segunda-feira, 18 de maio de 2020

O sal da língua






Escuta, escuta: tenho ainda

uma coisa a dizer.

Não é importante, eu sei, não vai

salvar o mundo, não mudará

a vida de ninguém - mas quem

é hoje capaz de salvar o mundo

ou apenas mudar o sentido

da vida de alguém?

Escuta-me, não te demoro.

É coisa pouca, como a chuvinha

que vem vindo devagar.

São três, quatro palavras, pouco

mais. Palavras que te quero confiar,

para que não se extinga o seu lume,

o seu lume breve.

Palavras que muito amei,

que talvez ame ainda.

Elas são a casa, o sal da língua.

Eugénio de Andrade


"Comunistas. Até então eu nunca me importara com comunistas. Aliás, nem sabia direito quem eram. Associava-os vagamente a assassinatos, violência, fome, Cuba, China... Pelo que o meu pai falava, eles deviam estar a ponto de dominar o país. Aí então iriam fechar as igrejas, dividir nossas casas com vagabundos, implantar uma feroz disciplina. Não me agradava sobretudo este último aspecto. Dividir a casa com vagabundos? O único vagabundo que eu conhecia – e o único da cidade inteira – era seu Melquides, o homem do saco de minha infância, que dormia de favor nos sítios das redondezas, nos fundos da olaria, na porta da igreja, debaixo da marquise do cartório, que carpia terrenos ou varria calçadas em troca de um prato de comida, que dispunha de um arsenal incrível de causos absurdos com os quais fazia gargalhar a piazada na praça da cidade, agora que eu, crescido, via que ele não era nenhum bicho-papão. Se ele tomasse um bom banho e tirasse aquela craca do corpo, eu até que não me importaria em dividir a casa com ele. E quanto a fechar igrejas, eu até achava bom. Aborrecia-me na missa aos domingos e não adiantara nada, por conta do Concílio Vaticano II, a liturgia ter passado a ser em vernáculo. Enfim, os comunistas não eram uma grande ameaça para mim. Mas o mesmo não se podia falar de meu pai, que vira as reformas de base propostas pelo presidente João Goulart como a porta de entrada do bolchevismo. Na cidade, graças a Deus, não houve nenhuma Marcha da Família com Deus pela Liberdade, mas se realizaram algumas fastidiosas vigílias na igreja matriz às quais o meu pai me levara arrastado. De ouvido grudado no velho rádio valvulado, ele acompanhava os sermões do padre Peyton e os programas do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD). Assim, foi um alívio para ele quando, no dia 31 de março, ouviu que as tropas do general Olympio Mourão Filho marchavam de Juiz de Fora rumo ao Rio de Janeiro. Chegou a se emocionar com as marchas e dobrados militares que infestaram as rádios por um tempo. Para mim até que não foi mal: três dias de recesso escolar. Tirando um ou outro professor desligado da escola, nem minha rotina nem a da cidade sofreram alteração relevante. Agora, conversando com Adrian, meus olhos se abriam: descobria que o mundo, para além dos estreitos limites daquela cidadezinha, estava dividido entre progressistas e reacionários, oprimidos e opressores, aqueles que lutavam pelo avanço da humanidade e aqueles que se serviam de todos os estratagemas para detê-lo – e os milicos não estavam entre os primeiros."

Otto Leopold Winck.  De "Que fim levaram todas as flores":

Constituição francesa de 1793


"Quando o governo viola os direitos do povo, a insurreição é o mais sagrado dos direitos e o mais indispensável dos deveres".

