uma vez que não há capital sem bens, existe a liberdade de movimentação dos bens. A terceira é a dos serviços, e, especialmente nestes nossos tempos, a liberdade de movimento daqueles que podem prestá-­los. Essas são as três liberdades fundamentais; a quarta é a liberdade de movimento das pessoas. Os compromissos tradicionais com a ideia de um mundo sem fronteiras visavam precipitar o advento dessa quarta liberdade. De acordo com essa configuração, em um mundo sem fronteiras haveria liberdade de movimento para: o capital, os bens, os serviços e as pessoas. Essa movimentação, essa liberdade de movimento não seria restrita ao núcleo de países ou Estados economicamente ricos, como é o caso atualmente. O Tratado de Schengen,1 por exemplo, inclui apenas um núcleo de países europeus. De fato, se você tem um passaporte americano, basicamente pode ir aonde quiser. O mundo pertence a você. Mas não é assim que funciona para todo habitante do nosso planeta. Na configuração que mencionei, a quarta liberdade, a capacidade de se mover pelo planeta, não estaria mais restrita a europeus e americanos. Seria um direito radical que todos os indivíduos teriam pelo simples fato de serem humanos. Um direito estendido aos pobres da terra. Voltamos sempre à questão da terra. Não haveria vistos, em algumas instâncias da quarta liberdade de movimento não haveria cotas, e nenhuma categoria bizarra na qual se enquadrar. Seria possível simplesmente pegar a estrada, um avião, um trem, um barco, uma bicicleta. O direito de não ser discriminado seria estendido a todos. Em Camarões, até o início dos anos 1980, era possível viajar para a França apenas com a carteira de identidade. A maioria das pessoas ia à França e voltava. Não iam porque queriam se estabelecer lá. A maioria das pessoas quer viver no lugar ao qual “pertence”. Mas querem poder ir e vir. E é mais provável que vão e venham quando as fronteiras não são hermeticamente fechadas. Logo, o mundo sem fronteiras imaginado pela quarta liberdade de movimento é baseado em duas premissas: o direito à não discriminação e os arranjos circulatórios e pendulares de migração.

Para elucidar ou apresentar de modo diferente as questões de um mundo sem fronteiras é preciso contrastar dois paradigmas. Examinar a ideia liberal de um mundo sem fronteiras por meio do conceito de liberdade de movimento, e contrapô-­la aos modos como se compreendia a movimentação no espaço da África pré­-colonial. O contraste entre esses dois paradigmas nos dará, espero, recursos conceituais para expandir o projeto utópico de um mundo sem fronteiras.



A TRADIÇÃO LIBERAL INDIVIDUALISTA

Falar em pensamento clássico liberal, sabemos, é extremamente complicado. Estou propondo um arquétipo, que precisa ser desconstruído adequadamente. E aqui vou me referir em especial a uma obra recente, Movement and the Ordering of Freedom, de Hagar Kotef, uma acadêmica israelense que leciona na Faculdade de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres. Você pode usar a imaginação e adivinhar por que uma israelense está interessada nisso. O que Kotef demonstra nessa obra é como o pensamento político liberal, ao imaginar a possibilidade de um mundo sem fronteiras, carregou sempre uma contradição. Seu argumento é que essa contradição decorre da forma como o pensamento liberal compreende o movimento. Ela mostra que, de fato, dentro do pensamento liberal clássico, duas configurações dominantes de movimento entram constantemente em conflito, de modo que, às vezes, uma anula a outra. O movimento aqui é visto, ao mesmo tempo, como manifestação das liberdades e como interrupção, ameaça à ordem. Uma das funções do Estado é, portanto, fabricar conceitos de ordem, estabilidade e segurança que possam ser conciliados com seus conceitos de liberdade e movimento. Essa é a contradição. Kotef argumenta que o Estado liberal clássico é inimigo das pessoas que circulam incansavelmente. Essas pessoas se tornam um outro inassimilável. Não se pode assimilá-­los. Eles estão em movimento constante. Em tudo isso, há uma repercussão colonial. O maior problema do Estado colonial no continente africano, do século 19 em diante, era garantir que as pessoas ficassem no lugar. Foi difícil. Elas circulavam constantemente. Eram “incapturadas”.

