Por CARLA RODRIGUES
Excluídas da história oficial, as mulheres fazem do ato de
contar a própria trajetória uma forma de resistência. Neste ensaio, publicado
na serrote #30, a filósofa Carla Rodrigues enlaça as várias linhas dos
movimentos feministas no país nas últimas décadas
Das mulheres, já se disse muita tolice. Para que não
alcançassem a cidadania, Rousseau as restringiu à esfera privada. Kant
confinou-as à pura sensibilidade e, ao deixá-las de fora do campo da razão,
manteve-as longe da ciência. Devido ao suposto mistério envolvendo sua
sexualidade, Freud considerou-as um enigma indecifrável. Excluídas da história,
criaram uma historiografia própria para se opor ao apagamento e à invisibilidade
da existência, fazendo do ato de contar a própria trajetória uma forma de
resistência.1 Dicionários nomeiam, classificam e ordenam as pensadoras como
forma de articular política editorial e estratégias de perpetuar a memória onde
havia esquecimento.2 Esta breve história dos feminismos é costurada a partir do
entrelaçamento de quatro feixes, quatro linhas históricas que serão trançadas
como os cabelos das mulheres negras ou como as tramas das cestarias, nas quais
a trama é menos visível do que a forma final que os fios produzem. Quero contar
uma história despida de qualquer historicismo, de qualquer pretensão a
estabelecer um nexo causal entre vários momentos, uma história que parte do
tempo do agora.
“O histórico e o a-histórico são na mesma medida necessários
para a saúde de um indivíduo, um povo e uma cultura”, escreve Friedrich
Nietzsche em sua Segunda consideração intempestiva, de 1874,3 cujo subtítulo
instiga quem se engaja na historiografia – “da utilidade e da desvantagem da
história para a vida”. O texto entrou para a tradição filosófica como tendo
exercido grande influência sobre as Teses sobre o conceito de história (1940),
em que Walter Benjamin propõe, entre tantas outras coisas, capturar o passado
“somente como imagem que lampeja no instante de sua recognoscibilidade, para
nunca mais ser vista”. O argumento começa na tese V e continua na VI:
“Articular o passado historicamente não significa conhecê-lo ‘tal como ele
propriamente foi’”, mas “capturar uma imagem do passado como ela
inesperadamente se coloca para o sujeito histórico no instante do perigo. O
perigo ameaça tanto o conteúdo dado da tradição quanto os seus destinatários.”4
Se é verdade que os feminismos são plurais e abertos, eles o são exatamente ali
onde não podem se constituir numa história monumental. Escrita a partir do
encontro de Nietzsche com Benjamin, esta pequena história é crítica e se tece
costurando quatro fios: os movimentos de mulheres e suas resistências; a
constituição dos estudos feministas; a recepção do conceito de gênero e seus
desdobramentos teóricos; e as relações internacionais tanto dos movimentos
quanto das teorias. A cada tempo, a cada nó ou a cada onda, esses cruzamentos
se modificam conforme a trama, como se as tranças fossem ao mesmo tempo
hierárquicas e rizomáticas, lógicas e borromeanas, compatibilizando sistemas
contraditórios entre si. Nessas amarrações, há movimentos de busca de elementos
históricos, assim como há descontinuidades, curtos-circuitos onde algo parece
se perder para vir a ser retomado depois. É como se o aforismo de Nietzsche –
da história, trata-se de saber o que lembrar e o que esquecer – nem sempre
funcionasse a contento. Há inúmeras iniciativas de reconstituição da trajetória
dos movimentos de mulheres, seus erros, acertos e descontinuidades.5 Por vezes,
cai no esquecimento aquilo que teria potência histórica; em outros casos,
lembram-se de mais episódios que poderiam ser, senão esquecidos, pelo menos
trançados com outros fios da memória.
