sexta-feira, 25 de janeiro de 2013


A Estrada



Ele tentou pensar em algo para dizer mas não conseguia. Já tinha tido esse pensamento antes, para além do torpor e do desespero embotado. O mundo encolhendo em torno de um núcleo cru de entidades analisáveis. Os nomes das coisas lentamente seguindo essas coisas rumo ao esquecimento. Cores. Os nomes dos pássaros. Coisas para comer. Finalmente os nomes das coisas que se acreditava serem verdadeiras. Mais frágeis do que ele teria pensado. Quanto já tinham desaparecido? O idioma sagrado cortado dos referenciais e portanto da realidade. Recolhendo-se como alguma coisa tentando preservar o calor. No momento de oscilar e se perder para sempre .

Comarc McCarthy


"No Brasil, sucesso é ofensa pessoal".
86 anos de Tom Jobim (25.1.1927–1994)

POEMAS MALDITOS GOZOSOS E DEVOTOS




X

Atada a múltiplas cordas
Vou caminhando tuas costas.
Palmas feridas, vou contornando
Pontas de gelo, luzes de espinho
E degredo, tuas omoplatas.

Busco tua boca de veios
Adentro-me nas emboscadas
Vazia te busco os meios.
Te fechas, teia de sombras
Meu Deus, te guardas.

A quem te procura, calas.
A mim que pergunto, escondes
Tua casa e tuas estradas.
Depois trituras. Corpo de amantes
E amadas.

E buscas
A quem nunca te procura.
Hilda Hilst

O direito à picardia



Galeano - 25 de janeiro - 

O povo da NIcarágua celebra o Güegüence, e ri junto com ele.
Nesses dias, dias da sua festa, as ruas se transformam em palcos onde esse pícaro conta, canta e dança, e por sua obra e graça todos se transformam em cantadores e bailadores.
O Güegüence é o pai do teatro de rua na América Latina.
Desde o princípio dos tempos coloniais, ele vem ensinando as artes de mestre enrolador:
- Quando você não conseguir ganhar, empate. E quando não conseguir empatar, enrole.
E desde aquele então, de século em século, o Güegüence não parou de se fazer de bobo, inventador de palavras que não significavam nada, mestre de diabruras que o próprio Diabo inveja, desumilhador de humilhados, brincalhão, brincante, brincadeiro.

Sampa


Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruzo a Ipiranga e a avenida São João
É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
Da dura poesia concreta de tuas esquinas
Da deselegância discreta de tuas meninas...

Ainda não havia para mim Rita Lee
A tua mais completa tradução
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruzo a Ipiranga e a avenida São João...

Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes quando não somos Mutantes...

E foste um difícil começo
Afasta o que não conheço
E quem vem de outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso...

Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas
Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaços
Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva...

Pan-Américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba
Mais possível novo quilombo de Zumbi
E os novos baianos passeiam na tua garoa
E novos baianos te podem curtir numa boa...

Caetano Veloso 

em homenagem à cidade de São Paulo

Veja também:
http://semioticas1.blogspot.com.br/2012/02/ovelha-negra.html

XXIX



- Nem Sempre Sou Igual
Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.
Mudo, mas não mudo muito.
A cor das flores não é a mesma ao sol
De que quando uma nuvem passa
Ou quando entra a noite
E as flores são cor da sombra.
Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.
Por isso quando pareço não concordar comigo,
Reparem bem para mim:
Se estava virado para a direita,
Voltei-me agora para a esquerda,
Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés —
O mesmo sempre, graças ao céu e à terra
E aos meus olhos e ouvidos atentos
E à minha clara simplicidade de alma ...

- Alberto Caeiro (Heterônimo de Fernando Pessoa)