terça-feira, 24 de agosto de 2010

Era manhã de setembro

Era manhã de setembro

e

ela me beijava o membro.



Aviões e nuvens passavam

coros negros rebramiam

ela me beijava o membro.



O meu tempo de menino

o meu tempo ainda futuro

cruzados floriam junto



Ela me beijava o membro



Um passarinho cantava,

bem dentro da árvore, dentro

da terra, de mim, da morte



Morte e primavera em ramo

disputavam-se a água clara

água que dobrava a sede



Ela me beijando o membro



Tudo o que eu tivera sido

quando me fora defeso

já não formava sentido



Somente a rosa crispada

o talo ardente, uma flama

aquele êxtase na grama



Ela a me beijar o membro



Dos beijos era o mais casto

na pureza despojada

que é própria das coisas dadas



Nem era preito de escrava

enrodilhada na sombra

mas presente de rainha



tornando-se coisa minha

circulando-me no sangue

e doce e lento e erradio



como beijava uma santa

no mais divino transporte

e num solene arrepio



beijava beijava o membro



Pensando nos outros homens

eu tinha pena de todos

aprisionados no mundo



Meu império se estendia

por toda a praia deserta

e a cada sentido alerta



Ela me beijava o membro



O capítulo do ser

o mistério do existir

o desencontro de amar



eram tudo ondas caladas

morrendo num cais longínquo

e uma cidade se erguia



radiante de pedrarias

e de ódios apaziguados

e o espasmo vinha na brisa



para consigo furtar-me

se antes não me desfolhava

como um cabelo se alisa



e me tornava disperso

todo em círculos concêntricos

na fumaça do universo



Beijava o membro

beijava

e se morria beijando

a renascer em dezembro.

Carlos Drummond de Andrade