Está difícil acompanhar todas as falas e besteiras do Bolsonaro e do Mourão por dia


"Está difícil acompanhar todas as falas e besteiras do Bolsonaro e do Mourão por dia. Estão levando uma surra do coronavírus e na linguagem militar, a única em que suas limitadas mentes captam, não podem mais avançar e nem recuar porque estão sendo batidos juntos com seus empresários e parlamentares de direita, de maneira contundente. Se pensam que seriam Pinochet em 73, Videla em 76, a junta de 69, esqueçam porque a história acontece como tragédia e se repete como farsa. O golpe militar já foi dado em 2016 com Villas Boas e os togados, agora só lhes resta a administração final da massa falida deste mesmo golpe. O que eu escrevo há tempos, a atual geração de direita sentirá saudades da queda livre do general Figueiredo comparada com a queda dos atuais debi e lóide pela própria força da gravidade deles, sem maiores forças externas além da própria incompetência e burrice deles próprios, após serem derrotados pelo coronavírus em questão de tempo. O bolsonarismo será a Malvinas da direita militar brasileira, como já escreveram e pode virar até mesmo um Stalingrado deles, cairão pela própria pretensão de superioridade quando já estão completamente cercados e na defensiva, sem opções."
Ricardo Costa de Oliveira


"Durante muito tempo tomei minha pena por uma espada: agora, conheço nossa impotência. Não importa: faço e farei livros; são necessários; sempre servem, apesar de tudo. A cultura não salva nada nem ninguém, ela não justifica. Mas é um produto do homem: ele se projeta, se reconhece nela; só este espelho crítico lhe oferece a própria imagem."
Jean Paul Sartre


"Num entardecer lilás caminhei com todos os músculos doloridos entre as luzes da 27 com a Welton no bairro negro de Denver, desejando ser um negro, sentindo que o melhor que o mundo branco tinha a me oferecer não era êxtase suficiente para mim, não era vida suficiente, nem alegria, excitação, escuridão, música, não era noite o suficiente. Parei num pequeno quiosque onde um homem vendia chili apimentado em embalagens de papel; comprei alguns e comi percorrendo ruas escuras e misteriosas. Desejava ser um mexicano de Denver, ou mesmo um pobre japonês sobrecarregado de trabalho, qualquer coisa menos aquilo que eu tão aterradoramente era, um 'branco' desiludido."
Jack Kerouac, 'On The Road'

Parem o Brasil que eu quero descer!



"Até anteontem eu tinha sido poupado do conhecimento da existência de Italo Marsili. É um psiquiatra que ganhou certa notoriedade nos círculos da extrema-direita mais desvairada, em particular no olavocatolicismo. Num episódio que causou reboliço, mas que tinha passado batido para mim, ele se gabou que tinha "curado" um pedófilo mandando-o procurar prostitutas com aspecto infantil.
Acho que isso basta para ver a laia do sujeito.
Agora, ele, que se autointitula "o médico mais famoso do Brasil", o que por si só já indica um distúrbio de autoimagem meio sério, está em campanha para ser o novo ministro da Saúde. Alardeia sua lealdade canina a Bolsonaro como principal atributo. É uma palhaçada, claro - nem Bolsonaro terá coragem de colocar um clone de Weintraub no Ministério da Saúde em meio à pandemia. Mas ganhou reforço de olavetes, imagino que também de alguns robôs, e chegou aos trending topics do Twitter.
Supus que ele tinha um currículo pífio, como é a regra com esse pessoal. Mas não. Tá lá no Lattes: ele não apenas assistiu a várias palestras como morou com Olavo na Virgínia. Morou! Sob o mesmo teto!
Eu entendo a lógica: co-habitação = osmose. Só não sei como isso o credencia para ministro da Saúde. Se ele estivesse buscando um cargo nas áreas de astrologia, picaretagem ou mau-caratismo, aí sim."
Luis Felipe Miguel

sábado, 9 de maio de 2020

Milicianos e vampiros contra a vida !


 A cena do dia foi a visita de Bolsonaro, Guedes e burgueses ao STF para intimidarem os togados de supetão. Não lembro de outro débil presidente da República, com seu fraco ministro ameaçado de queda, jamais terem atravessado a Praça com um apavorado lobby patronal para intimidar um assustado STF, enquanto despachantes de interesses empresariais. A lista dos burgueses só revela setores industriais como aço, plástico, têxtil, máquinas, cimento, elétrica, farmacêutica, brinquedos, química, calçados, veículos, ninguém do essencial setor de alimentos, comida, supermercados e do abastecimento estava lá, os que continuam lucrando e funcionando no meio da pandemia como serviços essenciais. O desespero dos burgueses, industriais e financeiros, é que acabou o imenso lucro imediato e diário deles, ainda que momentaneamente e não estão interessados na vida e na saúde dos outros, não se importam com a vida e a saúde dos trabalhadores, dos idosos, dos frágeis de saúde e da população em geral, só querem lucrar ao máximo, se entupirem de dinheiro, sempre agem como "vampiros", como escreveu o maior cientista social do século XIX: - "o capital tem um único impulso vital, o impulso de se valorizar, de criar mais-valia, de sugar a maior massa possível de sobretrabalho com a sua parte constante, os meios de produção. O capital é trabalho morto que apenas se anima, à maneira de um vampiro, pela sucção de trabalho vivo, e que vive tanto mais quanto mais dele sugar. O tempo durante o qual o operário trabalha é o tempo durante o qual o capitalista consome a força de trabalho por ele comprada. Se o operário consome o seu tempo disponível para si próprio está a roubar o capitalista" (Marx - O Capital. Crítica da Economia Política. Livro Primeiro: O processo de produção do capital. Terceira Secção: A Produção da mais-valia absoluta. Oitavo capítulo: O dia de trabalho).

RCO


Os bolsonaristas cometem os mais graves crimes de responsabilidade, crimes contra a segurança nacional, crimes em vários artigos do código penal, apologia ao crime, ameaças de violência dos "soldados do Brasil", uso de bandeiras estrangeiras no Palácio do Planalto, tentativa de ucranização da Winter, causar e propagar epidemia mediante a propagação de germes patogênicos, nomear em reunião ministerial o STF como "onze filhos da puta" e não acontece nada ! Saudades do tempo em que uma fictícia "pedaladinha fiscal" ou um falso "triplex" provocavam um impeachment e não podiam nem dizer que tinha sido golpe porque magoava, Dilma Rousseff foi formalmente notificada pelo STF em maio de 2016 somente por ter falado o termo “golpe de Estado” para se referir ao impeachment !
RCO

Löwy sobre o "mito mitomano "




"Post Scriptum: Em 20 de abril Bolsonaro fez uma declaração significativa. Disse que cerca de “70% da população vai ser contaminada pela covid-19, isto é inevitável” Claro, seguindo a lógica da “imunização de grupo” (proposta inicial de Trump e Boris Johnson, depois abandonada), isto talvez pudesse acontecer. Mas só seria “inevitável” se Bolsonaro conseguisse impor sua política de recusa das medidas de confinamento: “o Brasil não pode parar”.
Quais seriam as consequências? A taxa de mortalidade da covid-19 no Brasil atualmente é de 7% das pessoas contaminadas. Um pequeno cálculo aritmético levaria à seguinte conclusão: (1) Se 70% da população brasileira fosse contaminada seriam 140 milhões de pessoas. (2) 7% de mortalidade de 140 milhões dá uns 10 milhões. (3) Se Bolsonaro conseguisse impor sua orientação, o resultado seriam dez milhões de brasileiros mortos.
Isto se chama, na linguagem penal internacional, genocídio. Por um crime equivalente, vários dignitários nazistas foram condenados à forca pelo Tribunal de Nuremberg."
Via Roberto Pereira