#FIO 1 – RESISTÊNCIAS
A ressignificação da figura histórica de Luíza Mahin como
mito libertário da escravidão tem sido, desde a publicação de Um defeito de cor
(2006), o romance premiado de Ana Maria Gonçalves (1970), mola propulsora para
o fortalecimento do movimento de mulheres negras e fundamental para desenhar
novos símbolos, contrários à violenta associação entre ser negra e ser
subalterna. Ex-escrava, Luíza liderou, no século 19, a revolta dos Malês,
descrita por Ana Maria e tomada como ponto de resistência das mulheres negras e
de oposição à tradição de subserviência. Faz parte desse movimento a criação do Dia de Tereza de Benguela e da
Mulher Negra no calendário da cidade do Rio de Janeiro, a ser comemorado no dia 25 de julho, resultado da aprovação
de projeto da vereadora Marielle Franco e também direcionado a enaltecer
mulheres negras em posição de poder e resistência. Fenômenos parecidos podem
ser encontrados nas diferentes formas de retomada das obras de escritoras como
Carolina Maria de Jesus (1914-1977) e Conceição Evaristo (1946) – só recentemente
reconhecida pelo grande público, embora veiculasse seus textos desde os anos
1980 nos Cadernos Negros, série anual de coletâneas de poesia e prosa dedicada
a dar espaço e visibilidade a autoras e autores negros. A estratégia de voltar
ao passado tem sido fundamental para as coletivas nas universidades, formadas
por jovens que, em muitos casos, são as primeiras da família a escapar do
trabalho doméstico para uma promessa de vida intelectual. O recurso a outra
visão do passado tem produzido muitos efeitos no presente. Do slogan “Mulher
negra tem história” à multiplicação de pesquisas acadêmicas,6 passando pela
mobilização semanal de 120 coletivos de mulheres negras que se reúnem na
capital paulista, há também as novas candidatas para os parlamentos estadual e
federal, as disputas de poesia como o Slam das Minas, e a publicação, pela
Companhia das Letras, de Quem tem medo do feminismo negro? (2018), de Djamila
Ribeiro (1980). Além de autora, Djamila edita o selo Feminismos Plurais, da
editora Letramento, que reúne obras de mulheres negras e títulos sobre racismo.
Ainda que mais tímidos, há também fios trançados em torno da memória da
feminista Lélia Gonzalez (1935-1994). Uma biografia de Lélia e a reedição de
seus ensaios prometem ser parte desse desenho.7 Sua obra foi escrita em intenso
diálogo com a feminista norte-americana Angela Davis, hoje mais editada aqui
(com três títulos traduzidos nos últimos dois anos pela Boitempo) do que a
brasileira.
A estratégia das mulheres negras de recuperação da sua história
é similar a um tipo de proposta comum em outro grupo de mulheres, a geração
que, anterior à segunda onda do feminismo, ficou imprensada entre as
sufragistas e a explosão que viria nos anos 1970. É um grupo heterogêneo,
formado principalmente por escritoras e intelectuais que, no rastro do
Movimento Modernista de 1922, tomam como óbvio aquilo que na verdade era ainda
muito estranho: que mulheres pudessem ser intelectuais e ocupar o espaço
público e, sobretudo, o lugar do pensamento, da arte e da escrita. Esse momento
das mulheres de letras no Brasil da primeira metade do século 20 é fundamental
para abrir caminhos para as que viriam a seguir. Inclui Clarice Lispector
(1920-1977), por exemplo, assim como Carmen da Silva (1919-1985), que fez
história como editora e colunista na revista Claudia.8 É desse período também a
literatura de Ruth Guimarães (1920-2014), mulher negra cujo romance de estreia,
Água funda (1946, relançado em 2018 pela Editora 34), recebeu elogios e
prefácio de Antonio Candido: “É um romance, mas escrito como se fosse prosa
fiada, como se fosse narrativa caprichosa que vai indo e vindo ao sabor da
memória, ao jeito dos contadores de casos. Esta primeira impressão é justa, mas
não deve esconder do leitor o que há neste livro de composição deliberada, de
técnica bastante complexa, rica em elipses, em saltos temporais, em
subentendidos.” Raça, classe ou gênero não aparecem na avaliação de Candido.
Era um tempo em que escritoras flertavam com o que então se
chamava “a questão feminina”, como Lygia Fagundes Telles (1923) ou Marina
Colasanti (1937), e discutiam os problemas do gênero literário. “Existe uma
literatura feminina?” era uma pergunta a
embalar algumas daquelas mulheres de letras. Merece destaque o trabalho da
pesquisadora Zahidé Muzart (1939-2015), cuja carreira docente na UFSC foi
dedicada à recuperação de autoras brasileiras ignoradas pelo cânone literário.
Publicou livros, orientou pesquisas de mestrado e doutorado, fundou a Editora
Mulheres – espelhada na iniciativa francesa da Éditions des Femmes, liderada
pela feminista Antoinette Fouque – e foi pioneira na edição da crítica
literária sobre Hilda Hilst (1930-2004).9 Zahidé compilou autoras brasileiras
como Emília Freitas (1855-1908) e Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) e tornou conhecida
a trajetória de Nísia Floresta (1810-1885),10 o que nos remeteria a outros fios
dessa trama: a estratégia de legitimar as pautas feministas brasileiras a
partir de autoras estrangeiras e a permanente interlocução dos movimentos no
Brasil com os movimentos internacionais.