Portanto, o negócio do Estado é conseguir capturá-­los. Sem isso, a soberania não significa nada. Soberania significa capturar um povo, capturar um território, delimitar fronteiras. Isso, por sua vez, permite que se exerça o monopólio do território, claro, o monopólio sobre as pessoas nos termos do uso legítimo da força e, o que é muito importante – porque todo o resto depende disso –,   o monopólio sobre a cobrança de impostos. Não se pode cobrar impostos de quem não tem endereço. O Estado vê essas pessoas como inimigas – tanto da liberdade, porque eles não a exercem dentro dos limites, quanto da segurança e da ordem. Não se pode construir uma ordem com base no que é instável.

O mesmo Estado é amigo do movimento autorregulado. Por quê? Porque a liberdade nesse caso é entendida como uma questão de moderação, de autorregulação. Não está associada ao excesso – o movimento excessivo imediatamente invoca problemas de segurança. Kotef então mostra que o movimento não só precisa ser contido por um aparato de mecanismos disciplinares, como deve ser reconciliado com a liberdade e, em certa medida, com o autocontrole. Mas não se supõe que todos os sujeitos tenham capacidade de controlar ou regular a si mesmos. Nem todo mundo consegue se conter. Portanto, alguns movimentos são rotulados como liberdade, e outros são considerados impróprios e percebidos como uma ameaça. Essa é a bifurcação que existe no pensamento clássico liberal. É o espectro que assombra os Estados liberais clássicos, desde aquela época até agora. Ainda não nos livramos desse espectro.

Os Estados liberais clássicos tentaram resolver essa contradição pelo gerenciamento da mobilidade, que está de volta à pauta agora na Europa e até na África do Sul, onde tenho feito alguns trabalhos com o Departamento de Assuntos Internos a respeito da regulação de migrações interafricanas. O conceito-­chave é “mobilidade gerenciada”. Então, no quadro da mobilidade gerenciada, certas categorias da população são vistas o tempo todo como possível ameaça, não apenas para si mesmas e sua própria segurança, mas também para a segurança dos demais. Acredita-­se que essa ameaça pode ser reduzida se os movimentos dessas pessoas forem limitados e se elas forem domesticadas e submetidas a algum tipo de reforma.


O MODELO AFRICANO

No modelo clássico liberal, segurança e liberdade passam a ser definidas como um direito de exclusão. A ordem, nesse modelo, diz respeito à garantia de uma organização desigual das relações de propriedade. Assegurar as fronteiras da nação acompanha a afirmação dos limites da raça. Agora, redefinir os limites da raça nesse modelo exige uma definição apropriada dos limites do corpo; a centralidade do corpo nos cálculos de liberdade e de segurança.

Antes de mais nada, devo dizer que a África pré­-colonial pode não ter sido um mundo sem fronteiras, pelo menos não no sentido em que as temos definido; as fronteiras existentes sempre foram porosas e permeáveis. A função de uma fronteira, na realidade, é ser cruzada. É para isso que elas servem. Não há fronteira concebível fora desse princípio, a lei da permeabilidade. Como atestam as tradições de comércio de longa distância, a circulação era essencial. Era fundamental na produção de formas culturais, arranjos políticos, configurações econômicas, sociais e religiosas. O veículo mais importante para a transformação e a mudança era a mobilidade. Não era a luta de classes, no sentido em que a compreendemos. A mobilidade era o motor de qualquer tipo de transformação social, econômica ou política. Aliás, era o princípio indutor por trás da delimitação e da organização do espaço   e dos territórios. Assim, o princípio primordial da organização espacial era o movimento contínuo. E isso ainda é parte da cultura hoje. Parar é correr riscos. Você precisa estar em constante movimento. Sobretudo em situações de crise, essa é a própria condição da sobrevivência. Se você não se move, as chances de sobreviver diminuem. Logo, o domínio sobre   a soberania não era expresso exclusivamente por meio do controle de território, marcado fisicamente com fronteiras. Como era, então? Se não se controla um território, como se pode exercer a soberania? Como se pode extrair qualquer coisa, uma vez que, pelo que sabemos, o poder se expressa também, se não essencialmente, por meio de alguma forma de extração?

