terça-feira, 29 de junho de 2010

G. Verdi, La Forza del Destino-overture / E la nave va (2)

Interpretação dos sonhos impossíveis

Esta nova edição de Visão do Paraíso (1959), ao nos levar de volta a um dos temas mais fascinantes da colonização do Novo Mundo, tem a vantagem de trazer ao leitor um apêndice crítico inestimável para sua orientação frente à opulência que faz do livro de Sérgio Buarque Holanda (1902-1982) um dos mais eruditos jamais escritos no âmbito da cultura brasileira.




Não que o imaginário dos colonizadores espanhóis e portugueses, iluminado por Sérgio com o mais puro encantamento literário, reapareça agora destituído da complexidade com que o recortou para que coubesse inteiro na “biografia de uma idéia”. Nem tampouco que esse vertiginoso mergulho no passado mítico deixe de nos ser mostrado como a ressurreição de “um momento mágico” na imaginação exacerbada dos que acreditavam que o paraíso terrestre permanecia engastado no misterioso cenário do Novo Mundo.



Diante dele, quanto mais vamos sendo tragados pelos sinais dispersos da epifania do Éden, tanto mais parece adensar-se aos nossos olhos a impressão de que as verdades do mito vão derrogando a linearidade da história, vertiginosamente engolfada pelas refrações da sociologia, da antropologia, da literatura, da filosofia. E se importa reconhecer que ele foi decisivo à empresa da conquista, não importa menos assinalar que acabou incorporando às incertezas do Novo Mundo a obsessão escatológica de um imaginário que circula no tempo, contaminando as almas e enxertando certezas ao acervo de tradições divergentes.



Ao leitor não basta apenas saber que, mais eloquente no imaginário do colonizador espanhol, a trasladação dos mitos edênicos flutue dos tempos bíblicos para a cultura moderna, do humanismo para o renascimento, do passado clássico para o Siglo de Oro, juntando à simbologia das viagens a obstinação maravilhada pelo Jardim do Éden. Mais importante do que isso – e é este um dos veios mais férteis do livro de Sérgio – será discernir as razões pelas quais o exagero das “idealizações inflamadas” dos castelhanos, ao construir uma imagem positiva daquele mundo ignorado “onde parecia ganhar atualidade histórica a própria possibilidade de remissão”, jamais despertou na gente lusitana sentimentos que a levassem a identificar-se com o substrato natural e humano das terras que encontrava.



Dentre as muitas as passagens que nos surpreendem em meio ao cotejo dessas circunstâncias, há uma em que Sérgio nos lembra o “senso da maravilha e do mistério” com que os marinheiros de Colombo se valiam da sugestão metafórica para com ela estimularem a grandeza da conquista, diferentemente do que ocorreu, por exemplo, com os homens de Vasco da Gama, que, ao dobrarem o Cabo da Boa Esperança, não hesitaram em converter aquela imagem da Índia fabulosa “num imenso mercado que o grande navegador ensinará a desfrutar em nome de seu soberano”.



Não estariam aí os primeiros indícios da nossa dispersão desordenada de povo pouco afeito à planificação metódica e ao esforço coletivo do futuro, invariavelmente sacrificados ao oportunismo dos resultados?



Laura de Mello e Souza, em posfácio certeiro que amplia os modos de compreender o livro, nos lembra que Visão do Paraíso não se liga a nenhuma tradição local, fora das obras do próprio Sérgio, com ênfase para Raízes do Brasil e Capítulos de Literatura Colonial, que Antonio Candido organizou, em 1991, a pedido de Maria Amélia Buarque de Holanda, a partir de textos inéditos encontrados por ela.



Da angulação com Raízes, o que ressoa na Visão do Paraíso, nos termos de Laura, além da singularidade do enfoque, é a intenção de elucidar as relações entre trabalho e aventura, sonho e realidade, com vistas a compreender por que sempre nos deixamos perder no rastro de sonhos impossíveis, “obcecados por quimeras e fantasias”. A diferença, agora, segundo ela, é que Sérgio inverte o pressuposto de que a economia e a sociedade bastavam como explicação da existência, para nos mostrar que os portugueses fizeram uma leitura pedestre das raízes paradisíacas das nossas riquezas naturais, desfigurando assim “as frondosidades” da mítica edênica.



Mas é ao ressaltar o diálogo entre a Visão do Paraíso e os Capítulos de Literatura Colonial que a autora do posfácio recompõe a lucidez hermenêutica com que a crítica de Sérgio soube nos mostrar que “por baixo do aparentemente moderno ou novo, irrompia o antigo”, como o atestam, por exemplo, os modelos quinhentistas da lírica de Cláudio Manuel da Costa e a dicção camoniana da épica de Santa Rita Durão.



Mais ou menos na linha definida por Antonio Candido, quando tratou da contribuição decisiva dos árcades para a formação da vida intelectual e artística no Brasil, o que marca a atitude crítica de Sérgio Buarque de Holanda é a incorporação por si mesma da nossa realidade intelectual e artística – vista por ele como a expressão conjunta das “disciplinas mentais” que nos elevassem a um plano compatível com a vida civilizada.



