domingo, 7 de outubro de 2012


"O Crisóstomo então levantou-se, atravessou o quarto, saiu, foi ver o Camilo deitado e beijá-lo para dormir e disse-lhe: nunca limites o amor, filho, nunca por preconceito algum limites o amor. O miúdo perguntou: porque dizes isso, pai. O pescador respondeu: porque é o único modo de também tu, um dia, te sentires o dobro do que és."

O filho de mil homens - Valter Hugo Mãe

Poema à boca fechada




Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.

José Saramago

O Corpo / Fragmentos

NOITE-SEIOS




luazulada
alvíssima
deslinda-
se no céu
finíssima
auréola:
pó de luz
que cintila
nos róseos
mamilos
desnudados
— lua
em luas
refletida,
prata
em prata
lucilada

Cláudio Daniel

Claudio Daniel – 1998

Uma excelente reflexão de Mar Becker sobre a poesia: "Pense em Robert Creeley e Luiza Neto Jorge, cujos poemas instauram um processo de esgotamento da linguagem que passa pelo exercício de se debruçar reflexivamente sobre a natureza das palavras. Títulos como “A linguagem”, que nos convida a ouvir “palavras / e palavras cheias // de buracos / doendo”, e “Sítio lido”, que sugere haver “um dispositivo de silêncio / nos pontos cardiais / desta página”, são bons exemplos nesse contexto.

Outros poetas tomaram um caminho diferente para chegar a esse lugar. No seu “Altazor”, Vicente Huidobro parte para uma aventura poética com o propósito de despojar a linguagem de suas mediações conceituais cotidianas e de seu peso objetivo. O resultado é uma construção textual que se funda na completa extrapolação dos recursos sintático-semânticos com os quais costumamos articular o discurso, desde a estrutura das palavras e a pontuação até a espacialização gráfica.
É no horizonte dessas considerações que conseguimos entender por que o último canto de “Altazor” se desenrola num ambiente de pura fonação: “Al aia aia / ia ia ia aia ui / Tralalí / Lali lalá [...]”.

Não são poucos os nomes que cabem nesse debate. A experiência de tocar os contornos da linguagem, de estar diante do abismo do indizível, é também o ponto de apoio dos poemóbiles de Augusto de Campos e Julio Plaza, que saíram no Brasil pelo selo Demônio Negro (Annablume), e da rosa de Gertrude Stein, do verso “Uma rosa é uma rosa é uma rosa”, que aparece no poema “Sacred Emily”. Em ambos os poetas vemos a necessidade de superar a dicotomia que há entre linguagem e realidade. No primeiro caso, tal necessidade é o que conduz à transformação da palavra em objeto físico (os ‘poemóbiles’). O poema está no mundo, como coisa, como peça que ao se abrir em sua dimensão ontológica transforma-se numa peça que pesa. No segundo caso, tal necessidade é o que conduz à transformação do verso numa tautologia. À medida que se dobra sobre si mesma (repetição), a palavra pode finalmente alcançar a realidade. Conforme observa o escritor Moacyr Scliar, “Gertrude Stein acreditava que a repetição revelava a verdade das coisas e das pessoas”. É uma intuição dessa natureza que Juliano Garcia Pessanha possivelmente considera no seu “Poema da Vida Consumada”: “Quero morrer sozinho ao lado de um córrego, de um córrego de nome estranho, de um córrego de nome córrego. Quero morrer sozinho e que um abutre leve meus olhos e algum animal as vísceras. Quero morrer tão completamente que a minha vida, mera mímesis de uma ordem fria, alcance o esquecimento último no qual o córrego seja restituído ao córrego”.

De um ensaio que escrevi para um futuro livro sobre filosofia da arte"

Tiempo





Se fue desgastando entre huecos y hendiduras
o entre luces o corceles desbocados
que ya no tengo tiempo de perder el tiempo
en absurdas vanidades.

Que no soy más ahora que el mismo
costal de huesos y de carne,
aunque más desgastado por el aire
y más atento en el vuelo del insecto o de las aves.

Y no quiero llegar antes ni más tarde.
Quiero estar en el momento justo
para no hacer perder el tiempo
o perder el tiempo en esperar o en esperarle.

Quiero vivir sin desperdicio del tiempo de mi tarde
para estar sabiamente en el tiempo que me queda… hasta agotarle

Guzmán Lavenant

Oscilo entre el silencio
siempre deshonesto
y la luz de la ira
que los ojos no guardan.

Oscilo entre la paz
hija de lo que se calla
y la tranquilidad
hermana de la destemplanza.

Y en este camino abierto
de futuros que no me hallan,
entre la calma y el dolor, elijo tu confianza.

                            Víctor Miguel Saénz