[Reencontrando sua alma] Será mesmo preconceito
imaginar que a filosofia é para uma elite?
No artigo
“A filosofia e as pessoas comuns”1 Gonçalo Armijos Palácios2, um defensor da
filosofia acessível aos “mortais comuns”, discorre sobre o fato de ser a
atividade filosófica uma atividade como todas as outras, para as quais podemos
ter ou não talento. Palácios explica, com clareza coerente com as ideias que
defende, que o que os filósofos fazem não é muito diferente do que o que todos
nós fazemos quando precisamos “sair de uma enrascada pensando por nós mesmos”.
Que assim como nem todos podem ser bons pintores ou cientistas, nem todos podem
ser bons filósofos. E que ter habilidade para filosofar não insere o filósofo
numa categoria especial de ser humano, pois a filosofia nada tem de “esdrúxulo,
diferente ou místico”. Afirma que “o filosofar está mais próximo das pessoas
comuns do que elas imaginam” e aponta como uma das causas dessa distância
imaginada o preconceito. Por fim, esclarece a diferença entre ser um
historiador da filosofia e ser um filósofo, a mesma que há entre ser um historiador
da arte e um artista, ou entre ser um historiador das ciências e um cientista.
Embora o
texto de Palácios seja esclarecedor, sua afirmação de que “um problema que
afasta as pessoas do ato de filosofar, certamente, é seguir acriticamente os muitos
preconceitos que há sobre a filosofia” me incomodou um pouco. Essa afirmação,
da forma como foi feita, parece jogar sobre o leitor comum toda a
responsabilidade pelo tal “preconceito”.
Ao
terminar a leitura do texto, me ficou a pergunta: será mesmo? Será essa ideia
que as pessoas têm de ser a filosofia atividade para “alguns escolhidos” puro
preconceito?
Vieram-me
então à mente algumas situações vividas no curso de filosofia.
Lembrei-me
de que, em certo momento, no primeiro ano, numa aula de Introdução à Filosofia,
questionei meu professor sobre a forma como alguns filósofos escrevem.
Estávamos estudando um texto de Alain Badiou3 e a leitura era complicada a ponto do professor nos dizer que, com
certeza, não conseguiríamos compreender tudo, mas apreenderíamos algo, e isso
já era importante.
No meu
questionamento já havia uma teoria própria, fruto do meu primeiro contato com
os textos filosóficos. Eu achava que muitos filósofos faziam questão de
escrever de forma complicada justamente para uma manutenção da filosofia como
coisa de uma elite privilegiada, o que, talvez, fizesse com que se sentissem
mais importantes do que as pessoas “comuns”. Meu professor não concordou
inteiramente comigo, embora não discordasse de todo. Mas, disse que talvez os
textos fossem difíceis porque a vida era difícil. Naquele instante, me curvei à
autoridade do mestre. Talvez fosse realmente necessário recorrer a uma
linguagem sofisticada para falar em profundidade sobre as questões complicadas
da vida. Hoje já não sei se continuo pensando assim. A impressão que tenho é de
que, se nossa intenção for realmente atingir as pessoas em geral, sempre será
possível falar de forma simples, seja lá sobre o que for.
Ainda no
primeiro ano nossa turma foi convidada a assistir a uma palestra da área de
filosofia da ciência. Não me recordo agora o nome do palestrante, bem como não
me recordo de absolutamente nada do que ele disse. E por quê? Porque ele usou
uma linguagem praticamente ininteligível. Estudantes de filosofia não tinham
obrigação de entender em profundidade uma teoria científica, mas creio que para
a maioria dos que estavam ali tenha sido quase impossível compreendê-la mesmo
superficialmente, porque o palestrante foi incapaz de se comunicar de forma
minimamente compreensível. Acabei me conformando em apreender o que fosse
possível, assim como o meu professor sugerira ao lermos Badiou. Mas, saí da
palestra com a nítida impressão de que se o palestrante tivesse um mínimo de interesse
em transmitir algo, ele teria conseguido.