Alegorias. Daí não podermos desvincular aquela visão conservadora da forma mentis portuguesa, que Sérgio definiu na Visão do Paraíso como parcialmente avessa à modernização renascentista, da necessidade de compreendê-la na continuidade vertical dos estilos no tempo, longe da visão linear que a amarrava à divisão estanque dos períodos, como bem viu Antonio Candido na Introdução aos Capítulos de Literatura Colonial. É assim que, no Boosco Deleitoso, por exemplo, o verde da paisagem dos trópicos – que inundava a imaginação europeia com os motivos paradisíacos da eterna primavera – converte-se em fonte inesgotável de alegorias sagradas indispensáveis ao bom sucesso da conquista, provendo-a de uma “direção espiritual superior e redentora”, em tudo oposta ao caráter destruidor e desumano que a movia. Até as aves – nos diz Sérgio – desvestiram-se dos indumentos simbólicos de sublimidade para figurar no orbe religioso do sagrado, encarnando os santos doutores tão decisivos naquela saga assombrosa pelas terras ignotas do Novo Mundo.



Tais aspectos nos mostram não apenas o quanto a crítica de Sérgio contribuiu para marcar a singularidade do universo cultural português frente às demais vertentes do pensamento europeu. Se, de um lado, isso nos permite atenuar em muito a índole integradora da velha critica, que tendia sempre a fechar num único paradigma o bloco da cultura e do pensamento ocidental como um todo; de outro, nos mostra o quanto as particularidades da mentalidade portuguesa se desviavam dos padrões da época, abrindo uma série de dissonâncias valiosas para um apreciação crítica das nossas próprias singularidades.



ANTONIO ARNONI PRADO, ENSAÍSTA E PROFESSOR DE LITERATURA NA UNICAMP, É AUTOR, ENTRE OUTROS, DE TRINCHEIRA, PALCO E LETRAS (COSAC NAIFY) E ITINERÁRIO DE UMA FALSA VANGUARDA (EDITORA 34)

ANTONIO ARNONI PRADO.O Estado de São Paulo.26/06/2010
Trechos de ‘Papéis inesperados’, de Julio Cortázar

LUCAS, SEUS POEMAS ESCRITOS NA UNESCO



CALCULADORA ELETRÔNICA



Puseram os cartões perfurados



para deduzir coeficientes.



Apertaram botões e baixaram alavancas,



ela fez pfum e depois pss pss,



ronronou murmurou xerocou três minutos



vinte e cinco segundos



e depois



foi sacando uma coisa muito pequena um bracinho



com uma mão pendulante e rosa



na qual docemente balançava e rolava



uma gota salgada













HISTÓRIA DO PEQUENO ANALFABETO



Quando lhe ensinaram o A



chorou



No B



pôs o dedo no nariz



No C disse merda



No D pensou um pouco



No R



roubou o salário do pai



No T



dormiu com a irmã



No Z



conseguiu o diploma



(extraídos do capítulo “De um tal Lucas”)





***





A RESPEITO DE “O JOGO DA AMARELINHA”





Entre a minha própria visão de “O jogo da amarelinha” e a da maioria dos leitores (entendendo por maioria os jovens, muito mais sensíveis a esse livro que as pessoas da minha idade) há um curioso cruzamento de perspectivas. “Triste, solitário e final”, como diz Raymond Soriano, escrevi “O jogo da amarelinha” para mim, ou seja, para um homem de mais de quarenta anos e sua circunstância – outros homens e mulheres de mais de quarenta anos. Muito pouco depois, esse mesmo indivíduo emergiu de um mundo obstinadamente metafísico e estético, e sem renegá-lo entrou numa rota de participação histórica, de apoio a outras forças que buscavam e buscam a libertação da América Latina. Ao longo de um decênio, problemas considerados capitais em “O jogo da amarelinha” passaram a ser para mim alguns dos muitos componentes da problemática do “homem novo”; prova disso, creio, é o “Livro de Manuel”. Então, na minha visão pessoal da realidade, “O jogo da amarelinha” continua sendo uma primeira parte de alguma coisa que tentei e tento completar; uma primeira parte muito querida, certamente a mais profunda do meu ser, mas que já não aceito com a exclusividade que lhe conferiam os próprios protagonistas do livro, mergulhados em buscas nas quais o egoísmo de tanta introspecção e tanta metafísica era a única bússola.



Mas, então, surpresa: nesses dez anos de que falo, “O jogo da amarelinha” foi lido por inúmeros jovens do mundo, muitíssimos dos quais já eram parte dessa luta que eu só vim a encontrar no final. E enquanto os “velhos”, os leitores lógicos do livro, escolhiam ficar à margem, os jovens e “O jogo da amarelinha” entraram numa espécie de combate amoroso, de amarga batalha fraterna e rancorosa ao mesmo tempo, fizeram outro livro desse livro que não era conscientemente destinado a eles.



Dez anos depois, enquanto eu me distancio pouco a pouco de “O jogo da amarelinha”, uma infinidade de rapazes aparentemente chamados a estar longe dele se aproximam do risco de seus quadrados de giz e jogam a pedra em direção ao Céu. E esse céu, e isto é o que nos une, eles e eu chamamos de revolução.



(extraído do capítulo “Momentos”)

Júlio Cortázar

Cortázar inesperado e fundamental



Cassiano Viana, especial para O GLOBO*









Papéis inesperados, de Julio Cortázar. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. Editora Civilização Brasileira, 490 páginas. R$ 62,90





Aviso ao leitor: “Papéis inesperados”, que está chegando nesta sexta-feira às livrarias do país pela Editora Civilização Brasileira é, com toda certeza, a obra mais importante de Julio Cortázar lançada aqui desde sua morte, no dia 12 de fevereiro de 1984. Afinal, são inesperadas 450 páginas, com 11 novos (e bons) contos; três histórias que ficaram de fora de “Histórias de Cronópios e de Famas” (“Trânsito”, “Almoços” e “Never stop the press”); 11 novos episódios do divertido e ultrapessoal “Um tal Lucas”; notas introdutórias do célebre capítulo 126, ponto de partida de “O jogo da Amarelinha”, suprimido do romance pelo próprio Cortázar; um outro retirado de “O livro de Manuel”; um bom número de poemas; e as famosas “Entrevistas diante do espelho” — autoentrevistas onde Cortázar, bem ao estilo Truman Capote, faz o papel de entrevistador e entrevistado. Tudo isso e mais o raríssimo texto enviado pelo autor à revista “Life”, em 1968 e dois trechos especialmente curiosos para o leitor brasileiro.