Gego, Sem título, 1970 Foto: Reinaldo Armás Ponce / Arquivo
Fundación Gego
#FIO 2 – ESCREVER, EDITAR, PUBLICAR
Traduzir e editar textos feministas tem sido fundamental
para os movimentos de mulheres desde que, no final do século 19, a educadora
Nísia Floresta verteu “livremente” textos da feminista inglesa Mary
Wollstonecraft, publicando Direitos das mulheres e injustiça dos homens em 1832
e entrando para a história como precursora intelectual dos ideais feministas de
igualdade e emancipação.11 A estratégia de se apresentar como tradutora se
entrelaça com a busca de legitimidade internacional para seus escritos, fio que
vai se encontrar, na segunda metade do século 20, com o trabalho de Rose Marie
Muraro (1930-2014), coordenadora do selo Rosa dos Tempos – hoje relançado pelo
grupo Record – e editora de inúmeros textos fundamentais para a teoria
feminista. Além do histórico A mística feminina, que trouxe a americana Betty
Friedan ao Brasil nos anos 1970, há também o pioneirismo de Feminismo como
crítica da modernidade (Rosa dos Tempos, 1991), onde está um dos primeiros
textos de Judith Butler publicados em português, “Variações sobre sexo e gênero
– Beauvoir, Wittig e Foucault”, espécie de laboratório para o clássico Gender
Trouble (1990), publicado no Brasil em 2003 como Problemas de gênero. Tem papel
fundamental também o trabalho de Heloisa Buarque de Hollanda (1939) na edição
de coletâneas feministas. Está em Tendências e impasses: o feminismo como
crítica da cultura (Rocco, 1994), organizado por ela, o hoje clássico “Um
manifesto para os cyborgs”, de Donna Haraway, e “Quem reivindica a alteridade”,
de Gayatri Spivak, precursor de um dos textos fundadores do pensamento
pós-colonial, Pode o subalterno falar? (Editora UFMG, 2010).
Percorrendo as linhas estratégicas da edição, é preciso
mencionar também o trabalho de Danda Prado (1929). Quando chegou do exílio na
França, nos anos 1980, Danda encontrou na Brasiliense uma linha editorial
engajada, que procurava dar espaço para a publicação de autoras nacionais. A
coleção Primeiros Passos, idealizada por Caio Graco, irmão de Danda, e dirigida
pelo jovem Luiz Schwarcz, servia aos interesses feministas de oferecer textos
acessíveis a grupos militantes. Títulos como O que é o feminismo, O que é o
aborto e O que é a família – este assinado pela própria Danda – foram parte da
sua interseção entre ativismo e produção intelectual. É da Brasiliense também a
primeira edição de Breve história do feminismo no Brasil (1993), de Maria
Amélia de Almeida Teles (1944), reeditado como Breve história do feminismo no
Brasil e outros ensaios (Alameda Editorial, 2017). Já à professora Guacira
Lopes Louro (1945) coube o pioneirismo na recepção da teoria queer, em especial
no campo da educação, incluindo a tradução da introdução de Bodies That Matter
– On the Discursive Limits of Sex (1993), de Judith Butler, complemento
necessário aos debates iniciados em Gender Trouble.12 Faz parte dos desacertos
nas leituras de Butler no Brasil a quase ignorância desse livro, onde estão
algumas das respostas que ela oferece a críticas recebidas por Problemas de
gênero.
#FIO 3 – INTERNACIONAL E DECOLONIAL
Outro nó se amarra aqui. Enquanto os movimentos se animam
com as leituras, na constituição do campo dos estudos feministas acontece o
debate sobre o problema da colonização dos saberes, que nos colocariam numa
condição de dependência em relação à produção intelectual internacional.
Impulsionadas primeiro por críticas pós-coloniais, como a de Gayatri Spivak, e
hoje pelo que se renomeou como pensamento decolonial, teóricas feministas
brasileiras se engajam nas escavações de pensadoras brasileiras, como fez Zahidé,
e em críticas de políticas de tradução com ênfase em nomes consagrados, legando
ao esquecimento autoras indispensáveis nas bibliografias de pesquisa, mas nem
sempre palatáveis ao mercado editorial. Destaco a coletânea Traduções da
cultura: perspectivas críticas feministas (1970-2010), volume que dá
continuidade à estratégia de preencher lacunas bibliográficas e reúne a
tradução de textos fundamentais para a teoria feminista. Inclui, por exemplo,
“O riso da Medusa”, de Hélène Cixous, “O pensamento straight”, de Monique
Wittig, “O olhar oposicional: espectadoras negras”, de bel hooks, além de
comentadoras brasileiras das respectivas traduções.13
Táticas de guerrilha cumpriram a função de amarrar teoria e
prática. Foi o que aconteceu, por exemplo, em relação a “The Traffic in Women:
Notes on the ‘Political Economy’ of Sex” (1975), da antropóloga Gayle Rubin,
considerado peça fundamental para a compreensão do sistema sexo/gênero e da
crítica feminista à antropologia estruturalista de Lévi-Strauss. A necessidade
de se valer desse texto nos debates políticos e o obstáculo de não haver edição em português
fizeram com que três ativistas traduzissem o artigo, que começa a circular
ainda em mimeo, depois em cópias xerox, muitas enviadas pelo correio. Foi
editado pelo SOS Corpo, organização não governamental atuante na defesa dos
direitos das mulheres.14 Nos anos 1990, com a chegada da internet, passou a
estar disponível online. Só em 2017 ganhou edição em livro.15
O ponto da crítica à bibliografia faz nó, por exemplo, com a
criação, pela ONU, do Ano Internacional da Mulher. Era 1975, momento crucial
para feministas e movimentos de resistência à ditadura civil-militar, unidos
apesar das diferenças internas (bons tempos…). A importância do apoio
internacional pode ser encontrada no balanço dos 40 anos de atuação da Fundação
Ford no Brasil,16 cujo trabalho no país começa em 1962 e chega aos anos 1990
com o financiamento a projetos sociais de mulheres e para mulheres. Desde o
final dos anos 1950, a Ford seguia uma preocupação comum à época: o crescimento
populacional em países em desenvolvimento. No Brasil, deu apoio decisivo para
áreas como demografia, planejamento familiar e reprodução, tendo participado da
chamada transição demográfica brasileira, que significou, nas décadas de 1970 e
1980, a queda do número de filhos por mulher. Nos anos 1990, o programa foi
revisto, por ser considerado “controlista” e muito ligado a abordagens médicas,
e a Ford passou a atuar junto aos movimentos de mulheres e às comunidades de base.
Assim, a área deixa de se chamar População para tornar-se aberta a outros temas
e ser rebatizada de Sexualidade e Saúde Reprodutiva, com expressivo apoio à
agenda da ONU.17 Estratégias de internacionalização ganham reforço, em menor
grau de investimento, da Fundação MacArthur, cujo programa de bolsas foi
responsável pela formação de lideranças feministas em diferentes áreas de
atuação.
Uma das peculiaridades no trabalho da Fundação Ford foi
apoiar pesquisas acadêmicas. Em 1996, começou a financiar o Programa em Gênero,
Sexualidade e Saúde Reprodutiva, coordenado pela antropóloga Maria Luiza
Heilborn (1953) no Instituto de Medicina Social (Uerj), onde de novo se cruzam
dois feixes desta trama: o desenvolvimento do campo universitário e a recepção
do conceito de gênero na pesquisa sobre mulheres – nas ciências sociais em
geral e na antropologia em particular. Na linha da constituição dos estudos de
gênero, o apoio à Revista de Estudos Feministas, criada na UFRJ e hoje editada
pela UFSC, é ponto de amarração entre teoria e prática. Em tese de doutorado18
recém-defendida na Unicamp, a pesquisadora Marília Moschkovich (1986) retoma a
recepção do conceito de gênero entre os anos 1980 e 1990. Dedica o trabalho às
antropólogas Maria Luiza Heilborn e Elisabeth Souza-Lobo (1943-1991), duas
mulheres que são parte importante nessa costura. O percurso de Maria Luiza, por
exemplo, passa pelos quatro fios entrelaçados aqui: atuação no movimento de
mulheres, constituição do campo de pesquisa, recepção do conceito de gênero,
com formação de pesquisadoras na área, e interlocução internacional como
pioneira no projeto financiado pela Ford em 1996. Haveria muitas outras autoras
a citar, legadas ao esquecimento, talvez porque cada vez mais as bibliografias
de pesquisa sejam feitas nas prateleiras dos lançamentos das livrarias e menos
nas empoeiradas estantes das bibliotecas.
