Por DANIEL SALGADO
Fóruns da internet brasileira são o berço de uma geração de
jovens reacionários e misóginos, cooptados pela pregação online de gurus como
Olavo de Carvalho, escreve Daniel Salgado em ensaio pessoal publicado na
serrote 30. No texto, ele conta sua passagem por um movimento que, nascido nas
profundezas da rede, hoje ocupa os holofotes da política nacional
Sem muito o que fazer aos 13 anos, preenchi um formulário
que incluía um apelido e um avatar, e me registrei no Fórum Uol Jogos. Pelos
cinco anos seguintes seria conhecido ali como FantaLight (tudo junto), sempre
representado por uma mesma imagem: um desenho do gato Manda-Chuva, estrela de
uma das animações do estúdio Hanna-Barbera. Nesse tempo, houve também quem me
chamasse de Fanta, Fantinha, FL, danisab e, para os mais íntimos, Dani. Naquela
página laranja-abrasivo, dei meus primeiros passos na web. E, sem o saber,
acompanhei de perto os primórdios e o fortalecimento de um movimento decisivo
da direita brasileira, hoje espalhado por toda a internet.
Antes da difusão das redes sociais, o Uol Jogos era uma
segunda casa para adolescentes nerds e folgados, um fórum em que usuários
relativamente anônimos exercitavam graus variados de exposição. Das dezenas de
subfóruns, alguns eram tão óbvios quanto o Playstation e o Notícias; outros,
mais improváveis e movimentados como o Vale Tudo e o Papo-Cabeça, que cobriam
grande variedade de assuntos e, justamente por isso, acabavam reunindo milhares
de usuários na segunda metade dos anos 2000.
No Vale Tudo, carinhosamente apelidado de VT, o ambiente era
anárquico e sem muita intervenção dos moderadores. Milhares de mensagens eram
postadas a cada hora, com centenas de usuários disputando espaço a tapa, sempre
tentando emplacar a qualquer custo suas piadas. Não eram raros tópicos que
chegassem à marca de centenas de páginas de comentários em poucas semanas;
outros eram criados por usuários-camicase para postar conteúdo que descumpria
as regras – pornografia, spam –, com o simples intuito de serem banidos pela
moderação. Era proibido postar mais de uma vez a cada 30 segundos, o que
parecia uma eternidade para a legião de usuários com dezenas de milhares de
postagens contabilizadas. Legião em que eu me incluía.
Algumas histórias extrapolavam o anonimato da multidão.
Todos lembravam do sujeito que citou o fórum no Beija Sapo, finado programa da
MTV, ou da saga de outro usuário para ganhar um concurso de beleza da revista
Capricho com a ajuda dos chamados “vtetas”, denominação adotada pelos membros.
Havia ainda a notoriedade mais prosaica, alcançada pelos que eram conhecidos
por fazer aniversário todos os dias, ou por aquele que, ao longo de anos, só
criou tópicos baseados em péssimos trocadilhos e se despedia com o indefectível
bordão “humor fino, humor 100sacional”.
O fórum teve seu impacto na internet brasileira. Foi o berço
dos primeiros memes tupiniquins, a grande maioria deles hoje relegada ao
cemitério virtual de piadas. Boa parte dos usuários se espalhou por outros
recintos com senso de humor similar, em especial comunidades do Orkut. Em seu
auge, elas funcionavam como fóruns, organizadas em tópicos e com milhares de
usuários em um ambiente caótico. Mas, mesmo com similaridades, a diferença
entre os dois espaços era clara. Os usuários do Vale Tudo, talvez por conta do
maior grau de anonimato, tendiam a praticar um humor mais extremo do que no
Orkut, tanto em seus temas quanto na agressividade de seus termos. Os
inclinados a esse tipo de pré-história talvez se lembrem de expressões como
“tenso” e “tá tudo bem agora”.1
O fórum foi também um dos criadouros de uma cultura
masculina adolescente cooptada pela nova direita brasileira, concentrando um
tipo de jovem cujo perfil se diluía em outros espaços. Diferentemente do Orkut
e similares, lá não havia adultos, regras ou necessidade de interpretar um
personagem. Seus membros se definiam como excluídos na “vida real” por suposta
feiura, declarada inaptidão social, gostos tidos como “exóticos” ou mesmo falta
de vontade de fazer amizades. Por isso, acreditavam eles, o mundo virtual
deveria se adequar às suas vontades e tolerar seus costumes – dentre eles, a
homofobia e o machismo.
Quando não discutíamos games ou outros aspectos da cultura
geek, compartilhávamos técnicas para conquistar mulheres inacessíveis – e as
desprezávamos imediatamente depois de receber uma recusa. Bordões surgiam,
fotos eram vazadas, brigas homéricas se desenrolavam, e cada vez mais o
ambiente cheirava a cueca. Mas a história que quero contar começa um pouco
acima do Vale Tudo. Um clique acima, para ser mais exato: no subfórum
Papo-Cabeça. Era nele que eu passava meu tempo quando não estava falando de
desenhos japoneses ou desilusões amorosas no VT.
