quinta-feira, 26 de novembro de 2015

A cordialidade em Sergio Buarque de Holanda e a meritocracia


Valerio Arcary

“A cordialidade…a lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam com efeito um traço definitivo do caráter brasileiro.”

Sergio Buarque de Holanda[1]

A meritocracia é hoje uma das ideologias mais poderosas no Brasil. Mas a influência deste critério liberal é, relativamente, recente e coincide com a urbanização acelerada, sobretudo a partir dos anos trinta do século XX.

A meritocracia defende a igualdade de oportunidades. Argumenta que processos de seleção devem ser organizados tendo como critério central o esforço ou a aptidão, o empenho ou o valor, portanto, o merecimento. Para qualquer pessoa razoável parece mais justo o critério meritocrático do que o hereditário ou o do favor. Porque é mais equitativo do que o parentesco, mais lícito do que a confiança, e menos aleatório do que o sorteio. Certamente é melhor o critério da capacidade do que a consanguinidade, melhor a destreza do que o compadrio, melhor a dedicação do que o favorecimento. Esse é o limite do liberalismo: a equidade, ou seja, a igualdade de oportunidades.

O Brasil era tão reacionário até poucas décadas atrás que ser liberal era confundido com ser de esquerda. Mas é bom saber que a meritocracia corresponde a uma visão liberal do mundo, portanto, uma ideologia burguesa. O socialismo defende a igualdade social. A igualdade de oportunidades não é a igualdade social. É progressiva quando comparada aos critérios pré-capitalistas que favoreciam o parentesco ou o apadrinhamento. Mas é regressivo quando comparado com o socialismo.

Por exemplo: o critério meritocrático é aquele que defende que devem estudar na universidade pública aqueles que foram aprovados nos exames de acesso, portanto, os mais preparados. O critério socialista é que todos devem poder ter acesso ao ensino superior. E enquanto isso não for possível, o critério socialista é a defesa de cotas sociais e raciais para favorecer os mais desfavorecidos compensando a desigualdade. No Brasil arcaico só podia fazer curso superior os que pertenciam à classe dos proprietários, quem podia pagar, ou quem “ganhava” o favor de uma vaga.

A meritocracia ganhou hegemonia ideológica no Brasil muito lentamente. Foi lento o processo porque houve resistência. E não nos surpreendamos se ainda há relutância. Prevaleceu durante muitas gerações uma inserção social quase hereditária: os filhos dos sapateiros, ou dos alfaiates, ou dos comerciantes, ou dos médicos, engenheiros, advogados herdavam o negócio dos pais. A grande maioria do povo não herdava nada, porque eram os afrodescendentes do trabalho escravo, predominantemente, agrário.

A mobilidade social era muito baixa. O Brasil agrário era uma sociedade muito desigual e rígida, quase estamental. Era estamental porque os critérios de classe e raça se cruzavam, forjando um sistema híbrido de classe e castas que congelava a mobilidade. A ascensão social era somente individual e estreita. Dependia, essencialmente, de relações de influência, portanto, de clientela e dependência através de vínculos pessoais: o pistolão. O critério de seleção era de tipo pré-capitalista: o parentesco e a confiança pessoal.

A cordialidade e a resistência à meritocracia

Sergio Buarque de Holanda foi o primeiro que deu importância ao tema da resistência ideológica ao liberalismo no livro Raízes do Brasil, publicado em 1936. Muitos interpretaram, erroneamente, que ele estaria defendendo que o conceito de “homem cordial” era mesmo uma imagem que remetia somente a uma afetuosidade natural, uma gentileza autêntica, uma presteza no trato. Outros concluíram, mais rapidamente ainda, que o conceito da cordialidade buscava capturar as consequências positivas de um tipo de colonização que tolerou a miscigenação racial. Mesmo se baseada na escravidão, teria evitado as formas violentas de discriminação e apartação como nos EUA e na África do Sul e explicaria a colaboração social pela via individual da busca do favorecimento e clientela.

Nos anos trinta a sociologia estava ainda prisioneira do paradigma da busca da compreensão do caráter nacional de cada povo e, portanto, se dispersava em construções ideológicas. A visão do Brasil como um país de povo dócil e intensamente emocional correspondia às necessidades da classe dominante. Uma nação em que, apesar das desigualdades econômicas abissais, se manteria uma incomum coesão social.

Sergio Buarque tinha outra preocupação. Percebia que a cordialidade do brasileiro era uma forma cultural de luta pela sobrevivência e adaptação a um sistema no qual a ascensão social dependia do favorecimento. A cordialidade ocultava a imensa brutalidade das relações sociais, camufladas através de uma intimidade falsa, expressão do controle privado do espaço público. A cordialidade era expressão do medo da miséria e do imenso atraso histórico. Ao mesmo tempo, uma manifestação no terreno dos costumes da resistência cultural de um povo. Da cordialidade veio o “jeitinho”, ou seja, a ideologia da improvisação: a consagração do drible das regras universais, da frieza da lei igual para todos. Da cordialidade veio o elogio do “levar vantagem”, a ideologia da conivência com a conveniência, portanto, a legitimação do proveito, a cumplicidade com a corrupção.