Já no
segundo ano uma situação vivida na aula de ética me impressionou seriamente.
Durante o estudo do livro Elementos de Filosofia Moral, de James Rachels4,
iniciou-se uma discussão sobre homossexualidade, que acabou nos levando a um
caso em evidência na imprensa naquele momento. O caso do cartunista Laerte5,
que, vestido de mulher, fora flagrado usando um banheiro feminino. Nossa
professora propôs nos dividirmos em grupos, cada qual defendendo uma posição
diferente. Um grupo defenderia o direito de Laerte usar o banheiro feminino, o
outro lhe negaria esse direito e um terceiro grupo se colocaria como
relativista moral, defendendo que ambas as posições estavam certas, de acordo
com seu próprio ponto de vista. A discussão que se seguiu foi absolutamente
infrutífera no sentido de resolver um problema prático. O grupo que defendia o
direito de Laerte usar o banheiro feminino apoiava sua defesa no direito à
homossexualidade e no respeito às diferenças. O meu grupo defendia que Laerte
não deveria usar o banheiro feminino, porque, embora se vestisse como mulher, e
dissesse “se sentir mulher”, isso não fazia dele uma mulher, uma vez que tinha
um corpo masculino e se relacionava sexualmente com mulheres. Embora o meu
grupo concordasse com todos os argumentos a favor da liberdade na questão da
sexualidade, o que desejávamos era que o outro grupo compreendesse que
preferências sexuais não estavam em jogo ali. Não estávamos falando sobre a
vida sexual de Laerte, mas sobre o uso de um banheiro público cujo espaço
físico é projetado de forma diferente para homens ou mulheres. Quando tentei
defender a ideia de que, para o senso comum, homem é aquele que tem pênis e
mulher é aquela que tem vagina, isso caiu como absurdo. Porque, para filósofos,
a sexualidade é algo que se constrói ao longo da vida e ter um pênis ou uma
vagina é absolutamente irrelevante. Estávamos numa discussão filosófica e não
podíamos colocar as coisas em termos tão simples. A discussão precisava manter
um nível filosófico. Devíamos usar argumentos lógicos para derrubar a tese do
outro grupo. No entanto, o banheiro público é usado pelas pessoas em geral. E
na porta dos banheiros públicos há indicações de “ele” ou “ela”, não há nada do
tipo: “se você se sente homem entre aqui” ou “se você se sente mulher entre
aqui”.
Enfim,
nós, que defendíamos que Laerte deveria usar o banheiro masculino, fomos
praticamente tachados de homofóbicos, o que não era, absolutamente, o caso.
Estávamos vendo a situação de um ponto de vista prático, mas a filosofia
parecia ignorar haver uma vida em sociedade, onde algumas regras são
estabelecidas com o simples intuito de facilitar as coisas. Saí daquela aula me
sentindo incompreendida e frustrada. Me ficou uma sensação de que filósofos não
conseguem enxergar o que é simples. Pensei, naquele momento, que talvez
filósofos não fossem, realmente, pessoas “comuns”. E me prometi me policiar
para, estando dentro da filosofia, me esforçar para não me distanciar exageradamente
da realidade e não perder o senso prático que a vida exige de nós o tempo
todo.
Na
verdade, não há como negar que o estudante de filosofia já chega à academia se
sentindo um pouco “diferente” e, ouso dizer, desejando sê-lo. Vivemos num mundo
em que se atribui maior valor à atividade intelectual do que à braçal e isso
pode dar ao estudante de filosofia essa ilusão de ser alguém especial. Daí não
é muito difícil concluir que, mesmo sem ter total consciência disso, seus
movimentos se darão justamente no sentido de ser diferente, sem que se façam
maiores esforços para que as próprias ideias, já mais buriladas e sofisticadas,
sejam transmitidas de forma a serem compreendidas por todos. Ser incompreendido
por ser difícil pode ser, para alguns filósofos, envaidecedor.