Tudo isso era representado pelas redes. Redes e encruzilhadas. A importância das redes e das encruzilhadas na literatura africana é impressionante. Leia Soyinka, leia Achebe, leia Tutuola.2 Estradas e cruzamentos estão por toda parte na literatura deles. As encruzilhadas, os fluxos de pessoas e os fluxos da natureza, ambos em relações dialéticas, porque nessas cosmogonias as pessoas são impensáveis sem o que chamamos de natureza. Isto posto, enquanto a virada do Antropoceno parece uma novidade em parte do nosso mundo hoje, nós sempre vivemos assim. Não é nenhuma novidade. Porque não se pode pensar nas pessoas sem pensar nos não humanos. Leia Tutuola, é um mundo de humanos e não humanos interagindo, agindo uns com os outros. Não quero exagerar. Espaços geográficos fixos, como cidades e vilas, existiam. Pessoas e coisas poderiam estar concentradas em um local específico. Esses lugares podiam até se tornar a origem do movimento, e havia ligações entre eles, como estradas e rotas de voo, mas os lugares não eram descritos por pontos ou linhas. O mais importante era a distribuição do movimento entre os lugares. O movimento era a força motriz da própria produção de espaço e deslocamento, se acreditarmos em algumas daquelas cosmogonias. Tenho agora em mente a cosmogonia Dogon, que foi estudada particularmente por Marcel Griaule, ou outras cosmogonias na África Equatorial analisadas por antropólogos e historiadores como Jan Vansina, John M. Janzen e outros. O movimento em si não era necessariamente relacionado ao deslocamento. O mais importante era o quanto os fluxos e suas intensidades se cruzavam e interagiam com outros fluxos, as novas formas que estes poderiam assumir quando se intensificavam. O movimento, especialmente entre os Dogon, poderia levar a desvios, conversões e intersecções. Isso era mais importante do que pontos, linhas e superfícies, que, como sabemos, são as referências cardeais na geometria ocidental. Logo, o que temos aqui é outro tipo de geometria, da qual derivam conceitos próprios de fronteiras, poder, relações e separação.

Se quisermos captar recursos alternativos, como um vocabulário conceitual, para imaginarmos um mundo sem fronteiras, eis aqui uma fonte. Não é a única. Mas queremos reunir os arquivos do mundo em geral, não apenas os documentos ocidentais. Na verdade, os arquivos ocidentais não nos ajudam a desenvolver a ideia de um mundo sem fronteiras. O arquivo ocidental está baseado na cristalização da ideia de fronteira.

Nessa configuração, riqueza e poder, ou a riqueza nas pessoas, digamos assim, sempre superou a riqueza nas coisas. Há duas formas de riqueza. Você pode ser rico de acordo com a sua capacidade de aglutinar em torno de si clientes, familiares etc. Ou você pode ser rico simplesmente por ter acumulado uma quantidade imensa de coisas. Eis aqui uma dialética de quantidades e qualidades. E múltiplas formas de associação sempre estiveram disponíveis. Como alguém se tornava parte de algo? Através de qual janela se pode entrar na casa? Havia muitas formas de associação, não classificações rígidas de que se é ou um cidadão ou um forasteiro. Entre um e outro havia todo um repertório de formas alternativas de associação – construir alianças por meio de negócios, casamento ou religião, incorporar aos regimes existentes novas relações comerciais e pessoas refugiadas ou em busca de asilo – essa era a regra. A dominação se dava por meio da integração dos forasteiros. Todo tipo de forasteiros. E a noção de povo – não a de nação – incluía não apenas os vivos, mas também os mortos, os não nascidos, os humanos e os não humanos. A comunidade era impensável sem algum tipo de dívida fundadora, com duas formas principais de endividamento. Existe a dívida expropriatória, como alguns de nós estamos devendo para bancos. Mas, nessas constelações, há um tipo diferente de dívida que constitui a própria base da relação. É o tipo de dívida que abrange não só os vivos, o presente, mas também aqueles que vieram antes e os que virão depois de nós e com quem também temos obrigações – a corrente de seres que inclui, mais uma vez, não apenas humanos, mas também animais e o que chamamos de natureza. 


