quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A decadência do Ocidente

Mário Vargas Llosa

“(...) A análise de Kagan está correcta? Não estou certo de que a sociedade norte-americana seja tão unânime e granítica no seu apoio a essas «políticas de poder», como assegura, tratando de estabelecer uma identidade de acções diplomáticas - ainda que com uma retórica diferente - dos governos democratas e republicanos. Os objectivos geopolíticos que ele esboça para os Estados Unidos exigem um armamento tão sistemático e dispendioso que, provavelmente, mais cedo ou mais tarde atingiriam com tal violência os bolsos dos contribuintes que a opinião pública exigiria uma mudança de política. E também não me parece certo que haja na Europa uma hostilidade tão generalizada contra os Estados Unidos nem um pacifismo tão extremo que chegue a pô-la de joelhos frente a qualquer estado tirano ou ao terrorismo internacional.
Estes esquemas, parece-me, espelham mais desejos do que realidades. Mas é, sem dúvida, certo que, acostumada aos altos níveis de vida que conseguiu, a opinião pública europeia dificilmente aceitaria renunciar ao Estado de bem-estar a pagar mais impostos - já os paga altíssimos – para que os governos incrementem os seus gastos militares. Afortunadamente que assim é. Em boa hora a Europa renunciou às «políticas de poder», que teriam convertido o Velho Continente num paiol nuclear de cidadãos subdesenvolvidos e que isso a induza a orientar a sua diplomacia a favor da negociação, dos consensos internacionais e da paz. Mas daí a que a «velha Europa», letárgica devido à complacência consumista e ao Estado pródigo, tenho perdido tanto nervo e convicção democrática de modo a que, no dia de amanhã, se deixe arrolar por qualquer sátrapa equipado com foguetes ou armas químicas é ir longe demasiado longe no pessimismo. Se a União Europeia for em frente - a guerra do Iraque semeou o caminho com novos escolhos, mas não cancelou – o seu sistema de defesa, sem necessidade de a arrastar para uma competição inútil com os Estados Unidos, deveria imunizá-la contra esse risco, aceitando aquela distribuição do trabalho estratégico que Kagan descreve certeiramente. A aliança atlântica, fragilizada neste momento pela torpe manifestação oportunista de anti-americanismo dos governos de Chirac e Schroeder, deverá restabelecer no futuro, quando, apagados os ecos da guerra do Iraque, e tirando a Europa as conclusões pertinentes do alvoroço com que milhões de iraquianos celebraram a queda de Saddam Hussein, tome consciência do indispensável que é aquela aliança para a sua segurança, num mundo ainda cheio de ciladas e de riscos para os países democráticos.
Será verdade que os Estados Unidos podem prescindir da Europa sem que isso signifique para eles uma quebra importante no âmbito militar ou económico? Talvez. Mas eu creio que não no político. Sem a aliança com a Europa Ocidental – e o freio amistoso no campo internacional que ela implica -, o mais precioso que o colosso do norte tem, essa cultura democrática com o poderio que a converteu na superpotência mundial, sofreria uma deterioração e, talvez desmoronasse. Algum deste perigo assoma do fluente ensaio de Robert Kagan quando explica tranquilamente porque é que os Estados Unidos tendem a desconfiar cada vez mais das Nações Unidas e se negam a enquadrar as suas políticas dentro de instituições internacionais como o Acordo de Quioto sobre o Meio Ambiente ou o Tribunal Penal Internacional. Um tal unilateralismo pode desgastar as instituições e fazer deslizar os Estados Unidos por uma colina que destrua o Estado de Direito. É verdade que os Estados Unidos são uma sociedade democrática, mas, pelo rígido caminho das «políticas de poder», essa democracia crispada, beligerante e arrogante, poderia entrar na bancarrota mais cedo que o esperado. Porque a democracia não implica apenas que haja eleições e que o equilíbrio de poderes e a liberdade de expressão funcionem para consumo interno; é necessário também que no entrançado das relações com os restantes países prevaleça a mesma soma de valores, liberdades e direitos que constituem a cultura da liberdade. Isso não quer dizer que, em nome remoto do ideal kantiano de uma paz universal, uma democracia deva tornar-se vulnerável ao terror ou à chantagem das tiranias com armas nucleares. Mas se o pragmatismo e a força são o único motor dos seus governos, uma democracia deixa rapidamente de o ser e, ainda que conserve um exterior de país livre, converte-se internamente numa sociedade autoritária. A aliança do superpoder com a velha Europa, berço da liberdade e da legalidade à qual o mundo deve o melhor que lhe aconteceu, é, precisamente agora que os Estados Unidos são um superpoder sem concorrentes próximos, a melhor maneira de manter na boa tradição de Washington e Jefferson, que Tocqueville tanto exaltou, e não se deixar ir pela arrogância e pela cegueira do poder ilimitado – deixando contaminar pela natureza do inimigo com o que justifica a prepotência e os excessos. O realismo hobbesiano só é justificável como uma necessidade transitória no áspero caminho em direcção ao ideal kantiano de um mundo pacificado e solidário, coexistindo no marco da lei e da liberdade.”

in DNa

Nenhum comentário: