quarta-feira, 16 de setembro de 2009

“É muito fundo o poço do passado. Não seria melhor dizermos que é um poço sem fundo?
Sim, um poço sem fundo, se o passado a que nos referimos (e talvez só neste caso) é o da espécie humana, a enigmática essência de que fazem parte as nossas existências, naturalmente insatisfeitas e sobrenaturalmente desditosas. O mistério dessa enigmática essência abrange sem dúvida, o nosso próprio mistério – é o alfa e o ómega de todos os nossos problemas – ligado estreitamente a tudo o que dizemos, dando uma significação a todos os nossos esforços. Quanto mais fundo sondamos, quanto mais longe buscamos o mundo inferior do passdo, mais as remotas origens da humanidade, a sua história e a sua cultura se nos revelam imprescutáveis. Quanto mais longe nos aventuramos nas sondagens, mais distante nos parece o fundo do poço e, à medida que vamos descobrindo novos pontos de apoio e atingindo aparentes metas, mais longe temos de levar a nossa sonda, que se estira e aprofunda cada vez mais, como se tudo quanto encontramos de investigável estivesse preparado para zombar das nossas laboriosas pesquisas, tal como um navegador que segue ao longo da costa e não pode prever o termo da viagem. Após cada descoberta, ele avista inesperadamente, por trás de um promontório, outro promontório, e assim se vê forçado a cobrir novas distâncias.
Há portanto origens provisórias constituídas praticamente, efectivamente, pelos primórdios da tradição especial mantida por determinada comunidade, por um povo, ou uma simples crença de família, e a memória, embora certa de que as profundezas não estão suficientemente sondadas, fia-se nessas origens.
O jovem José, por exemplo, filho de Jacob e da formosa Raquel que tão cedo largou para o Oeste, viveu quando em Babel reinava Carigalzu, o Cassita, senhor das Quatro Regiões, rei da Suméria e da Acádia, altamente suave ao coração de Bel-Marduk, soberano severo e pomposo, cuja barba caía em canudos tão regularmente alinhados que lembravam uma legião de escudeiros em parada.
José viveu quando em Tebas, terra a que ele dava o nome de «Mizraim» e também de «Kemt, o Negro», Sua Santidade o bom Deus, cognominado «Amun está satisfeito», terceiro do mesmo nome, filho querido do próprio Sol, brilhava no horizonte do seu palácio, ofuscando os olhos maravilhados de seus vassalos nascidos no pó. Viveu na época em que Assur crescia em poderio, graças aos seus deuses e à grande estrada rente ao mar, que se estendia desde Gaza até aos desfiladeiros das montanhas de cedros, por onde as régias caravanas iam e vinham, da corte do País dos Rios à do Faraó, carregadas de lápis-lazúli e barras de ouro. (…)

Em conclusão, José (e pela quinta ou sexta vez repito o nome dele com prazer, porque há mistério nos nomes e estou em crer que o de José outorga poderes para evocar essa personalidade tão viva e tão falada noutras eras ainda que depois esmaecida pela voragem do tempo), José, por seu lado, considerava uma certa cidade da Babilónia Meridional chamada Uru, à qual na sua língua o nome Ur Kasdim, a Ur dos Caldeus, como o princípio de todas as coisas, isto é, de todas as coisas que lhe diziam respeito.”

MANN, Thomas (trad. Elisa Lopes Ribeiro), “José e Seus Irmãos”, I Vol., Lisboa, Edição «Livros do Brasil» Lisboa, s.d. p.p. 13-15.

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