O DIREITO À MORADIA

Gostaria de concluir apresentando uma ideia que retirei da constituição de Gana. Ela desenvolveu um conceito que não encontrei em nenhum outro lugar. É um novo direito fundamental que eles chamam de “direito à moradia” e que querem incluir na lista dos direitos humanos tradicionais. A ideia desse direito à moradia me parece a pedra fundamental para qualquer tentativa de reimaginar a África como um espaço sem fronteiras. Em um nível histórico profundo, os africanos e as lutas diaspóricas pela liberdade e pela autodeterminação sempre estiveram entrelaçados à aspiração de se mover sem amarras. Seja em condições de escravidão ou sob domínio colonial, a perda de nossa soberania resultou automaticamente na perda de nosso direito à livre circulação. Essa é a razão pela qual o sonho redentor de uma nação africana livre e poderosa tem sido ligado de modo inextrincável à recuperação do direito de ir e vir sem obstáculos ao longo de nosso continente colossal. De fato, nossa história na modernidade tem sido, em grande medida, de constante deslocamento e confinamento, migrações coagidas e trabalhos forçados. Pense no sistema de plantation nas Américas e no Caribe. Pense nos Black Codes e Pig Laws,3 ou no status de vagabundagem depois do fracasso da reconstrução dos Estados Unidos em 1887. Pense nas chain gangs,4 trabalhando em empreitadas como construção de estradas, escavação de valas, demolição e desmatamento. Pense no Code de l’indigénat,5 pense nos Bantustões,6 nas reservas de trabalho no sul da África e na indústria de complexos carcerários hoje nos Estados Unidos. Em cada exemplo, ser africano e ser negro significa ser relegado a um entre os muitos espaços de confinamento que a modernidade inventou.

A corrida para a África no século 19 e a demarcação de suas fronteiras de acordo com as linhas coloniais transformaram o continente em um enorme espaço carcerário e fizeram de cada um de nós um imigrante ilegal em potencial, impedido de circular salvo sob condições cada vez mais punitivas. Na realidade, o aprisionamento se tornou a precondição para a exploração do nosso trabalho, e por isso as lutas pela emancipação racial e por melhorias das condições de vida dos negros são tão entrelaçadas às lutas pelo direito de circular livremente. Se quisermos concluir o trabalho de descolonização, precisamos derrubar as fronteiras coloniais em nosso continente e transformar a África num vasto espaço de circulação para os africanos, para seus descendentes e para todos aqueles que quiserem ligar seus destinos ao nosso continente.

Tratado que criou uma zona de livre circulação de cidadãos entre países europeus, na qual os controles de fronteira foram abolidos, salvo em casos excepcionais. Começou com cinco países, em 1985, e hoje reúne 26 Estados. [N. da T.]
O autor se refere a três dos principais autores da literatura nigeriana do século 20: Wole Soyinka (1934), premiado com o Nobel de Literatura em 1986; Chinua Achebe (1930­2013); e Amos Tutuola (1920­1997). [N. da T.]
Black Codes eram leis discriminatórias promulgadas após o fim da guerra civil nos EUA, que permitiam a pessoas negras o direito à propriedade privada, mas as proibiam de votar, testemunhar contra brancos ou servirem como jurados. As leis que criminalizavam o desemprego como vagabundagem e puniam pessoas negras por roubo de comida ficaram conhecidas como Pig Laws. [N. da T.]
Com o fim da Guerra Civil e da escravidão nos EUA, os estados do Sul passaram a usar o trabalho forçado de prisioneiros, na maioria negros, em obras de infraestrutura. Os grupos eram conhecidos como chain gangs por serem acorrentados pelos pés para evitar fugas. [N. da T.]
Leis coloniais francesas que restringiam os direitos da população muçulmana da Argélia em 1881, extintas apenas depois da guerra de independência argelina, em 1962. [N. da T.]
Territórios onde os povos bosquímanos foram segregados pelo apartheid em territórios supostamente autônomos dentro da África do Sul. [N. da T.]

Tradução de Stephanie Borges



O camaronês Achille Mbembe (1957) é professor de história e ciência política da Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, e na Duke University, nos EUA. É um dos mais originais pensadores contemporâneos nas questões relacionadas à descolonização, à escravidão e ao racismo. É autor de Crítica da razão negra e Necropolítica, ambos publicados no Brasil pela n-­1. Este ensaio foi apresentado em março de 2018 como parte da tradicional série Tanner Lectures on Human Values, na Universidade Yale.


Fonte : site da revista Serrote, publicação do Instituto Moreira Salles