quarta-feira, 16 de setembro de 2009

DERSU UZALA – DERUSU - USARA
DERSU UZALA, A ÁGUIA DAS ESTEPES



"A recepção desastrosa que teve Dodeskaden (talvez o maior fracasso da carreira de Kurosawa) teve graves consequências na vida do realizador acabando por marear o fim de uma fase da sua carreira. Aliás esse fim é paralelo de grandes transformações nos meios de comunicação em todo o mundo, mas que no Japão teve efeitos bastante graves no campo da produção cinematográfica. A quebra no número de espectadores provocada pela televisão foi, neste país, de particular importância pois era também um de maior número de espectadores. É evidente que isto, por si só, não foi responsável pelo desastre de Dodeskaden, mas explica grande parte dele. Porém, se o drama era geral no campo da produção, para Kurosawa foi mais grave porque desde há algum tempo se assumira como produtor dos seus próprios filmes. 0 desastre de Dodeskaden representou quase a sua ruína, provocando-lhe uma depressão psicológica que o levou à beira do suicídio. Durante dois anos Kurosawa julgou-se "arrumado", tanto mais que as companhias de produção que continuavam a laborar não ousavam arriscar o seu dinheiro com as "extravagâncias" do velho "imperador". Mas em 1972 recebeu um recado do cineasta soviético Guerassimov, convidando-o a trabalhar no seu país. Desconfiado, primeiro, do sistema de co-produção, Kurosawa acabou por aceitar quando lhe foi garantida liberdade total para o seu projecto, que acabou por representar, para o realizador, um "regresso" à sua juventude, ao escolher um romance de viagens que lera em adolescente, Dersu Uzala, do capitão VIadimir Arseneiev, onde este descreve o seu encontro com um singular habitante da estepe aquando das suas viagens de exploração nas regiões do Oussouri. 0 filme foi um triunfo, conquistando o Oscar para o melhor filme estrangeiro desse ano e mareou a ressurreição de Kurosawa no plano internacional. George Lucas e Francis Coppola ajudá-lo-iam a desbloquear a produção de Kagemusha, que entretanto substituira o seu ambicioso Ran, que capitais franceses, anos depois, permitiriam que se concretizasse.
Dersu Uzala marca, portanto, o início de urna nova carreira de Kurosawa. E com ela, também, um novo tipo de preocupações, a intenção objectiva de "dizer" alguma coisa, transmitir uma mensagem. Afinal, a sua obsessão de Akahige, que terá contribuído para a desastrosa carreira do filme, afirma-se com mais força e alguns filmes como Rapsódia em Agosto só ultrapassam esse obstáculo graças a um genial sentido de mise-en-scène e à poesia das suas imagens. Dersu Uzala está marcado pelas mesmas intenções. Contudo, no seu caso, elas apenas são visiveis a um segundo nível de leitura. 0 que primeiro se destaca deste belíssimo filme é a força das imagens onde a paisagem agreste é o verdadeiro personagem e, por conseguinte, Dersu, que nos surge como uma sua emanação. Só subliminarmente (o seu destino confundido com o da paisagem, e a sua morte coincidindo com o fim daquela região selvagem) o filme de Kurosawa encena a sua "mensagem" ecológica. Antes de mais é a história de uma aprendizagem, e, deste modo, Dersu Uzala junta-se aos clássicos do realizador como Os Sete Samurais e por extensão ao western clássico. Os personagens de Dersu e Arseniev prolongam os do samurai velho e o seu jovem discípulo naquele filme, sendo o primeiro o mestre, cuja experiência lhe permite ler sinais que passam despercebidos ao outro. Mas Dersu é um personagem mais singular, com o seu marcado primitivismo e as suas crenças anímicas. Para ele toda a natureza é um conjunto de seres vivos, o fogo, a água, o Sol e a Lua, todos são "seres" sujeitos aos mesmos caprichos dos humanos e com os quais é possível dialogar, senão mesmo invectivar. É este instinto que lhe permite conhecer a taiga, mas a sua sobrevivência depende do equilíbrio e do respeito por ela. Não se mata por prazer mas apenas por necessidade, nada se destrói ou desperdiça e é preciso pensar nos outros para que esse equilíbrio permaneça (o ritual da comida, sal e fósforos deixados na cabana deserta para outro possível hóspede). Por isso, Dersu é incapaz de se adaptar à vida na cidade, para onde o leva o seu amigo Arseneiev, quando confrontado com a sua perda de visão, o início das perdas das suas faculdades de sobrevivência que, de certo modo é, para ele, como um castigo dos deuses por ter quebrado a harmonia ao matar o tigre. Incapaz de se adaptar às regras da economia de compra e venda, ele que sempre vivera num regime de subsistência e de troca, sem entender o sentido do dinheiro (a narrativa sobre o comerciante que lhe rouba o dinheiro das peles, espantando-se com o seu comportamento). Por isso, também, ele será vítima dessas regras onde impera a rapina (assassinado para lhe roubarem a espingarda de último modelo, presente de despedida de Arseneiev).
Mas a "mensagem" ecológica e a apologia do "bom selvagem" passa para segundo plano perante a grandeza da encenação e a exploração, pela câmara de Kurosawa, dos elementos naturais, em particular na excelente sequência da tempestade na taiga onde, numa corrida contra o tempo, Dersu e Arseneiev, constroem de forma rudimentar um abrigo contra o vento gelado. É um filme também, por onde passa um toque de magia, aquela que a natureza desconhecida sempre inspira nos que a cruzam, acordando instintos primordiais, em particular na fabulosa sequência do encontro de Dersu e Artseneiev, numa noite em que as chamas da fogueira constroem na paisagem figuras fantasmagóricas que se recortam nos ramos das árvores, a paisagem de uma "noite de Walpurgis (noite de bruxas) como evoca Arsenciev, antes de um ruído lançar um alerta. Algo se aproxima e um grito ecoa: "Não disparem. É um homem", diz uma voz que se verá ser a de Dersu. Naquela simples apresentação, "um homem" se concentra todo o universo, porque Dersu é a materialização da própria natureza."

M.C.F.

in AKIRA KUROSAWA, “As Folhas da Cinemateca”, Lisboa,Ministério de Cultura, 2001, p.p. 88-90.

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