quarta-feira, 16 de setembro de 2009

ENSAIO

“Em Nápoles, no final do século XVIII, Goethe ficou fortemente impressionado com Emma Hamilton, casada com Lord Hamilton, o vulcanólogo e coleccionador. O que impressionou Goethe não foi (embora ainda, talvez) a proverbial beleza da sua anfitriã. O que o impressionou foram os seus tableaux vivants, sobretudo porque eram de uma fantástica semelhança em relação à estatuária clássica e à pintura que lhe servia de modelo, mas sobretudo pela forma como a futura amante de Lord Nelson mudava de posição. De um momento para outro alterava a pose, o que era sublinhado com um coro de exclamações nos salões do palazzo napolitano dos Hamilton. De uma enorme eficácia na rápida composição das cenas, a actriz mudava de posição e transfigurava-se em frente dos entusiasmados espectadores. O que espantou o poeta alemão, tal como relata na Viagem a Itália, foi a velocidade dessa transfiguração. Poderíamos acrescentar que o importante nessa transfiguração é o momento entre uma e outra pose, entre um e outro estado.
Também a obra de Jorge Molder, sobretudo o seu trabalho recente, se situa nesse espaço. Por um lado, espanta-nos com a transformação daquele personagem que nos surge sistematicamente nas imagens e, por outro, caímos sempre na tentação de o tomar como uma entidade real, abrindo, desta forma, o espaço para ficcionarmos sobre o entre.

O trabalho de Jorge Molder é sobre a duplicidade. Esta duplicidade parte de uma ficção de um outro, personagem que o artista constrói a partir da utilização do seu próprio corpo em autoretratos – que deixam de o ser porque a figura que neles surge não resulta de nenhuma busca de autenticidade no interior do seu autor, apresentando-se, pelo contrário, como uma figura ficcional. A característica mais marcante desta persistência na duplicidade é a sua não resolução numa narrativa.
Não se trata, portanto, de construir uma narrativa, uma história, mas de sinalizar áreas de ficção que se relacionam com referências literárias, cinematográficas e artísticas, ou quotidianas. Estas referências ligam-se de uma forma frequentemente intuitiva e não obedecem a um programa ideológico de estabelecimento de um universo, antes definem, de uma forma fluida, uma extensa rede de possibilidades combinatórias.

[…]

Esta forma de procedimento de Jorge Molder consubstancia-se num paradoxo: por um lado, as suas imagens são, facticamente, simples: são retratos em que o artista se utiliza como modelo, sobretudo nos trabalhos posteriores a 1987, em situações que são simples e secas (olha, está deitado, assume uma posição). Por vezes como acontece nalgumas séries, existem imagens de objectos (como em The Portuguese Dutchman, Conrad ou The Secret Agent); ou então, o que é característico das séries mais recuadas, lugares (como em Zerlina). Por outro lado – e aqui reside o carácter paradoxal, estas imagens constroem uma complexidade.
Esta complexidade surge sob a forma da complicatio, no mesmo sentido em que James Joyce a constrói, produzindo uma espécie de ressonância interna, na acepção em que Gombrowicz fala de séries divergentes." (…)

SARDO, Delfim, “Desvanecer, Cair, Desfalecer E Fingir (versão condensada)”, A Phala, Lisboa, nº. 72, Julho/Agosto/Setembro de 1999, p.p. 133 e 134.

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