Há também espaço para textos que percorrem outros territórios, como um patriótico “Discurso do Dia da Independência” e “Essência e missão do professor”, ambos do final da década de 30, quando Cortázar ainda era professor na Argentina; declarações de amor a Paris (“Paris, último primeiro encontro”), bem como o discurso de Cortázar ao receber, em 1981, a cidadania francesa. Além de discursos feitos na Comissão Internacional de Investigação dos Crimes da Junta Militar no Chile e no Tribunal Bertrand Russell, e/ou publicados em veículos como o francês “Le Monde”, onde salta a veia política do autor comprometido com a Revolução Cubana e com a luta em defesa dos direitos humanos na América Latina — lembre-se, leitor, boa parte da obra de Cortázar foi escrita no período das ditaduras.



Nessas páginas inesperadas, Cortázar recorda também seu encontro com Samuel Beckett e a amizade com o poeta cubano José Lezama Lima e Pablo Neruda, dentre outros.



Para uns, a possibilidade de redescoberta; para novos leitores, uma passagem ideal para o universo cortazariano. Levando em consideração que o livro reúne textos de diversas épocas e gêneros — escritos entre 1930, logo, anteriores a “La otra orilla”, primeiro volume de contos do autor, ainda inédito no Brasil, quando Cortázar ainda vivia em Buenos Aires, e 1984 — “Papéis inesperados” é também a possibilidade de o leitor acompanhar a formação de um grande escritor. Afinal, como lembra em seu prólogo o editor e co-organizador da obra Carles Álvarez Garriga (leia entrevista na edição digital do Segundo Caderno, exclusivamente para assinantes), citando o famoso ensaio “Cortázar e a bofetada metafísica”, do chileno Luis Harss, Cortázar não foi sempre o que é, e como chegou a sê-lo é um problema misterioso e desconcertante.



“Papéis inesperados” é muito mais do que um caça-níquel que aproveita sobras do “fundo de gaveta” do autor. É realmente um bom livro, significativo para o leitor brasileiro fã do autor de “O Jogo da Amarelinha“, “Bestiário”, “Octaedro” e “As armas secretas”, para ficarmos entre os mais conhecidos.

Publicado em 2009, 25 anos após a morte de Cortázar, o livro reúne o material encontrado em Paris, na residência onde o escritor escreveu “O Jogo da Amarelinha” — e onde vive hoje Aurora Bernárdez, sua herdeira e co-organizadora da obra —, em um armário em que havia de tudo: romances e contos inéditos, contas de luz, anotações e todo o material compilado em “Papéis inesperados”.



Se contasse com fotos e desenhos, o livro poderia se juntar a “A volta ao dia em oitenta mundos” e “Último round”, os famosos volumes de livros-almanaques de Cortázar, lançados pela Civilização Brasileira em 2009.



A tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht — isto é importantíssimo, prezado leitor — é sempre muito bem-vinda e pela primeira vez encontramos alguma informação à guisa do reconhecimento ao trabalho do tradutor em notas no final do livro. Tradutores de obras de Lacan, Camus, Vargas Llosa, dentre outros, ambos já haviam trazido para o português boa parte da obra cortazariana, de “Os reis” a “A volta ao dia em oitenta mundos” e “Último round”.



De relevante, faltam agora chegar ao leitor brasileiro o primeiro livro de contos, “La otra orilla”, de 1945; os três tomos de correspondência publicados em 2004 pela Alfaguara; e o livro de poemas “Salvo El crepúsculo”, de 1984. Sem dúvida vão continuar aparecendo novos textos inesperados porque, como lembra Garriga, citando Borges, “edição definitiva” é um conceito que só corresponde à teologia ou ao cansaço.



Pelo menos dois textos de “Papéis inesperados” são curiosos para o leitor brasileiro: “Para uma imagen de Cley”, publicado no jornal mexicano “El sol”, em maio de 1977, e “A ‘Veja’ interessa saber…”, de 1982, ao que tudo indica uma carta em resposta à revista brasileira, pouco tempo depois que o governo francês outorgou uma esperada cidadania francesa ao escritor.



Dois dois textos, o principal é o que foi escrito em homenagem ao escritor, dramaturgo e poeta brasileiro Clay Gama de Carvalho, que havia se suicidado poucos meses antes. Cortázar e Clay mantiveram durante anos uma amizade de telefonemas e cartas. Clay havia ciceroneado Cortázar e a lituana Ugné Karvelis, sua companheira na época, em 1973, durante uma das passagens do escritor pelo Brasil, e levado o casal até o último andar do edifício Itália, em São Paulo, indo depois à casa do poeta Haroldo de Campos. Para além da admiração a escritores como Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade e de uma forte ligação com o Brasil e com a música brasileira — especialmente a de Caetano Veloso, Gal Costa e Bethânia — Cortázar, que veio duas vezes ao país, foi amigo dos irmãos Campos e de intelectuais como Boris Schnaiderman e Davi Arrigucci Jr. (este último autor de “O escorpião encalacrado”, um dos principais estudos sobre a obra de Cortázar).



No texto sobre Clay, Cortázar elogia a peça “Cromossomos”, encenada no Teatro de Arena, em 1972, comparando-a com as pinturas de Francis Bacon. “Como sempre, nos víamos pouco; para mim foram anos de viagens contínuas e apenas de vez em quando chegava para mim uma mensagem de Cley, seu ‘Tudo bem’, que me deixava insatisfeito e me obrigava a pensar na canção de Caetano Veloso na qual terrivelmente se diz: ‘Meu amor, todo o mundo está deserto, tudo certo, tudo certo como dois e dois são cinco”, escreve Cortázar. Vale lembrar a anedota: Cortázar brincava perguntando se alguém alguma vez teria visto Caetano e Maria Bethania juntos. “Óbvio que não: são a mesma pessoa”.



CASSIANO VIANA é jornalista, escritor e tradutor

Sensações

antimétodo 2

Pouco a pouco

Embaralho tudo e nada

Sou meu próprio

Espantalho

Fujo

De mim mesmo

Finjo-me

Da minha própria

Esfinge

Perdido em meu próprio

Labirinto

Sou o que sou

Ou minto? Será isso

Uma regra secreta?

Sebastião Uchoa Leite

Teia

Poemas do livro “Teia”, de Orides Fontela

Eros II

O amor não



o amor não

ouve

o amor não

age

O amor

não.



Teologia

Não sou um deus, Graças a todos

os deuses!

Sou carne viva e

Sal. Posso morrer.



Pesca

I



A beira do rio o silêncio

dos peixes

a beira rio nem

a espera.



II



A água não cessa

e o rio

nunca passa.



III



A beira rio

a lucidez

a

pedra

e a pedra é

pedra: não germina

Basta-se.



Anjo

I



Um anjo

é fogo:

consome-se

Um anjo

é olhar:

introverte-se.



II



Um anjo

é cristal:

dissolve-se.

Um anjo

é luz

e se apaga.

Pola Negri: Old Russian Romance, HMV 1931

Pola Negri in TANGO NOTTURNO sings Tango Notturno

La Nacion

A terceira depressão

Recessões são comuns; depressões são raras.



Que me lembre, só ocorreram dois períodos na história econômica que poderiam ser rigorosamente descritos como “depressões” na época: os anos de deflação e instabilidade que se seguiram ao pânico de 1873 e os anos de desemprego em massa que se seguiram à crise financeira de 1929-31.



Nem a Longa Depressão, do século XIX, nem a Grande Depressão, do século XX, foram um período de declínio sem fim — ao contrário, ambas incluíram fases de crescimento da economia.



Porém, esses episódios de expansão nunca foram suficientes para desfazer o estrago causado pela queda inicial, e foram seguidos de novas quedas.



Temo que estejamos agora nos estágios iniciais de uma terceira depressão. Provavelmente, ela se parecerá mais com a Longa Depressão do que a mais severa Grande Depressão. Porém, o custo — para a economia mundial e, sobretudo, para as milhões de vidas atingidas pela falta de trabalho — será, apesar de tudo, imenso.



E esta terceira depressão será basicamente um erro de política econômica. Em todo o mundo — mais recentemente, na desencorajadora reunião do G-20 do último fim de semana — os governos estão obcecados com a inflação, quando a ameaça real é a deflação, pregando a necessidade de apertar os cintos, quando o problema concreto são os gastos inadequados.



Em 2008 e 2009, parecia que havíamos aprendido a lição da história. Diferentemente de seus antecessores, que elevaram as taxas de juros ante a crise financeira, os líderes atuais do Federal Reserve (o banco central americano) e do Banco Central Europeu cortaram os juros e agiram no sentido de apoiar os mercados de crédito. Ao contrário dos governos do passado, que tentaram equilibrar os orçamentos em meio à contração da economia, os de hoje permitiram a alta dos déficits fiscais. E as políticas mais eficazes ajudaram o mundo a evitar o colapso total: a recessão da crise financeira acabou no ano passado.



Mas, os historiadores do futuro nos dirão que isso não foi o fim da terceira depressão, assim como a retomada iniciada em 1933 não foi o fim da Grande Depressão. Afinal, o desemprego — e sobretudo o desemprego de longo prazo — permanece em níveis que teriam sido considerados catastróficos não muito tempo atrás, e não dão sinais de melhora a curto prazo. E tanto os EUA quanto a Europa estão firmemente caminhando rumo às armadilhas deflacionárias do tipo japonês.



Ante esse quadro sombrio, seria de se supor que os legisladores perceberiam que ainda não fizeram todo o possível para garantir a recuperação. Mas, não: nos últimos meses voltamos a ouvir um surpreendente clamor ortodoxo por equilíbrio fiscal.



E quem pagará o preço do triunfo da ortodoxia? Dezenas de milhões de trabalhadores desempregados, muitos dos quais ficarão sem trabalho por anos, e alguns nunca mais voltarão a trabalhar.
29/06/2010 - 09:08h




Paul krugman – O GLOBO

Queda que as mulheres têm para os tolos

Machado de Assis

ADVERTÊNCIA



Este livro é curto, talvez devera sê-lo mais.



Desejo que ele agrade, como me sai das mãos; mas é com pesar que me vanglorio por esta obra.



Falar do amor das mulheres pelos tolos, não é arriscar ter por inimigas a maioria de um e outro sexo?



Diz-se que a matéria é rica e fecunda; eu acrescento que ela tem sido tratada por muitos. Se tenho, pois, a pretensão de ser breve, não tenho a de ser original.



Contento-me em repetir o que se disse antes de mim; minhas páginas conscienciosas são um resumo de muitos e valiosos escritos. Propriamente falando, é uma comparação científica, e eu obteria a mais doce recompensa de meus esforços, como dizem os eruditos, se inspirasse aos leitores a idéia de aprofundar um tão importante exemplo.



Quanto à imparcialidade que presidiu à redação deste trabalho, creio que ninguém a porá em dúvida.



Exalto os tolos sem rancor, e se critico os homens de espírito, é com um desinteresse, cuja extensão facilmente se compreenderá.



I



Il est des noeuds secrets, il est des sympathies.



Passa em julgado que as mulheres lêem de cadeira em matéria de fazendas, pérolas e rendas, e que, desde que adotam uma fita, deve­-se crer que a essa escolha presidiram motivos plausíveis.



Partindo deste princípio, entraram os filósofos a indagar se elas mantinham o mesmo cuidado na escolha de um amante, ou de um marido.



Muitos duvidaram.



Alguns emitiram como axioma, que o que determinava as mulhe­res, neste ponto, não era, nem a razão, nem o amor, nem mesmo o capricho; que se um homem lhes agradava, era por se ter apre­sentado primeiro que os outros, e que sendo este substituído por outro, não tinha esse outro senão o mérito de ter chegado antes do terceiro.



Permaneceu por muito tempo este sistema irreverente.



Hoje, graças a Deus, a verdade se descobriu: veio a saber-se que as mulheres escolhem com pleno conhecimento do que fazem. Com­param, examinam, pesam, e só se decidem por um, depois de veri­ficar nele a preciosa qualidade que procuram.



Essa qualidade é… a toleima!



II



Desde a mais remota antiguidade, sempre as mulheres tiveram a sua queda para os tolos.



Alcibíades, Sócrates e Platão foram sacrificados por elas aos pre­sumidos do tempo. Turenne, La Rochefoucauld, Racine e Molière, foram traídos por suas amantes, que se entregaram a basbaques no­tórios. No século passado todas as boas fortunas foram reservadas aos pequenos abades. Estribadas nesses exemplos, as nossas contem­porâneas continuaram a idolatrar os descendentes dos ídolos das suas avós.



Não é nosso fim censurar uma tendência, que parece invencível; o que queremos é motivá-la.



Por menos observador e menos experiente que seja, qualquer pes­soa reconhece que a toleima é quase sempre um penhor de triunfo. Desgraçadamente ninguém pode por sua própria vontade gozar das vantagens da toleima. A toleima é mais do que uma superioridade ordinária: é um dom, é uma graça, é um selo divino.



“O tolo não se faz, nasce feito.”



Todavia, como o espírito e como o gênio, a toleima natural forti­fica-se e estende-se pelo uso que se faz dela. É estacionária no pobre-­diabo, que raramente pode aplicá-la; mas toma proporções desmar­cadas nos homens a quem a fortuna, ou a posição social cedo leva à prática do mundo. Este concurso da toleima inata e da toleima adquirida é que produz a mais temível espécie de tolos, os tolos que o acadêmico Trublet chamou “tolos completos, tolos integrais, tolos no apogeu da toleima.”



O tolo é abençoado do céu pelo fato de ser tolo, e é pelo fato de ser tolo, que lhe vem a certeza, de que, qualquer carreira que tome, há de chegar felizmente ao termo. Nunca solicita empregos, aceita­-os em virtude do direito que lhe é próprio: Nominor leo. Ignora o que é ser corrido ou desdenhado; onde quer que chegue, é feste­jado como um conviva que se espera.



O que opor-lhe como obstáculo? É tão enérgico no choque, tão igual nos esforços e tão seguro no resultado! É rocha despegada, que rola, corre, salta e avança caminho por si, precipitada pela sua própria massa.



Sorri-lhe a fortuna particularmente ao pé das mulheres. Mulher alguma resistiu nunca a um tolo. Nenhum homem de espírito teve ainda impunemente um parvo como rival. Por quê?… Há necessi­dade de perguntar por quê? Em questão de amor, o paralelo a esta­belecer entre o tolo e o homem de siso, não é para confusão do último?



III



Em matéria de amor, deixa-se o homem de espírito embalar por estranhas ilusões. As mulheres são para ele entes de mais elevada natureza que a sua, ou pelo menos ele empresta-lhes as próprias idéias, supõe-lhes um coração como o seu, imagina-as capazes, como ele, de generosidade, nobreza e grandeza. Imagina que para agradar-lhes é preciso ter qualidades acima do vulgar. Naturalmente tímido, exagera mais ao pé delas a sua insuficiência; o sentimento de que lhe falta muito, torna-o desconfiado, indeciso, atormentado. Respei­toso até à timidez, não ousa exprimir o seu amor em palavras; exala-o por meio de uma não interrompida série de meigos cuidados, ternos respeitos e atenções delicadas. Como nada quer à custa de uma indignidade, não se conserva continuamente ao pé daquela que ama, não a persegue, não a fatiga com a sua presença. Para interessá-la em suas mágoas, não toma ares sombrios e tristes; pelo contrário, esforça-se por ser sempre bom, afetuoso e alegre junto dela. Quando se retira da sua presença, é que mostra o que sofre, e derrama as suas lágrimas em segredo.



O tolo, porém, não tem desses escrúpulos. A intrépida opinião que ele tem de si próprio, o reveste de sangue frio e segurança.



Satisfeito de si, nada lhe paralisa a audácia. Mostra a todos que a ama, e solicita com instância provas de amor. Para fazer-se notar daquela que ama, importuna-a, acompanha-a nas ruas, vigia-a nas igrejas e espia-a nos espetáculos. Arma-lhe laços grosseiros. À mesa, oferece-lhe uma fruta para comerem ambos, ou passa-lhe misterio­samente, com muito jeito, um bilhete de amores. Aperta-lhe a mão a dançar e saca-lhe o ramalhete de flores no fim do baile. Numa noite de partida, diz-lhe dez vezes ao ouvido: “Como é bela!”, por­quanto revela-lhe o instinto, que pela adulação é que se alcançam as mulheres, bem como se as perde, tal como acontece com os reis. De resto, como nos tolos tudo é superficial e exterior, não é o amor um acontecimento que lhes mude a vida: continuam como antes a dissipá-la nos jogos, nos salões e nos passeios.



IV



O amor, disse alguém, é uma jornada, cujo ponto de partida é o sentimento, e cujo termo inevitável a sensação. Se é isto verdade, o que há a fazer, é embelecer a estrada e chegar o mais tarde possível ao fim. Ora, quem melhor do que o homem de espírito sabe parolar à beira do caminho, parar c colher flores, sentar-se às sombras frescas, recitar aventuras e procurar desvios e delongas? Um caracol de cabelos mal arranjado, um cumprimento menos apressado que de costume, um som de voz discordante, uma palavra mal escolhida, tudo lhe é pretexto para demorar os passos e prolongar os prazeres da viagem. Mas quantas mulheres apreciam esses castos manejos, e compreendem o encanto dessas paradas à borda de uma veia lím­pida que reflete o céu? Elas querem amor, qualquer que seja a sua natureza, e o que o tolo lhes oferece é-lhes bastante, por mais insípido que seja.



V



O homem de espírito, quando chega a fazer-se amar, não goza de uma felicidade completa. Atemorizado com a sua ventura, trata antes de saber por que é feliz! Pergunta por que e como é amado; se, para uma amante, é ele uma necessidade, ou um passatempo; se ela cedeu a um amor invencível; enfim, se é ele amado por si mesmo. Cria ele próprio e com engenho as suas mágoas e cuidados; é como o Sibarita que, deitado em um leito de flores, sentia-se incomodado pela dobra de uma folha de rosa. Num olhar, numa palavra, num gesto, acha ele mil nuanças imperceptíveis, desde que se trata de interpretá-las contra si. Esquece os encômios que levemente o tocam, para lembrar-se somente de uma observação feita ao menor dos seus defeitos e que bastante o tortura. Mas, em compensação desses tormentos, há no seu amor tanto encanto e delícias! Como estuda, como extrai, como saboreia as volúpias mais fugitivas até a última essência! Como a sua sensibilidade especial sabe descobrir o encanto das criancices frívolas, dos invisíveis atrativos, dos nadas adoráveis!



O tolo é um amante sempre contente e tranqüilo. Tem tão robusta confiança nos seus predicados, que antes de ter provas, já mostra a certeza de ser amado. E assim deve ser. Em sua opinião faz uma grande honra à mulher a quem dedica os seus eflúvios. Não lhe deve felicidade; ele é que lha dá; e como tudo o leva a exagerar o benefício, não lhe vem à idéia de que se possa ter para com ele ingratidões. Assim, no meio das alegrias do amor, saboreia ainda a embriaguez da fatuidade. Mas como, em definitivo, é ele próprio o objeto de seu culto, depressa o tolo se aborrece, e como o amor para ele não é mais que um entretenimento que passa, os últimos favores, longe de o engrandecerem mais, desligam-no pela sociedade.



VI



O homem de espírito vê no amor um grande e sério negócio, ocupa-se dele como do mais grave interesse de sua vida, sem distração, nem reserva. Pode perder nele algumas das suas qualidades viris, mas é para crescer em abnegação, em dedicação, em bondade. Suporta tudo daquela que ama sem nada exigir dela. Quando ela atende a alguns dos seus votos, quando previne alguns dos seus desejos, longe de ensoberbecer-se, agradece com uma efusão mes­clada de surpresa. Perdoa-lhe generosamente todos os males que lhe causa porque, muito orgulhoso para enraivecer-se ou lastimar-se, não sabe provocar, nem a piedade que enternece, nem o medo que faz calar. Oh! que inferno, se a má ventura lhe depara uma mulher bela e má, uma namoradeira fria de sentidos, ou uma moça de ra­bugice precoce!



Sofre então vivamente com a perfídia da mulher amada, mas des­culpa-a pela fragilidade do sexo. A sua indulgência pode então con­duzi-lo à degradação. Ele segue a olhos fechados o declive que o arrasta ao abismo, sem que a queixa, a ambição, a fortuna possam retê-lo.



O néscio escapa a estes perigos. Como não é ele quem ama, é ele quem domina. Para vencer uma mulher finge por alguns momentos o excesso de desespero e de paixão; mas isso não passa de um meio de guerra, tática de cerco para enganar e seduzir o inimigo. Logo depois recobra ele a tirania, e não a abdica mais. Para entreter-se nisso, tem o tolo o seu método, as suas regras, a sua linha de con­duta. É indiscreto por princípio, porquanto divulgando os favores que recebe, compromete a que lhe concede e ao mesmo tempo afasta as rivalidades nascentes. É suscetível pela razão, cioso por cálculo, a fim de promover estes proveitosos amuos, que lhe servem, a seu grado, para conduzir a uma ruptura definitiva, ou para exigir um novo sacrifício. Mostra uma cruel indiferença, indicando pouca con­fiança nas provas de simpatia que lhe dão. Num baile, proibindo à sua amante de dançar, não faz caso dela, de propósito. Aflige-a com aparências de infidelidade, falta à hora marcada para se encon­trarem, ou, depois de se ter feito esperar, vem, dando desculpas equívocas de sua demora. Hábil em semear a inquietação e o susto, faz-se obedecer à força de ser tirano, e acaba por inspirar uma afeição sincera à força de promovê-la.



