quarta-feira, 16 de setembro de 2009

“Havia ou não uma guerra dos Balcãs? Tivera lugar uma intervenção, isso era certo; mas ele não sabia se se tratava de uma guerra. Muitas coisas estavam agitando a humanidade. Fora batido o recorde de altitude em avião: um belo feito. Se não estava em erro a tabela estava agora em 3700 metros e o homem chamava-se Jouhoux. Um boxeur negro vencera o campeonato mundial e arrebatara o título: o seu nome era Johnson. O presidente da República Francesa ia à Rússia: dizia-se que a paz estava ameaçada. Um tenor, descoberto havia pouco, ganhava na América do Sul quantias que a própria América do Norte desconhecida. Um terramoto tremendo enlutara o Japão: pobres japoneses. Numa palavra, estavam-se passando muitas coisas, vivia-se uma época agitada, fins de 1915 princípios de 1914 [sic]. Porém, dois ou três anos antes vivera-se também uma época agitada, cada dia tivera as suas emoções e, apesar de tudo, já ninguém se lembrava, ou quase, do que se passara então. Podia-se fazer um relatório a tal respeito. O novo remédio contra a sífilis tivera… As investigações acerca do metabolismo vegetal parece que… A conquista do pólo Sul afigura-se… As experiências de Steinnach despertam…; era possível suprimir assim metade dos dados, isso não tinha grande importância. Que engraçada, a História da História! Podia-se afirmar com certeza que este ou aquele acontecimento encontrara ou iria encontrar nela o seu lugar: mas que tal acontecimento se houvesse realmente passado, disso ninguém estava certo. Porque, para que um acontecimento tenha lugar, é preciso que ele sucede em determinado ano e não noutro; e é preciso ainda que seja esse acontecimento e não outro parecido. Ora, é precisamente isso que ninguém pode exigir da História, a menos que seja a própria pessoa a escrevê-la, como fazem os jornalistas, ou então que se trate de assuntos profissionais ou financeiros; é importante, claro está, saber-se dentro de quantos anos se terá direito à reforma ou em que momento possui ou se irá gastar uma determinada soma; desse ponto de vista as pr´prias guerras podem tornar-se memoráveis. (…)

Que ideia louca tivera a pequena Clarisse de fazer um Ano do Espírito! Concentrou a sua atenção neste ponto. Por que motivo isso se lhe afigurava tão absurda? Também se podia perguntar por que razão a Acção patriótica de Diotima era absurda.
Resposta número um: porque a História universal não nasce indubitavelmente, senão da mesma forma que as outras histórias. Os autores, incapazes de levantarem nada de novo, copiam-se uns aos outros. Por essa razão todos os homens políticos estudam a história e não a biologia ou qualquer outra ciência desse género. Isto quantos aos autores.
Número dois: no entanto, na sua maior parte, a história nasce sem autores. Ela não nasce do centro, mas sim da periferia, suscitada por causas menores. Não é preciso uma transformação tão grande como se julga para fazer do homem medieval ou do grego clássico o homem civilizado do século XX. O ser humano, com efeito, tanto pode comer outros homens como escrever a Crítica da Razão Pura; com as mesmas convicções e as mesmas qualidades se as circunstâncias o permitem, ele poderá fazer uma e outra coisa e as grandes diferenças exteriores ocultam outras diferenças mínimas no interior.
Digressão número um: Ulrich recordou-se de uma experiência semelhante, dos seus tempos da tropa: o esquadrão avança em filas de dois a dois e exercita-se a transmitir ordens; isto é, a ordem circula de homem, a meia voz; e se a ordem à partida era: «Marcha o cabo à frente da coluna!», no fim acaba por ser transmitido: «Marcha à frente o coronel!» ou qualquer coisa no género. A história universal escreve-se da mesma maneira.
Resposta número três: se portanto transplantássemos uma geração de europeus actuais, de tenra idade, para o Egipto do sexto milénio e ali abandonássemos, a História universal recomeçaria no ano 5000 e repetir-se-ia durante um certo tempo: depois, por motivos desconhecidos de todos, começaria pouco a pouco a desviar-se.
Digressão número dois: o princípio da História universal, lembrava-se agora, não era mais do que o velho princípio político do ramerrão da Cacânia. A Cacânia era um estado superiormente inteligente.
Digressão número três (ou resposta número quatro?): por consequência, a trajectória da História não é a das bolas de bilhar que, uma vez lançadas, percorrem um caminho definido; lembra antes o movimento das nuvens, o trajecto de um homem errando pelas ruas, intimidado aqui por uma sombra, ali por um grupo de basbaques ou por uma estranha combinação de fachadas e que acaba por ir parar a um sítio desconhecido, para o qual não pensava dirigir-se. O caminho da História é, muitas vezes, um equívoco. O presente representa sempre a derradeira casa de uma cidade, aquela que, de certo modo, já não faz parte do aglomerado. Cada nova geração pergunta, admirada: quem sou eu?, quem eram os meus predecessores? Faria melhor em perguntar onde estou eu? E em supor que os seus predecessores não são outros diferentes dela, mas sim que se encontravam noutro lugar; isso seria um grande passo… cogitou.” (…)

MUSIL, Robert, “O Homem Sem Qualidades” (trad. DR. Mário Braga), Vol. II, Lisboa, Edição «Livros do Brasil» Lisboa, s.d., p.p. 55-58.

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