Em termos de internacionalização, a década de 1990 foi
marcada por conferências da ONU, desde a Rio 92, onde as organizações
feministas estiveram representadas no “Planeta fêmea” – montado no aterro do
Flamengo a fim de dar visibilidade aos projetos com e de mulheres ao redor do
mundo –, passando pela Cairo 94, com o tema da população, e Beijing 95,
abordando os direitos das mulheres. Foram pelo menos 20 anos de intensa
participação brasileira em redes internacionais. Desse período se trança uma
iniciativa contemporânea, costurada desde 2002, o Observatório de Sexualidade e
Política (SPW, na sigla em inglês), sediado na Associação Brasileira
Interdisciplinar de Aids e dirigido por Sonia Corrêa (1948) e Richard Parker,
ambos articuladores dos ativismos nacionais com os internacionais.
#FIO 4 – CONSTRUÇÃO E DESCONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE GÊNERO
No eixo da formação acadêmica, a geração precursora da
segunda onda do feminismo, nos anos 1970, se inspirou no admirável trabalho da
socióloga Heleieth Saffioti (1934-2010). Sua tese de livre-docência defendida
em 1967 nas Ciências Sociais da Unesp antecipava, pelo viés marxista, o debate
sobre as desigualdades sociais e econômicas que pesavam sobre as mulheres.
Publicada em livro,19 tornou-se referência nesse cruzamento entre materialismo
e feminismo, em que as relações de poder entre homens e mulheres são pensadas
em tensão dialética, o que em muitos movimentos contemporâneos infelizmente se
perdeu na perspectiva simplista de opor vítimas e algozes. “Como na dialética
entre o escravo e seu senhor, homem e mulher jogam, cada um com seus poderes. O
primeiro para preservar sua supremacia, a segunda para tornar menos incompleta
sua cidadania”, escreve Saffioti num artigo da coletânea Uma questão de gênero,
editada em 1992 pela Fundação Carlos Chagas como balanço dos primeiros 15 anos
de recepção do conceito de gênero nos estudos brasileiros. Embora seja
impossível encontrar o único ponto de costura inicial dessa rede, ou exatamente
por isso, vale a pena seguir a tese de Marília, que reconta a criação do
primeiro grupo de trabalho sobre gênero na Associação Nacional de Pós-Graduação
e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs). Em 1990, dois núcleos estudavam temas
ligados às mulheres, um voltado para a participação na política e outro, para a
inserção no mercado de trabalho. A decisão de se unirem em um novo grupo, “O
caráter transversal do gênero nas ciências sociais”, coordenado pela economista
Lena Lavinas (1953), promoveu a criação do primeiro núcleo oficial de pesquisa
sobre gênero no país.
Aqui, vale a pena fazer um point de capiton, aquele usado no
capitonê francês, metáfora lacaniana para o ponto de interrupção da rede de
significantes pensada pela linguística estruturalista. Hoje sob ataque cerrado
de “ideólogos” que enxergam nele o fim da família – e quiçá da humanidade – ou de teóricos que consideram necessário
substituí-lo pela crítica à heteronormatividade, o conceito de gênero se
estabelecia na década de 1990 a partir de sua construção política e discursiva
em prol do debate sobre diferença sexual
e assimetria do papel de homens e mulheres na vida social. Fazendo eco a
um debate sobre o quanto o termo “gênero” poderia estar subsumindo a categoria
mulher, Maria Luiza Heilborn escreve: “Em geral, a entrada da perspectiva do
gênero foi saudada como uma grande renovação nas ciências sociais […]. Nos
primeiros momentos imaginou-se que uma revolução estava em curso nas ciências
sociais, mas um balanço um pouco menos ufanista assinala que a incorporação da
perspectiva de gênero foi menos transformadora do que se supõe.”20
Antropólogas de ontem e de hoje continuam trabalhando e
criticando o conceito de gênero, com amarrações, por exemplo, na sua recente
expansão para o campo da filosofia. Em que pese o pioneirismo de Maria de
Lourdes Borges (1961) e Marcia Tiburi (1970) em seminários e publicações sobre
a mulher na filosofia no início dos anos 2000, é preciso registrar o quão
recente é a criação do primeiro grupo de trabalho sobre filosofia e gênero na
Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (Anpof), reunião dos
programas de pós-graduação em filosofia nas universidades brasileiras. Apenas
em 2016, por iniciativa de Susana de Castro Amaral Vieira (1967), o tema foi
institucionalizado num ambiente filosófico que há dez anos considerava Simone
de Beauvoir “apenas” uma grande escritora francesa premiada. Entre as
precursoras das pesquisas sobre a filósofa francesa está a mineira Magda
Guadalupe dos Santos (1957), participante assídua dos congressos anuais da
Simone de Beauvoir Society. Até bem pouco tempo atrás, ainda era necessário
justificar diante de agências de fomento a realização de pesquisas sobre
Beauvoir em filosofia. Entre o Fazendo Gênero e o (Des)fazendo Gênero, dois
encontros em torno da recepção do conceito nas ciências sociais, a filosofia
chega para ampliar o caráter multidisciplinar do gênero.
