quarta-feira, 16 de setembro de 2009

CONSOLIDAÇÃO

Nós éramos cinco empregados na loja: o guarda-livros, um homem míope e melancólico, que ficava imóvel, como uma rã, estendido por cima do livro-razão, apenas subindo e descendo levemente devido a uma respiração difícil; em seguida o caixeiro, um homem pequeno, com um grande peito atlético, que só precisava de apoiar uma mão na escrivaninha e saltar sobre ela, bem e com facilidade. Somente a sua cara ficava grave e olhava severamente à sua volta. Depois tínhamos uma empregada de balcão, uma solteirona magra e frágil, com um vestido justo, tendo a maior parte do tempo a cabeça inclinada para o lado sorrindo com os finos lábios da sua grande boca. Eu, o aprendiz, que não tinha muito mais que fazer senão passar com o pano do pó pela escrivaninha, tinha muitas vezes vontade de afagar, ou até mesmo de beijar a mão da nossa solteirona, uma longa mão débil, seca, cor de madeira, quando esta, descuidada esquecida de si mesma, a pousava sobre a escrivaninha, ou – isso teria sido o máximo – deixar o rosto descansar, ali, onde era tão agradável, e apenas mudar de posição aqui e acolá para haver justiça e cada face poder gozar esta mão. Porém, isso não aconteceu nunca, mas antes, quando aproximava, a solteirona esticava essa mesma mão e apontava-me uma nova tarefa, em qualquer canto distante ou em cima do escadote. Esta última era especialmente desagradável, pois lá em cima estava aflitivamente quente por causa das chamas acesas dos candeeiros de gás, os quais nos iluminavam; e como também não estava livre de vertigens, muitas vezes sentia-me lá mal. A pretexto de fazer uma limpeza a fundo, metia a minha cabeça numa prateleira e chorava um bocadinho, ou, quando ninguém olhava para cima, fazia um curto discurso à solteirona, lá em baixo, fazendo-lhe grandes censuras. Na verdade, eu sabia que ela nem por sombras tinha, quer aqui, quer noutro sítio, o poder de decidir, mas, de qualquer maneira, acreditava que ela, se quisesse, podia ter este poder e utilizá-lo a meu favor. Mas, ela não queria, nem sequer utilizava o poder que tinha. Ela era, por exemplo, a única entre o pessoal a quem o moço de recados da loja obedecia um pouco, se não era o mesmo a pessoa mais teimosa de todas. Certamente que era o empregado com mais anos de casa, já servira no tempo do antigo chefe e já tinha aqui passado por tantas coisas, das quais nós não fazíamos qualquer ideia, mas tirou de tudo isto a conclusão errada de que percebia tudo melhor que os outros; por exemplo, não só conseguia fazer a contabilidade tão bem, mas ainda muito melhor do que o guarda-livros, conseguia atender os clientes muito melhor que o caixeiro, e assim por diante, e só de livre vontade é que tinha aceite o lugar de moço de recados, pois não se tinha encontrado mais ninguém, nem sequer um incapaz, para esse lugar. E ele, que não devia ter sido muito forte era apenas um destroço, assim se atormentava já há quarenta anos com os carrinhos de mão, as caixas e os pacotes. Ele tinha aceite livremente o lugar, mas as pessoas tinham esquecido isto, novos tempos tinham vindo, não o reconheciam, e enquanto à sua volta, no emprego, se cometiam enormes erros, ele, sem que o deixassem interferir, tinha que abafar o seu desespero e, além disso, permanecer agarrado ao seu pesado trabalho.


É UMA ORDEM

Segundo a minha natureza, eu só posso cumprir uma ordem que ninguém me tenha dado. Nesta contradição, e apenas em contradição, é que eu posso viver. Mas qualquer uma, pois vivendo morre-se e morrendo vive-se. Assim, o circo, por exemplo é rodeado por uma tenda; por isso, ninguém que não esteja dentro dessa tenda pode ver alguma coisa. Porém, se alguém encontra um buraquinho na tenda, pode ver estando do lado de fora. No entanto, tem que ser tolerado aí. Todos nós somos assim tolerados durante uns instantes. No entanto – segundo no entanto – através de um buraco desses, só se vêem as costas dos espectadores que estão nos lugares de pé. No entanto – terceiro no entanto – ouve-se, de qualquer modo, a música e o rugir dos animais. Até que, finalmente, se cai, morto de susto, nos braços do polícia, devido à sua profissão anda à volta do circo, e que apenas te bateu levemente com a mão no ombro, para te chamar a atenção para a impertinência desse olhar curioso para o qual tu não pagaste nada.

KAFKA, Franz, Os Aeroplanos em Brescia e outros textos (trad. Ana Maria Freire Damião), Lisboa, Edição «Livros de Brasil» Lisboa, 1988, p.p. 163-172.

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