"Post Scriptum: Em 20 de abril Bolsonaro fez uma declaração significativa. Disse que cerca de “70% da população vai ser contaminada pela covid-19, isto é inevitável” Claro, seguindo a lógica da “imunização de grupo” (proposta inicial de Trump e Boris Johnson, depois abandonada), isto talvez pudesse acontecer. Mas só seria “inevitável” se Bolsonaro conseguisse impor sua política de recusa das medidas de confinamento: “o Brasil não pode parar”.
Quais seriam as consequências? A taxa de mortalidade da covid-19 no Brasil atualmente é de 7% das pessoas contaminadas. Um pequeno cálculo aritmético levaria à seguinte conclusão: (1) Se 70% da população brasileira fosse contaminada seriam 140 milhões de pessoas. (2) 7% de mortalidade de 140 milhões dá uns 10 milhões. (3) Se Bolsonaro conseguisse impor sua orientação, o resultado seriam dez milhões de brasileiros mortos.
Isto se chama, na linguagem penal internacional, genocídio. Por um crime equivalente, vários dignitários nazistas foram condenados à forca pelo Tribunal de Nuremberg."

Michael Löwy


El suicida



Enrique Anderson Imbert

Al pie de la Biblia abierta -donde estaba señalado en rojo el versículo que lo explicaría todo- alineó las cartas: a su mujer, al juez, a los amigos. Después bebió el veneno y se acostó.

Nada. A la hora se levantó y miró el frasco. Sí, era el veneno.

¡Estaba tan seguro! Recargó la dosis y bebió otro vaso. Se acostó de nuevo. Otra hora. No moría. Entonces disparó su revolver contra la sien. ¿Qué broma era ésa? Alguien -¿pero quién, cuándo?- alguien le había cambiado el veneno por agua, las balas por cartuchos de fogueo. Disparó contra la sien las otras cuatro balas. Inútil. Cerró la Biblia, recogió las cartas y salió del cuarto en momentos en que el dueño del hotel, mucamos y curiosos acudían alarmados por el estruendo de los cinco estampidos.

Al llegar a su casa se encontró con su mujer envenenada y con sus cinco hijos en el suelo, cada uno con un balazo en la sien.

Tomó el cuchillo de la cocina, se desnudó el vientre y se fue dando cuchilladas. La hoja se hundía en las carnes blandas y luego salía limpia como del agua. Las carnes recobraban su lisitud como el agua después que le pescan el pez.

Se derramó nafta en la ropa y los fósforos se apagaban chirriando.

Corrió hacia el balcón y antes de tirarse pudo ver en la calle el tendal de hombres y mujeres desangrándose por los vientres acuchillados, entre las llamas de la ciudad incendiada.

FIN

17 Mar 2006

Biblioteca Digital Ciudad Seva

Manifestação dos enfermeiros e profissionais de saúde é agredida em Brasília pelas milícias bolsonaristas.


"Manifestação dos enfermeiros e profissionais de saúde é agredida em Brasília pelas milícias bolsonaristas. Se os profissionais de saúde, os enfermeiros, os médicos, tivessem entendido porque os professores e intelectuais de humanas eram agredidos durante o golpe de 2015/2016 pelas mesmas hordas bolsonaristas que hoje os agridem. Se Gilmar Mendes tivesse declarado há 5 anos o que disse hoje, que o lavajatismo é a 'mãe do bolsonarismo'. Se estes grupos da sociedade, os juristas do STF, os jornalistas que apoiaram ou fizeram corpo mole durante o golpe e se ferraram na ascensão do bolsonarismo, os acadêmicos que dormiram durante o golpe e acordaram no meio do pesadelo ignaro e anticientífico do Weintraub, se os que hoje se afastam da pestilência bolsonarista, se todos eles tivessem entendido há cinco anos que tudo era parte do golpe e que a farsa a jato sempre foi um partido político de extrema-direita criado pela mídia, nunca foi nenhuma renovação moralizadora e nem salvadora, não estaríamos coletivamente na grave crise de saúde, na crise política, na crise econômica, na crise cultural, na crise educacional, na crise moral que estamos hoje em dia. Quem não fez nada há cinco anos hoje também tem que correr atrás do prejuízo."
rco

ADIAMENTO


 - Álvaro de Campos


Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...
O porvir...
Sim, o porvir...

Pode a atual Rússia comemorar plenamente o Dia da Vitória, 9 de maio ?