Na história, em certa medida impulsionadas pela importância
do trabalho de Joan Scott – no artigo “Gênero: uma categoria útil de análise
histórica”, cuja tradução fez parte do fio estratégico da edição de textos
fundamentais21 –, muitas feministas se engajam na costura entre o passado e o
contemporâneo. É de imensa relevância a pesquisa da historiadora Margareth Rago
(1948) sobre o pensamento anarquista-libertário de Maria Lacerda de Moura
(1887-1945), escritora, militante anarquista, dedicada a pensar formas
anti-hierárquicas de viver e engajada na luta internacional antifascista, em
diálogo com a italiana Luce Fabbri (1908-2000) e com anarquistas
latino-americanas, principalmente as argentinas. Maria Lacerda de Moura começa
a publicar seus textos em 1908, mas será entre as décadas de 1910 e 1930 que
seus livros estarão carregados de críticas à situação social da mulher e à
moral sexual opressora. Amor livre, amor plural, educação sexual, direito ao
prazer e prostituição são alguns dos temas abordados por ela e que se amarram à
emergência dos atuais coletivos feministas anarquistas, aos grupos defensores
do poliamor e à mobilização das prostitutas pela legalização da profissão. A
pesquisa de Margareth sobre a atuação política de Maria Lacerda de Moura está a
serviço do seu interesse em contestar a narrativa hegemônica do feminismo
branco e bem-comportado da burguesia.22 Significa dizer, no rastro das
manifestações de junho de 2013 e da expansão das formas anarquistas de
política, aí incluindo os movimentos antiencarceramento, que há grandes lacunas
a preencher para costurar as lutas futuras com as passadas. São inúmeras as
tentativas de ligações históricas desses nós tramados entre as mulheres de hoje
e de ontem, e há sempre aquilo que resta a ser contado, costurado, amarrado e
lembrado.
#CESTARIA
Da reedição de Parque industrial,23 de Patrícia Galvão, a
Pagu (1910-1962), à emergência de uma imprensa feminista24 para se contrapor ao
velho modelo da imprensa feminina, passando pela volta das velhas tensões entre
esquerda e feminismos, indicadas no neologismo “esquerdomacho” – termo que
poderia ter sido criado pelas militantes feministas, sempre enfrentando
dificuldade com a pauta de mulheres nos movimentos de resistência à ditadura –,
os pontos de encontro são muitos. As mulheres da periferia de São Paulo da
década de 1970 se reconheceriam nos movimentos de negras em favelas, assim como
as protagonistas das campanhas de denúncia da violência contra a mulher
estariam – e muitas delas ainda estão – nas Marchas das Vadias iniciadas a
partir do Canadá em 2011. As mulheres negras de hoje gostariam de ter estado
presentes numa das reuniões do primeiro Conselho Nacional dos Direitos da
Mulher, criado em 1985, quando duas feministas se enfrentaram – a negra acusando
a branca de “nunca abandonar sua atitude de sinhazinha” –, em termos não muito
diferentes dos usados hoje pelas feministas negras para acusar as brancas de
autoritarismo, racismo e hierarquia. As lésbicas, que já nos anos 1980
reivindicavam maior visibilidade dentro dos encontros feministas, gostariam de
conversar com as mulheres trans, ainda invisíveis nas amplas pautas atuais, e
talvez enfrentar juntas algumas das dificuldades de aceitação por parte de
grupos mais radicais. As atuais redes de apoio político-jurídico a mulheres que
buscam o direito ao aborto se encontrariam com as feministas que nos anos 1980
ofereciam suporte à interrupção de gravidez para mulheres pobres, para as quais
as clínicas clandestinas de qualidade eram inacessíveis. Exemplo recente foi a
mobilização em torno da jovem Rebeca Mendes (1987), que, depois de ver negado
seu pedido junto ao STF de fazer um aborto legal, foi amparada pela Anis –
Instituto de Bioética (organização não governamental feminista) para realizá-lo
na Colômbia, onde a prática já está descriminalizada.