A cordialidade foi a mãe do “jeitinho”. Essa foi a forma histórica encontrada de garantir mobilidade social individual em uma sociedade rígida: através de relações pessoais de compadrio e favor para preservar a paz social e encontrar a solução de conflitos. Prevaleceu o recurso de saídas negociadas e concertadas.

A cordialidade é uma forma de oportunismo, e o oportunismo não é uma jabuticaba brasileira. É mundial. Mas o oportunismo, ou seja, o vale tudo na luta pela ascensão social, assumiu em diferentes sociedades diferentes formas de legitimação. A cordialidade foi a forma cultural específica do Brasil: a tolerância com a bajulação, o fascínio pela lisonja, o consentimento da submissão, a anuência com o embuste remetem ao fim tardio da escravidão. Esta forma arcaica de dissimulação como estratégia individual de mobilidade social ainda sobrevive em um amálgama cultural único.

A meritocracia como pilar de uma visão liberal do mundo

Não obstante, muita gente na esquerda interpreta a defesa da meritocracia como uma ideologia reacionária, e não estão errados. A meritocracia está preocupada, também, com a ascensão individual, porém, é um dos alicerces da ideologia liberal e, portanto, reivindica o princípio da igualdade formal: todos seriam iguais diante de direitos e deveres universais, ou seja, diante da lei. A meritocracia é uma ideologia de conservação da desigualdade social. Ela defende que é necessário tratar os desiguais de forma igual. Isso só pode resultar, evidentemente, na reprodução da desigualdade.

O critério socialista é tratar os desiguais de forma desigual, favorecendo mais oportunidades para os que nunca tiveram oportunidade alguma. O tema, no entanto, é mais complicado. É impossível imaginar uma experiência de transição ao socialismo, portanto, uma etapa histórica em que ainda é necessária uma regulação da escassez, sem que o critério meritocrático seja utilizado. Quando é necessária uma seleção, critérios transparentes são indispensáveis. A meritocracia pode ser regulada com outros critérios, como cotas sociais e raciais, mas não pode ser dispensada. Não foi por outra razão que os bolcheviques mantiveram os especialistas em suas funções depois da vitória da revolução de Outubro. Fosse nas Forças Armadas, na gestão das empresas ou nas Universidades, foi indispensável aproveitar os quadros de maior instrução ou experiência que tinham se formado sob o regime czarista.

É verdade que quando deixa de ser somente um critério e se agiganta como uma concepção do mundo a meritocracia se transforma em pilar da ideologia liberal, e passa a ser muito perigosa. A ideologia meritocrática não somente aceita, mas defende que a desigualdade social tem um fundamento racional e, portanto, necessário. Classes sociais diferentes seriam um resultado natural de um processo de diferenciação que repousaria na desigualdade natural. Esta conclusão é falsa.

O lugar de cada um na sociedade corresponderia, ou deveria corresponder ao vigor ou ao talento. Os meritocráticos sublinham o papel da educação, mas também da vocação. A hierarquia social seria justa, desde que ordenada pela meritocracia.

A classe média é uma presa fácil da ideologia meritocrática

Não surpreende que ela seja uma ideologia tão poderosa na classe média da sociedade contemporânea. A classe média se reconhece a si própria com um grupo social que ascendeu em função do mérito. Os pequeno-burgueses que têm seus próprios negócios e que são muito dedicados ao seu trabalho e, por isso, têm orgulho da sua dedicação reivindicam, furiosamente, a meritocracia. Furiosamente, porque resistem às políticas compensatórias, e se opõem ao direito dos trabalhadores de usarem a sua força social para se defender com seus métodos de luta, como a greve.

As novas camadas médias urbanas que ascenderam em função da elevação da escolaridade são, também, orgulhosas dos sacrifícios que fizeram para se educar. Acreditam que o Brasil seria o melhor dos mundos, não fosse a corrupção. As classes médias no mundo contemporâneo são muito heterogêneas, e não têm e não podem ter um projeto para sociedade. Seguirão uma das duas classes mais fortes: capital ou trabalho.

No Brasil, ao final da década de 1970, elas se inclinaram à esquerda, embora com oscilações, como as ilusões em relação ao Cruzado em 1986, ou o apoio ao Real entre 1994/98: seus humores políticos traduziam um crescente mal-estar diante da estagnação prolongada da economia, o enrijecimento do processo de mobilidade social, o custo dos impostos depois da Constituição de 1988, e a corrupção crônica. Defensora intransigente da meritocracia como critério de ascensão social, a classe média, embora dividida, esteve presente nas Diretas em 1984, e sentiu a pressão do proletariado nas suas formas de luta e organização, durante os anos 1980.

A partir dos anos 1990 a classe média passou a temer, com a mesma intensidade com que se deslocou para a oposição à ditadura, o peso dos impostos, o castigo do desemprego dos filhos, e se ressentiu pela insegurança crescente e pelo perigo da delinquência. O intervalo da década passada, uma fase de crescimento econômico e maior colaboração de classes trouxe uma sensação de alívio que já desapareceu.

[1] Buarque de Holanda, Sergio. Raízes do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, Terceira Edição, 1997.


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