quarta-feira, 16 de setembro de 2009

(…) Hans Castorp entregava-se a profundas investigações; lia, enquanto a lua seguia a sua órbita por cima do vale alpino, cintilante de cristais; lia coisas sobre a matéria organizada, sobre as qualidades do protoplasma, da substância sensível que, entre a composição e a decomposição, se mantém num estranho estado intermédio, e sobre a evolução das suas formas desenvolvidas de tipos originais mas sempre presentes, lia, com insistente interesse, o que os livros diziam sobre a vida e o seu mistério sagrado e impuro.
Que era a vida? Não se sabia. Ela tinha consciência de si mesma, indubitàvelmente, desde que era vida, mas ignorava o que era. Era incontestável que a consciência, como sensibilidade despertava até certo ponto ainda nas fases inferiores, menos adiantadas da vida; não era possível fixar em determinado ponto da sua vida colectiva ou individual a primeira aparição de fenómenos conscientes, e, por exemplo, fazer depender a consciência, da existência de um sistema nervoso. As formas animais inferiores não dispunham de sistema nervoso, e muito menos de um cérebro e no entanto ninguém se atrevia a negar-lhes que possuíssem reflexos. Além disso, podia-se parar a vida, a própria vida, e não sòmente os órgãos particulares da sensibilidade que a constituíam, não sòmente os nervos. Podia-se suspender temporàriamente a sensibilidade de toda a matéria dotada de vida, no reino vegetal tanto como no reino animal; era possível narcotizar ovos e espermatozóides por meio de clorofórmio, de cloral hidratado ou de morfina. A consciência de si era, pois, muito simplesmente uma função da matéria organizada, e num grau mais elevado esta função dirigia-se contra o seu próprio portador, convertia-se na tendência para pesquisar e explicar o fenómeno; tornava-se uma tendência que a tinha suscitado uma tendência cheia de promessas e de desespero da vida para se conhecer a si própria, auto-investigação da natureza, investigação vã em última análise, visto a natureza não se poder resolver em conhecimento, dado que a vida não pode surpreender a última palavra de si mesma.
Que era então a vida? Ninguém sabia. Ninguém conhecia o ponto da natureza donde ela brotava e no qual se acendia. A partir desse ponto, nada havia que fosse espontâneo; mas a própria vida surgia bruscamente. A única coisa que se podia, talvez, afirmar a seu respeito, era que a sua estrutura devia ser de tal modo evoluída que não tinha, nem de longe, igual no mundo inanimado. Entre o pseudópodo da amiba e o animal vertebrado, a distância era insignificante, desprezível, em comparação com aquela que existe entre o fenómeno mais simples da vida e esta natureza que nem sequer merecia ser qualificada de morta, uma vez que era inorgânica. Pois que a morte não era senão a negação lógica da vida; mas entre a vida e a natureza inanimada abria-se um abismo que a ciência em vão tentava atravessar. Alguns esforçavam-se por o circunscrever por meio de teorias que ele sorvia sem nada perder da sua profundidade nem da sua extensão. Para estabelecerem um laço, haviam-se perdido na hipótese contraditória de uma matéria viva incompleta, de organismos não organizados, que se condenavam por si mesmos na solução de albumina, como o cristal na água-mãe, embora, na realidade, a diferenciação orgânica constituísse a condição primeira e a manifestação de toda a vida, e posto que não se conhecesse nenhum ser vivo que não devesse a sua existência a uma concepção. O triunfo com que se saudara o protoplasma primevo, pescado nas profundezas do mar, transformara-se em confusão. Demonstrou-se que haviam sido confundidos depósitos de gesso com protoplasma. Mas os cientistas, para não se deterem à frente do milagre – porque a vida a compor-se dos mesmos elementos e a decompor-se nos mesmos elementos que a natureza inorgânica, sem formas intermédias, seria um milagre – viram-se, contudo, forçados a admitir uma concepção inicial, isto é, que o orgânico nascia do inorgânico o que, aliás, era igualmente um milagre. Destarte continuaram a admitir-se graus intermediários e uma solução de continuidade, a supor a existência de organismos inferiores a todos os que se conheciam, mas que, por sua vez, tivessem como predecessores esboços de vida ainda mais primitivos, protozoários que ninguém veria jamais porque eram de uma pequenez inframicroscópia, e antes de cujo suposto nascimento devia ter-se produzido a síntese das combinações de albumina… (…)

in Montanha Mágica, Thomas Mann.

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