Mas se é verdade que, como argumenta Paulo Arantes,25
vivemos em um tempo sem horizonte, encolhendo o nosso campo de ação por não
dispormos mais de parte do futuro, também podemos voltar a Walter Benjamin para
pensar que vivemos num tempo sem passado. Em 2018, ano do inominável
assassinato da vereadora Marielle Franco (1979-2018), uma pequena história dos
feminismos no Brasil talvez nos sirva para despertar, a partir da potência dos
movimentos políticos que ela encarnava, algum tipo de esperança se não no
futuro, pelo menos na tarefa da rememoração. A radiante mulher negra em seus
turbantes e brincos coloridos havia sido eleita com o dito de campanha “eu sou
porque nós somos”, referência à força da comunidade contra a fraqueza da
individualidade, outra forma de criticar o feminismo liberal branco de matriz
individualista.26 Os fios da resistência, da teoria, do conceito e das relações
internacionais são entrelaçamentos entre teoria e prática, outra das preocupações
de Benjamin nas suas teses sobre o conceito de história, seja a partir da
influência de György Lukács, seja pela importância do materialismo histórico na
fase madura de sua obra. Uma das potências da rememoração está em trançar
passado, presente e futuro para fora de qualquer linha de progresso, seguindo
Max Horkheimer na sua proposição de que a transformação radical da sociedade e
o fim da exploração não são uma aceleração do progresso, mas um salto para fora
do progresso.
Somos, numa proposição de Max Weber tomada pelo antropólogo
Clifford Geertz na definição de cultura, seres amarrados em teias de
significado que nós mesmas tecemos, ou atados pela história que contamos sobre
nós mesmas e sempre recontamos, porque é infinita a necessidade de separar o
que lembrar e o que esquecer, e redesenhar as imagens que lampejam do passado,
em constelações muito menos coerentes do que gostaríamos de acreditar. Se essas
teias pudessem formar um cesto que contorna o vazio, configurar um receptáculo
que dá lugar a todas as reivindicações e, mais, onde sempre pode caber a cada
vez uma nova pauta política, passaríamos a propor transformações ao modo dos
feminismos, que estão sempre sendo costurados, feitos, desfeitos e refeitos, a
fim de tornar as nossas tramas outro modo de fazer revolução.
NOTAS
Destaco o trabalho da francesa Michelle Perrot, autora,
entre outros tantos títulos, da inspiradora coletânea de ensaios Os excluídos
da história: operários, mulheres e prisioneiros. São Paulo: Paz e Terra, 2017.
Schuma Schumaher e Érico Vital Brazil, Dicionário Mulheres
do Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2000; Nelly Novaes Coelho, Dicionário crítico
de escritoras brasileiras. São Paulo: Escrituras, 2002; Helena Hirata,
Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Editora Unesp, 2009; Béatrice
Didier, Antoinette Fouque, Mireille Calle-Gruber, Le Dictionnaire universel des
créatrices. Paris: Éditions des Femmes, 2013; Ana Maria Colling e Losandro
Antonio Tedeschi, Dicionário crítico de gênero. Dourados: Editora UFGD, 2015.
Friedrich Nietzsche, Segunda consideração intempestiva: da
utilidade e da desvantagem da história para a vida. Trad. Marco Antonio
Casanova. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2003.
Estou citando a tradução das teses feita por Jeanne Marie
Gagnebin e Marcos Lutz Müller, publicada em Michael Löwy, Walter Benjamin:
aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São
Paulo: Boitempo, 2005.
Apenas como exemplo, cito duas autoras que vêm se dedicando
a contar histórias dos feminismos no Brasil: Céli Regina Jardim Pinto, Uma
história do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo,
2003; Rachel Soihet, Feminismos e
antifeminismos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2017.
Gostaria de destacar, no movimento de valorização da
trajetória de Luíza Mahin, o trabalho de Dulcilei da Conceição Lima,
Desvendando Luíza Mahin: um mito libertário no cerne do feminismo negro.
Dissertação de mestrado em Educação, Arte e História da Cultura, Universidade
Mackenzie, São Paulo, 2011.
Alex Ratts e Flavia Rios, Lélia Gonzalez. São Paulo: Selo
Negro Edições, 2010; Lélia Gonzalez, Primavera para as rosas negras. São Paulo:
Território Africano, 2018.
Ana Rita Fonteles Duarte, Carmen da Silva: o feminismo na
imprensa brasileira. Fortaleza: Expressão Gráfica; Edições Nudoc, 2005.
Vera Queiroz, Hilda Hilst: três leituras. Florianópolis:
Editora Mulheres, 2000.
Constância Duarte, Nísia Floresta: a primeira feminista do
Brasil. Florianópolis: Editora Mulheres, 2005.