VII



O homem de espírito, assustado com o vácuo imenso, que deixa no coração uma afeição que se perde, só rompe o laço que o prende à causa de dilacerações interiores.



Como bem se disse, sendo preciso um dia para conseguir, é preciso mil para se reconquistar.



Mesmo no momento em que volta a ser livre: quantas vezes um sorriso, um meneio de cabeça, uma maneira de puxar o vestido, ou de inclinar o chapelinho de sol, não o faz recair no seu antigo cati­veiro!



De resto, a mulher, a quem ele tiver revelado o segredo do seu coração, ficará sempre para ele como ser à parte. Não a esquece nunca.



Morta, ou separado, nutre por aquela que a perdeu longas sau­dades. Perseguido pela lembrança que dela conserva, descobre mui­tas vezes que as outras mulheres por quem se apaixona só têm o mérito de se parecerem com ela. Dá-se ele então a comparações que o desvairam, que o irritam, que o põem fora de si, exigindo no seu trajar, no seu andar e até no seu falar alguma coisa que lhe recorde o seu implacável ideal.



E se é ele o abandonado, que de torturas que sofre!



Viver sem ser amado parece-lhe intolerável. Nada pode consolá-lo ou distraí-lo.



No caso de tornar a ver os sítios que foram testemunhas da sua felicidade, evoca à sua memória mil circunstâncias perseverantes e cruéis. Ali está a cerca cheirosa, cujos espinhos rasgaram o véu da infiel; aqui, o rio que a medrosa só ousava atravessar amparada pela sua mão; além está a alameda, cuja areia fina parece ter ainda o molde de seus ligeiros passos. Contempla na janela as longas e alvas cortinas, no peitoril os arbustos em flor, na relva a mesa, o banco, as cadeiras em que outrora se sentaram.



É possível que ela tenha mudado tão de repente? Pois não foi ainda ontem que de volta de um passeio ao bosque, lhe enxugou o suor da testa, e que se prendia em doce e estranho amplexo?…



Hoje, nem mais doçuras, nem mais apertos de mão, nem mais dessas horas ébrias em que todo o passado ficava esquecido! Ele está só, entregue a si mesmo, sem força, sem alvo: é o delírio do desespero.



O tolo está acima dessas misérias. Não o assusta um futuro prenhe de qualquer inquietação aflitiva. Sempre acobertado pela bandeira da inconstância, desfaz-se de uma amante sem luta, nem remorsos; utiliza uma traição para voar a novas aventuras. Para ele nada há de terrível em uma separação, porque nunca supõe que se possa colocar a vida numa vida alheia, e que fazendo-se um hábito dessa comunidade de existência, faz-se pouco novamente sofrer, quando ela tiver de quebrar-se.



Da mulher, que deixa de amar, ele só conserva o nome, como o veterano conserva o nome de uma batalha para glorificar-se, ajun­tando-o ao número das suas campanhas.



VIII



Há uma época em que custa-se muito a amar. Tendo visto e estu­dado um pouco a mulher, adquire-se uma certa dureza que permite aproximar-se sem perigo das mais belas e sedutoras. Confessa-se sem rebuço a admiração que elas inspiram, mas é uma admiração de artista, um entusiasmo sem ternura. Além disso, ganha-se uma penetração cruel para ver, através de todos os artifícios de casquilha, o que vale a submissão que elas ostentam, a doçura que afetam, a ignorância que fingem. E prenda-se um homem nessas condições!



De ordinário, é entre trinta a trinta e cinco anos, que o coração do homem de espírito fecha-se assim à simpatia e começa a petri­ficar-se. É possível que nele tornem a aparecer os fogos da moci­dade, e que ele venha a sentir um amor tão puro, tão fervente, tão ingênuo como nos frescos anos da adolescência; longe de ter perdido as perturbações, as apreensões, os transportes da alma amorosa, sente-­os ele de novo com emoção mais profunda e dá-lhes um preço tanto mais elevado, quanto ele está certo de não os ver renascer.



Oh! então lastima-se o pobre insensato! Ei-lo obrigado a ajoelhar­-se aos pés de uma mulher para quem é nada o mérito de caminhar pouco e pouco atrás de sua sombra, de fazer exercício em torno aos seus vestidos, de se extasiar diante de seus bordados, de lisonjear os seus enfeites. Ai, triste! esses longos suplícios o revoltam, e, Pig­malião desesperado, afasta-se de Galatéia, cujo amor se não pode reanimar.



Esses sintomas de idade são desconhecidos ao tolo, porquanto cada dia que passa não lhe faz achar no amor um bem mais caro, ou mais difícil a conquistar. Não tendo sido, nem melhorado, nem en­durecido pelos reveses da vida, continuando a ver as mulheres com o mesmo olhar, exprime-lhes os seus amores com as mesmas lágrimas e os mesmos suspiros que lhes reserva para pintar os antigos tor­mentos. E como ele só exigiu sempre delas aparências de paixão, vem facilmente a persuadir-se que é amado. Longe de fugir, perse­vera e — triunfa.



IX



O homem de espírito é o menos hábil para escrever a uma mulher.