E é
justamente nesse desinteresse de alguns por ser acessível a todos que a
filosofia sai prejudicada. Porque, se não formos acessíveis a todos, que
mudanças poderemos promover no mundo?
Um
documentário sobre Simone de Beauvoir6 (Arquivo N)7 fala de uma carta que uma
leitora agradecida lhe escreveu. No trecho reproduzido abaixo percebe-se bem a
importância de Simone ter usado uma linguagem acessível:
Querida companheira e, ouso dizer, amiga. O seu livro ‘O
Segundo Sexo’ me encantou. Eu li e reli muitas vezes e dei de presente a muitas
pessoas e ainda darei a muitas outras. Sou uma operária que nem terminou os
estudos. A senhora fez um bom trabalho. Me permito te mandar um beijo.
Todos, filósofos e não filósofos, sabemos e sentimos na pele as mudanças
que Simone de Beauvoir promoveu no mundo todo.
Imagino
que o fato das “pessoas comuns” enxergarem a filosofia como algo distante delas
não signifique exatamente que estejam seguindo acriticamente os preconceitos
que já existem. Talvez signifique que a própria filosofia se faz hermética a
ponto de desestimular o leitor comum a ir mais a fundo. E ela mesma cria essa
mistificação, que depois atribui a preconceito das “pessoas comuns”.
Afinal, o
que são “pessoas comuns”? Somos todos pessoas comuns e todos temos na filosofia
uma esperança de encontrar respostas para algumas questões que nos incomodam.
Nós, hoje, não somos muito diferentes dos filósofos da antiguidade, que se
perguntavam o que provocava os trovões. Nossas questões são outras, mas nosso
desejo é o mesmo: através da razão, nos ver livres das superstições e crenças
que emperram nossas vidas. E quando alguém tem alguma resposta libertadora, o
que de melhor pode fazer é seguir o exemplo de Beauvoir, e ser acessível. Ela
não teria provocado as mudanças que provocou se tivesse feito questão de ser
difícil. E nenhum de nós conseguirá provocar mudança alguma falando a uma
minoria de iniciados.
O leitor
quer respostas e se vai em busca delas através da filosofia, sem uma prévia
orientação, muitas vezes se frustra ao se deparar com textos cuja leitura, de
tão difícil, é quase impossível. É assim que não simplesmente adere a preconceitos
já existentes, de forma acrítica, mas elabora seu próprio pós-conceito. Que se
espalhará por aí, alimentando essa crença de que a filosofia é para seres
humanos especiais, desestimulando o interesse das pessoas em geral e,
infelizmente, contrariando esse bonito esforço de Palácios para desmistificar a
filosofia.
1 – Disponível em
Acessado em 29/07/2012
2 - Gonçalo Armijos Palácios é doutor em filosofia pela Indiana
University, professor da Universidade Federal de Goiás e autor do livro De como
fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio (Editora da UFG).
3 - Alain Badiou nasceu em 1937 na cidade marroquina de
Rabat. Autor de vasta e qualificada produção intelectual, é tido como um dos
principais filósofos franceses da atualidade.
4 – James Rachels (Georgia, 1941 – 2003) foi um filósofo
americano especializado em ética. Seus trabalhos são conhecidos por sua
acessibilidade.
5 - Laerte Coutinho (São Paulo, 1951) é um dos principais
quadrinistas do Brasil. Nos últimos anos, passou a chamar a atenção pelo
abandono de seus personagens e pela prática do crossdressing.
6 - Simone Lucie-Ernestine-Marie Bertrand de Beauvoir,
(Paris, 1908 – 1986), foi escritora, filósofa existencialista e feminista
francesa.
7 - Disponível em
acessado
em 29/07/2012
Ana Lucia Sorrentino
Link para a postagem original:
http://gazzetadachapadadiamantina.blogspot.com.br/2012/07/sera-mesmo-preconceito-imaginar-que.html
Postado por Ana Lucia Sorrentino no Reencontrando sua alma
em 7/31/2012