 Aquela foi uma vitória da União Soviética, de Stalin e qualquer especialista em história militar sabe o preço pago em dezenas de milhões de vidas militares e civis na derrota do nazifascismo. A atual Rússia está mais uma vez cercada e ameaçada com a perda do controle do Báltico, da Ucrânia, do Cáucaso, da Ásia Central. Se ainda tem armas de ponta é por causa da herança militar soviética. Em termos geopolíticos o que foi duramente conquistado em 1945 se perdeu em 1991. As antigas fronteiras czaristas e soviéticas recuaram, o que é uma derrota considerada como um dos piores desastres geopolíticos da história russa. A situação de crise na União Soviética não significou uma nova Rússia capitalista, rica e estável, pelo contrário a sociedade russa parece ter voltado mais de cem anos com a formação de poderosas e corruptas oligarquias organizadas no controle dos vastos recursos naturais russos. Stalin foi um dos mais implacáveis comandantes militares da história, comparável somente a poucos outros, como a um Alexandre o Grande, muito superior ao derrotado Napoleão. Stalin comandou de maneira autocrática a modernização soviética, a industrialização, eletrificação e quando morreu em pleno poder viu a mudança política e militar ocorrida desde a Alemanha Oriental até a China. Não haverá outro assim em mil anos. Recomendo a reflexão no filme  Enemy at the Gates - Círculo de Fogo - mostrando a realidade do soldado soviético e o filme Cross of Iron - Cruz de Ferro - sobre a realidade do soldado alemão, na verdade ambos filmes mostram um grande debate sobre a ética profissional, a verdadeira nobreza nas ações, a dedicação, o senso de dever e a coragem em momentos dramáticos.
RCO


“Amanhã também eu – a alma que sente e pensa, o universo que sou para mim – sim, amanhã eu também serei o que deixou de passar nestas ruas (...). E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na quotidianidade de ruas de uma cidade qualquer.”
Bernardo Soares, 'Livro do desassossego'.


Eu não quero decepcionar quem espera um espetáculo para saber o que fazer ou mesmo para fugir, mas o autogolpe não virá com o som de tiros para o alto, tanques nas ruas e com o fechamento do Congresso em meio a aplausos de uma minoria fanática e sem máscaras. Esse estilo não sobrevive no mundo de hoje, e o ladrão não vai entrar pela frente, com a sala cheia.
O autogolpe não vai acontecer, ele está acontecendo, encontra-se em curso e quem ainda não se deu conta disso não conseguirá perceber uma virada mais radical no poder do presidente quando ela acontecer. Quando a ficha cair, já aconteceu, talvez há um bom tempo.
Há poucos anos, declarações como a que o presidente fez hoje já seriam um marco da virada, uma declaração de autogolpe. Ele desafiou os Poderes da República, disse que chegou no limite e que vai partir para a ação em nome da liberdade e da Constituição, qual ditador não defende a liberdade e a Constituição? Hoje seria o dia em que a democracia foi declarada e oficialmente derrubada. Ou o dia histórico em que a democracia derrubou e prendeu um presidente que de peito aberto e no exercício de suas funções desafiou o regime.
Mas nós não encaramos assim, não vimos como uma declaração de autogolpe porque desde o ano passado lemos e ouvimos absurdos e mais absurdos, e insistimos na tese de que as instituições são fortes e responderão. Elas não estão respondendo, a não ser com notas de repúdio, estão corroídas e intimidadas, e ficarão ainda mais, mas sobreviverão na fachada, na casca. Elas não serão fechadas e as ameaças disso parecem fazer parte dessa estratégia.
O que deve acontecer a partir de agora não é hollywoodiano. Devem ocorrer mais Marielles em Brasília e em todos os cantos, deixando parlamentares de oposição acuados e com medo de frentes que contenham o tirano. Deve ocorrer uma corrupta ação com o corrupto Centrão para a eleição de um presidente fantoche da Câmara, fazendo com que a Casa não seja mais um obstáculo para decretos e leis inconstitucionais e autoritárias.
O STF, acovardado, não será capaz de dar respostas aos desmandos, o controle da PF e de outros aparelhos de Estado vai ocorrer com outras nomeações, pois o que não falta é gente disposta a isso, as leis estapafúrdias entrarão em vigor e o controle será maior um pouquinho a cada dia, a perseguição será um pouquinho maior a cada dia, e as declarações do presidente continuarão como sempre foram, destemperadas e agressivas, e com ministros dizendo que protestos e declarações deste tipo fazem parte da democracia. Barroso, claramente amedrontado, acaba de falar exatamente isso na Globonews.
As milícias que já tomam conta de territórios ampliarão silenciosamente seus poderes e áreas de atuação, serão armadas e dificilmente desafiadas por poderes democráticos, sob pena de rápidas execuções e desaparecimentos. Estes não serão feitos pelos aparelhos de Estado, o trabalho sujo será feito por elas. Paras as Forças Armadas ensaia-se o papel da soberana Rainha da Inglaterra.
Em desdobramentos mais radicais, mas não creio que num futuro muito à frente, haverá um estrangulamento feroz de veículos de imprensa e acomodação com os que se aliarem e, em seguida, controle da Justiça Eleitoral para, em nome da liberdade e da democracia, tornar os "comunistas" ilegais, pois eles buscam a ditadura, e controlar o processo eleitoral.
E, acreditem, no meio disso tudo muitos ainda vão temer que a qualquer momento aconteça um autogolpe. Outros, por sua vez, continuarão apoiando o presidente e pedindo um novo AI-5.
Leonardo Valente

SONHO


SONHO
Quando crescer e tiver vinte anos,
Sairei para ver o maravilhoso mundo.
Me sentarei num pássaro motorizado;
Voarei para o espaço, bem alto.
Voarei, navegarei, rodarei.
em volta do belo e longínquo distante.
Passarei sobre rios e mares,
Para os céus me levarei e florescerei,
A nuvem será minha irmã, e o vento meu irmão.
Ficarei maravilhado com os rios Eufrates e Nilo,
Verei as Pirâmides e a Esfinge
O antigo Egito da deusa Ísis.
Voarei sobre as Cataratas do Niágara
Padecerei com o calor escaldante do Saara.
Voarei sobre os montes cheios de nuvens do Tibet
E pela misteriosa terra dos mágicos;
E quando me livrar da canícula, abrasante e terrível,
Retornarei para voar sobre os icebergs setentrionais.
Cansado, voareí pela imensa ilha do cangurú
E sobre as ruínas da cidade de Pompéia,
Sobre a Terra Santa do Velho Testamento
E também sobre a terra do famoso Homer
Voareí lentamente, planando mansamente.
E assim me perfumarei das maravilhas do mundo,
Para os céus me levarei e florescerei,
Tendo a nuvenzinha como irmã e o vento como irmão.
Avrham Koplowiicz
(Criança que nunca chegou a ter vinte anos, pois morreu
em setembro de 1944, no campo de concentração de Auschwitz)

desastrada a tentativa de invasão da Venezuela


Lamentável e politicamente desastrada a tentativa de invasão da Venezuela por uma empresa mercenária dos Estados Unidos, a Silvercorp USA.  Ex-militares dos dois países envolvidos e a operação foi derrotada com várias mortes, além da humilhante captura de dois mercenários estadunidenses, o que reforça a narrativa defensiva de Maduro. Pelo direito internacional os Estados Unidos e a Colômbia são responsáveis pela infiltração do grupo armado, uma espécie de mini-Baía dos Porcos, como a fracassada tentativa de invasão de Cuba em 1961. Trump, Duque e Guaidó ficaram ainda mais desgastados. Maduro e os bolivarianos venezuelanos chamaram para a porrada e uma invasão em larga escala da Venezuela parece incompatível com as baixas militares para os Estados Unidos nesta conjuntura. É bom os bolsonaristas também não se envolverem nos assuntos internos do país vizinho porque mal se seguram no poder no Brasil durante maio.
RCO