sábado, 9 de maio de 2020


Eu não quero decepcionar quem espera um espetáculo para saber o que fazer ou mesmo para fugir, mas o autogolpe não virá com o som de tiros para o alto, tanques nas ruas e com o fechamento do Congresso em meio a aplausos de uma minoria fanática e sem máscaras. Esse estilo não sobrevive no mundo de hoje, e o ladrão não vai entrar pela frente, com a sala cheia.
O autogolpe não vai acontecer, ele está acontecendo, encontra-se em curso e quem ainda não se deu conta disso não conseguirá perceber uma virada mais radical no poder do presidente quando ela acontecer. Quando a ficha cair, já aconteceu, talvez há um bom tempo.
Há poucos anos, declarações como a que o presidente fez hoje já seriam um marco da virada, uma declaração de autogolpe. Ele desafiou os Poderes da República, disse que chegou no limite e que vai partir para a ação em nome da liberdade e da Constituição, qual ditador não defende a liberdade e a Constituição? Hoje seria o dia em que a democracia foi declarada e oficialmente derrubada. Ou o dia histórico em que a democracia derrubou e prendeu um presidente que de peito aberto e no exercício de suas funções desafiou o regime.
Mas nós não encaramos assim, não vimos como uma declaração de autogolpe porque desde o ano passado lemos e ouvimos absurdos e mais absurdos, e insistimos na tese de que as instituições são fortes e responderão. Elas não estão respondendo, a não ser com notas de repúdio, estão corroídas e intimidadas, e ficarão ainda mais, mas sobreviverão na fachada, na casca. Elas não serão fechadas e as ameaças disso parecem fazer parte dessa estratégia.
O que deve acontecer a partir de agora não é hollywoodiano. Devem ocorrer mais Marielles em Brasília e em todos os cantos, deixando parlamentares de oposição acuados e com medo de frentes que contenham o tirano. Deve ocorrer uma corrupta ação com o corrupto Centrão para a eleição de um presidente fantoche da Câmara, fazendo com que a Casa não seja mais um obstáculo para decretos e leis inconstitucionais e autoritárias.
O STF, acovardado, não será capaz de dar respostas aos desmandos, o controle da PF e de outros aparelhos de Estado vai ocorrer com outras nomeações, pois o que não falta é gente disposta a isso, as leis estapafúrdias entrarão em vigor e o controle será maior um pouquinho a cada dia, a perseguição será um pouquinho maior a cada dia, e as declarações do presidente continuarão como sempre foram, destemperadas e agressivas, e com ministros dizendo que protestos e declarações deste tipo fazem parte da democracia. Barroso, claramente amedrontado, acaba de falar exatamente isso na Globonews.
As milícias que já tomam conta de territórios ampliarão silenciosamente seus poderes e áreas de atuação, serão armadas e dificilmente desafiadas por poderes democráticos, sob pena de rápidas execuções e desaparecimentos. Estes não serão feitos pelos aparelhos de Estado, o trabalho sujo será feito por elas. Paras as Forças Armadas ensaia-se o papel da soberana Rainha da Inglaterra.
Em desdobramentos mais radicais, mas não creio que num futuro muito à frente, haverá um estrangulamento feroz de veículos de imprensa e acomodação com os que se aliarem e, em seguida, controle da Justiça Eleitoral para, em nome da liberdade e da democracia, tornar os "comunistas" ilegais, pois eles buscam a ditadura, e controlar o processo eleitoral.
E, acreditem, no meio disso tudo muitos ainda vão temer que a qualquer momento aconteça um autogolpe. Outros, por sua vez, continuarão apoiando o presidente e pedindo um novo AI-5.
Leonardo Valente

Nenhum comentário: