quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Análise


Fernando Pessoa

Tão abstrata é a idéia do teu ser
Que me vem de te olhar, que, ao entreter
Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,
E nada fica em meu olhar, e dista
Teu corpo do meu ver tão longemente,
E a idéia do teu ser fica tão rente
Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me
Sabendo que tu és, que, só por ter-me
Consciente de ti, nem a mim sinto.
E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto
A ilusão da sensação, e sonho,
Não te vendo, nem vendo, nem sabendo
Que te vejo, ou sequer que sou, risonho
Do interior crepúsculo tristonho
Em que sinto que sonho o que me sinto sendo.

''Não podemos esperar nada de bom em vista dos fatos: só os divagadores crêem existir uma saída. O otimismo é covardia. Nascemos nesta época e temos de seguir galhardamente a senda que nos conduz ao fim inevitável. Não resta outro caminho. Nosso dever é mantermo-nos firmes até o nosso último reduto, sem motivo, sem esperança''

Oswald Spengler

(A Decadência do Ocidente)

   

Exemplo


 Wislawa Szymborska

A ventania
despiu todas as folhas das árvores na última noite
exceto uma
deixada
para brincar na solidão de um ramo nu

Com este exemplo
a Violência demonstra
que sim, -
às vezes ela gosta de se divertir.

 tradução Henryk Siewierski

Ontologia sumaríssima


 Paulo Henriques Britto

Umas quatro ou cinco coisas,
no máximo, são reais.
A primeira é só um gás
que provoca a sensação
de que existe no mundo
uma profusão de coisas.

A segunda é comprida,
aguda, dura e sem cor.
Sua única serventia
é instaurar a dor.

A terceira é redondinha,
macia, lisa, translúcida,
e mais frágil do que espuma.
Não serve para coisa alguma.

A quarta é escura e viscosa,
como uma tinta. Ela ocupa
todo e qualquer espaço
onde não se encontre a quinta
(se é que existe mesmo a quinta),
a qual é uma vaga suspeita
de que as quatro acima arroladas
sejam tudo o que resta
de alguma coisa malfeita
torta e mal-ajambrada
que há muito já apodreceu.

Fora essas quatro ou cinco
não há nada,
nem tu, leitor,
nem eu.