Nísia Floresta, Direito das mulheres e injustiças dos
homens, publicado em Recife em 1832, em Porto Alegre em 1833, no Rio de Janeiro
em 1839. Há uma quarta edição comentada por sua biógrafa, Constância Lima
Duarte (São Paulo: Cortez, 1989). Durante muito tempo, o texto de Nísia foi
citado como a primeira tradução de A Vindication of the Rights of Woman: With
Strictures on Political and Moral Subjects, escrito em 1792 por Mary
Wollstonecraft, hoje editado no Brasil como Reivindicação dos direitos da
mulher. Trad. Ivania Pocinho Motta. São Paulo: Boitempo, 2016.
Estou me referindo à publicação de “Corpos que pesam: sobre
os limites discursivos do ‘sexo’” em coletânea organizada por Guacira Lopes
Louro com textos traduzidos por Tomaz Tadeu da Silva, O corpo educado:
pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
Izabel Brandão, Ildney Cavalcanti, Claudia de Lima Costa e
Ana Cecília A. Lima (orgs.), Traduções da cultura: perspectivas críticas
feministas (1970-2010). Florianópolis: Edufal/Editora Mulheres/ Editora da
UFsC, 2017.
As tradutoras são Christine Rufino Dabat, Edileusa Oliveira
da Rocha e Sonia Corrêa.
Gayle Rubin, “Tráfico de mulheres: notas sobre a ‘economia
política’ do sexo”, in Políticas do sexo. Trad. Jamile Pinheiro Dias. São
Paulo: Ubu, 2017.
Nigel Brooke e Mary Witoshynsky (orgs.), Os 40 anos da
Fundação Ford no Brasil: uma parceria para a mudança social. São Paulo: Edusp;
Ford, 2002.
Conforme relato de Cecília de Mello e Souza em “Dos estudos
populacionais à saúde reprodutiva”, in Os 40 anos da Fundação Ford no Brasil,
op. cit.
Marília Moschkovich, Feminist Gender Wars: a recepção do
conceito de gênero no Brasil (1980s -1990s) e as dinâmicas globais de produção
e circulação de conhecimento. Tese de doutorado, Programa de Pós-Graduação em
Educação da Unicamp, Campinas, 2018.
Heleieth Saffioti, A mulher na sociedade de classes: mito e
realidade. Petrópolis: Vozes, 1976.
Maria Luiza Heilborn, “De que gênero estamos falando?”.
Sexualidade, gênero e sociedade, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, 1994, pp. 1-8,
apud Marília Moschkovich, op. cit., p. 30.
Joan Scott, “Gênero: uma categoria útil de análise
histórica”. Trad. Guacira Lopes Louro. Revista de Educação e Realidade, Porto
Alegre, v. 15, n. 2, 1990.
Mais sobre a figura histórica de Maria Lacerda de Moura nas
leituras de Margareth Rago, “Entre o anarquismo e o feminismo: Maria Lacerda de
Moura e Luce Fabbri”, Revista Verve. São Paulo, n. 21, 2012, pp. 54-78; Miriam
L. Moreira Leite, Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura. São Paulo:
Ática, 1984; Liane Peters Richter, Emancipação feminina e moral libertária:
Emma Goldman e Maria Lacerda de Moura.
Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em História da Unicamp,
Campinas, 1998, defendida sob orientação de Margareth Rago.
São Paulo: Linha a Linha, 2018.
Destaco a pesquisa Comunicação e gênero: as narrativas dos
movimentos feministas contemporâneos, em que Ana Beatriz Rangel Pessanha da
Silva faz um amplo levantamento de publicações feministas. Dissertação de
mestrado, Programa de Pós-Gradução em Comunicação e Cultura da ECO/UFRJ, 2017.
Paulo Arantes, O novo tempo do mundo e outros estudos sobre
a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014.
Sobre esses limites, sigo as argumentações de Nancy Fraser
em “O feminismo, o capitalismo e a astúcia da história”. Trad. Anselmo da Costa
Filho e Sávio Cavalcante. Mediações, Londrina, v. 14, n. 2, 2009, pp. 11-33.
Carla Rodrigues (1961) é feminista, filósofa, professora de
filosofia na UFRJ e pesquisadora da Faperj. É uma das organizadoras da
antologia Problemas de gênero, da coleção Ensaios Brasileiros Contemporâneos,
editada pela Funarte em 2017. Na serrote, publicou “Os nomes do capital” (#9),
“Revolta” (#15) e “Erguer, acumular, quebrar, varrer, erguer…” (#24).
site da revista Serrote, publicação do Instituto Moreira
Salles,