Quando se arrisca a escrever uma carta, sente dificuldades incríveis. Desprezando o vasconço da galanteria, não sabe como se há de fazer entender. Quer ser reservado e parece frio; quer dizer o que espera e indica receio; confessa que nada tem para agradar, e é apa­nhado pela palavra. Comete o crime de não ser comum ou vulgar. As suas cartas saem do coração e não da cabeça; têm o estilo sim­ples, claro e límpido, contendo apenas alguns detalhes tocantes. Mas é exatamente o que faz com que elas não sejam lidas, nem compre­endidas. São cartas decentes, quando as pedem estúpidas.



O tolo é fortíssimo em correspondência amorosa, e tem consciên­cia disso. Longe de recuar diante da remessa de uma carta, é muitas vezes por aí que ele começa. Tem uma coleção de cartas prontas para todos os graus de paixão. Alega nelas em linguagem brusca o ardor de sua chama; a cada palavra repete: meu anjo, eu vos adoro. As suas fórmulas são enfáticas e chatas; nada que indique uma per­sonalidade. Não faz suspeitar excentricidade ou poesia; é quanto basta; é medíocre e ridículo, tanto melhor. Efetivamente o estranho que ler as suas missivas, nada tem a dizer; na mocidade o pai da menina escrevia assim; a própria menina não esperava outra coisa. Todos estão satisfeitos, até os amigos. Que querem mais?



X



Enfim, o homem de espírito, em vista do que é, inspira às mulhe­res uma secreta repulsa. Elas se admiram com o ver tímido, aca­nham-se com o ver delicado, humilham-se com vê-lo distinto.



Por muito que ele faça para descer até elas, nunca consegue fazê-­las perder o acanhamento; choca-as, incomoda-as, e esse acanhamen­to, de que ele é causa, torna frias as conversações mais indiferentes, afasta a familiaridade e assusta a inclinação prestes a nascer.



Mas o tolo não atrapalha, nem ofusca as mulheres. Desde a pri­meira entrevista, ele as anima e fraterniza-se com elas. Eleva-se sem acanhamento nas conversas mais insulsas, palra e requebra-se como elas. Compreende-as e elas o compreendem. Longe de se sentirem deslocadas na sua companhia, elas a procuram, porque brilham nela. Podem diante dele absorver todos os assuntos e conversar sobre tudo, inocentemente, sem conseqüência. Na persuasão de que ele não pensa melhor, nem contrário a elas, auxiliam o triste, quando a idéia lhe falta, suprem-lhe a indigência. Como se fazem valer por ele, é justo que lhe paguem, e por isso consentem em ouvi-lo em tudo. Entre­gam-lhe assim os seus ouvidos, que é o caminho do seu coração, e um belo dia admiram-se de ter encontrado no amigo complacente um senhor imperioso!



XI



Compreende-se, por este curto esboço, como e quanto diferem os tolos e os homens de espírito nos seus meios de sedução. A conclu­são final é, que os tolos triunfam, e os homens de espírito falham, resultado importante e deplorável, nesta matéria sobretudo.



XII



Depois de ter indagado as causas da felicidade dos tolos, e da des­graça dos homens de espírito: perderemos tempo precioso em acusar as mulheres? Não hesitamos em deitar as culpas sobre os homens de espírito, como fez o profundo Champcenets.



Por que não estudam os tolos, diz-lhes este autor, para conseguir imitá-los? Há de custar-vos muito fazer um tal papel: mas há pro­veito sem desar? E depois, quando assim sois a isso obrigado, visto como não vos dão outro meio de solução, querer subtrair o belo sexo a império dos tolos, descortinando-lhe a perversidade do seu gosto, é coisa em que ninguém deve pensar, é uma loucura; fora o mesmo que querer mudar a natureza, ou contrariar a fatalidade.



Porquanto, ficai sabendo, continua Champcenets, que as mulheres não são senhoras de si próprias; que nelas tudo é instinto ou tempe­ramento, e que portanto elas não podem ser culpadas de suas pre­ferências. Só respondemos pelo que praticamos com intenção e dis­cernimento. Ora, qual delas pode dizer que predileção a impele, que paixão a obriga, que sentimento a faz ingrata, ou que vingança lhe dita as malignidades? Debalde procurareis delas tão cruel prodígio; nenhuma é cúmplice do mal que causa: a este respeito, o seu estou­vamento atesta-lhes a candura.



Por que vos obstinais em pedir-lhes o que a Providência não lhes deu? Elas se apresentam belas, apetitosas e cegas: não vos basta isto? Querê-las com juízo, penetrantes e sensíveis, é não conhecê-las.



Procurai as mulheres nas mulheres, admirai-lhes a figura elegante e flexível, afagai-lhes os cabelos, beijai-lhes as mãos mimosas; mas tomai como um brinquedo o seu desdém, aceitai os seus ultrajes sem azedume, e às suas cóleras mostrai indiferença. Para conquistar esses entes frágeis e ligeiros, é preciso atordoá-los pelo rumor dos vossos louvores, pelo fasto do vosso vestuário, pela publicidade das vossas homenagens.



XIII



Sim, sim, é mister ousar tudo para com as mulheres.



Texto-fonte:



Obra Completa, Machado de Assis,



Rio de Janeiro: Nova Aguilar, V.III, 1994.



Publicado originalmente em A Marmota, Rio de Janeiro, 19, 23, 26 e 30/04 e 03/05/1861

Mostrai-me as anémonas

Mostrai-me as anémonas, as medusas e os corais


Do fundo do mar.

Eu nasci há um instante.


Sophia de Mello Breyner Andresen,
Mar, Lisboa: Caminho, 2001, p.21

Mahler - Ich bin der Welt abhanden gekommen - Kožená / Abbado