sábado, 13 de abril de 2013

SOBRE UM POEMA




(Herberto Helder)
 
Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
 
Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
 
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.
 
- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.
 
 
 

O SERTANEJO FALANDO




(João Cabral de Melo Neto)
 
A fala a nível do sertanejo engana:
as palavras dele vêm, como rebuçadas
(palavras confeito, pílula), na glace
de uma entonação lisa, de adocicada.
Enquanto que sob ela, dura e endurece
o caroço de pedra, a amêndoa pétrea,
dessa árvore pedrenta (o sertanejo)
incapaz de não se expressar em pedra.
 
2.
Daí porque o sertanejo fala pouco:
as palavras de pedra ulceram a boca
e no idioma pedra se fala doloroso;
o natural desse idioma fala à força.
Daí também porque ele fala devagar:
tem de pegar as palavras com cuidado,
confeitá-la na língua, rebuçá-las;
pois toma tempo todo esse trabalho.
 
- in “Melhores Poemas de João Cabral de Melo Neto". [Seleção Antônio Carlos Secchin], São Paulo: Global Editora, 8ª ed., 2001, pag. 184.

O PÃO DE CADA DIA




(Thiago de Mello)
 
Que o pão encontre na boca
o abraço de uma canção
construída no trabalho.
Não a fome fatigada
de um suor que corre em vão.
 
Que o pão do dia não chegue
sabendo a travo de luta
e a troféu de humilhação.
Que seja a bênção da flor
festivamente colhida
por quem deu ajuda ao chão.
 
Mais do que flor, seja fruto
que maduro se oferece,
sempre ao alcance da mão.
Da minha e da tua mão.
 
- in "Faz escuro mas eu canto", 1966.


Fui sabendo de mim
por aquilo que perdia
 
pedaços que saíram de mim
com o mistério de serem poucos
e valerem só quando os perdia
 
fui ficando
por umbrais
aquém do passo
que nunca ousei
 
eu vi
a árvore morta
e soube que mentia
 
(Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas")

O NOME DA MUSA




Não te chamo Eva,
não te dou nenhum nome de mulher nascida,
nem de fada, nem de deusa, nem de musa, nem de
sibila, nem de terras,
nem de astros, nem de flores.
Mas te chamo a que desceu do luar para causar as marés
e influir nas coisas oscilantes.
Quando vejo os enormes campos de verbena agitando as corolas
sei que não é o vento que bole, mas tu que passas com os cabelos soltos.
Amo contemplar-te nos cardumes das medusas que vão para os mares boreais,
ou no bando das gaivotas e dos pássaros revoando
sobre as terras geladas.
Não te chamo Eva,
não te dou nenhum nome de mulher nascida.
O teu nome deve estar nos lábios dos meninos que nasceram mudos,
nos areias movediços e silenciosos que já foram o fundo do mar,
no ar lavado que sucede as grandes borrascas,
na palavra dos anacoretas que te viram sonhando
e morreram quando despertaram,
no traço que os raios descrevem e que ninguém jamais leu.
Em todos esses movimentos há apenas sílabas do teu nome secular
que coisas primitivas escutaram e não transmitiram às gerações.
Esperemos, amigo, que searas gratuitas nasçam de novo,
e os animais da criação se reconciliem sob o mesmo arco-iris:
então ouvireis o nome da que não chamo Eva,
nem lhe dou nenhum nome de mulher nascida.
 
(poema de Jorge de Lima, de A Túnica Inconsútil, livro onde o verso é gradualmente
substituído pelo versículo em imitações perfeitamente voluntárias e perceptíveis
da Bíblia --conforme notou e anotou Mário de Andrade.)

FORMAS





[Alejandra Pizarnik]

 
no sé si pájaro o jaula
mano asesina
o joven muerta jadeando en la gran garganta oscura
o silenciosa
pero tal vez oral como una fuente
tal vez juglar
o princesa en la torre más alta.