O conceito do Papo-Cabeça era simples e ingênuo: lá deveriam
ser travadas todas as discussões consideradas intelectuais. No VT não havia, é
claro, lugar para academicismos ou comentários sobre leituras. O nível de discussão
alcançado em ambos era compatível com o de adolescentes e de recém-ingressos na
faculdade. Havia um ou outro diletante, uma ou outra alma mais razoável, que
logo desistia de discutir tópicos como “Jesus foi de verdade?”, “Refutei Marx
em três linhas” e “O cristianismo não passa de uma fraqueza de espírito”. Quem
tivesse lido um livrinho que fosse de Nietzsche ou Hermann Hesse, dois dos
favoritos dos frequentadores, já se destacava.2
Como em boa parte dos sites parecidos daquela época, a
tônica das discussões era anárquica. A cultura tóxica dominante estimulava a
transgressão pela transgressão, ou seja, abraçar tópicos que incomodassem as
pessoas consideradas “normais” – não eram raros, por isso, usuários defendendo
o ateísmo e a descriminalização das drogas e do aborto. Mas isso mudou. E
rapidamente.
Já na virada da década de 2010, o conservadorismo era
dominante. Cada vez mais o usuário do Papo-Cabeça e do Vale Tudo se
identificava como religioso, a favor do livre-mercado e contra as drogas. Até hoje
me surpreendo ao lembrar a guinada do Walser, com quem conversava bastante: em
menos de seis meses, ele passou de ateu fervoroso a crente convicto.
O que cativava aqueles jovens reacionários era um ideal de
aceitação. À medida que a rede era cada vez mais ocupada por pautas
progressistas, eficiente que é como ferramenta de amplificação de vozes antes silenciadas, o VT e seus
similares se radicalizavam na direção oposta. Seus membros manifestavam
ressentimento e desprezo por aqueles que, em seu entender, pareciam ocupar
ilegitimamente um lugar que consideravam exclusivo e inexpugnável. Quando a
internet era mato, só quem a frequentava eram mesmo os nerds excluídos
socialmente, ou seja, jovens, brancos e héteros impopulares na escola. Como
assim vinham outros excluídos tomar o espaço? “Censurar” o debate e implantar o
que se define, de forma pejorativa, como “politicamente correto”? Nesse
contexto, a direita era tentadora, apontando para um novo refúgio, um alento
ideológico que depreciava essas novas vozes. Para esses jovens, foi sedutor. E
eu quase caí nessa.
Minha relação com essa ideologia foi tão súbita quanto
breve. Em poucos meses, me interessei profundamente por aquelas ideias e as
abandonei por conta de uma grande desilusão. E todo o processo orbitou em torno
de um homem, um austríaco refugiado no Brasil que morreu mais de uma década
antes de eu nascer, Otto Maria Carpeaux. Crítico literário e ensaísta, figura
influente nos meios intelectuais brasileiros na segunda metade do século
passado, Carpeaux foi deixando aos poucos de ser lido. Não foi completamente
esquecido, mas teve o protagonismo reduzido com o progressivo deslocamento da
crítica literária da imprensa para a universidade. E nesse período de baixa,
Carpô, como prefiro chamá-lo, foi capturado por um cânone do qual jamais
demonstrou querer fazer parte, o dos escritores que a direita resgata do
ostracismo.
Quem esteve à frente da “retomada” de Carpeaux, ainda nos
anos 1990, foi Olavo de Carvalho, que se tornaria uma espécie de guru de parte
estridente da nova direita brasileira. Nos cursos que ministrava na internet,
arregimentando centenas de alunos, o filósofo autodidata passou a comentar
sistematicamente o autor de A cinza do purgatório. Em seu talk-show chamado
True Outspeak, Olavo criou informalmente um cânone de pensadores e escritores
que, a seu ver, foram convenientemente esquecidos por serem vistos pela
esquerda como “ameaças” ao consenso marxista que, segundo ele, domina as
universidades públicas – nomes supostamente deixados para trás por não se
conformarem às expectativas de uma academia “gramsciana”.
Para toda uma legião de jovens pupilos, o raciocínio é
irretocável – e, portanto, irresistível. Afinal de contas, apela-se à
valorização de quem, em tese, se quis apagar da história. A promessa de revelar
uma verdade oculta é, finalmente, tudo o que um jovem busca, a porta para um
novo mundo de conhecimento que, de outra forma, lhe seria negado. É uma ideia
de elevação intelectual. Dessa maneira, Olavo montou sua biblioteca-base,
repleta de nomes não exatamente desconhecidos, mas esquecidos o suficiente para
permitir novas edições – muitas lançadas por seus alunos, em pequenas editoras
–, e para que seu público o entendesse como uma espécie de monge detentor de
tradições há muito esquecidas. Olavo apontava para um oásis, zelando pelo
conhecimento supostamente ameaçado de destruição e protegido nas páginas de
nomes como o polímata espanhol José Ortega y Gasset, o cientista político Eric
Voegelin e o escritor católico francês Georges Bernanos.
Foram seus alunos que me apresentaram a Carpô, antes de
todos os outros. Suas ideias eram irresistíveis para mim, um moleque de 14 anos
que queria mergulhar no mundo da literatura, mas só tinha meios de o fazer em
guias como 1001 livros para ler antes de morrer ou 501 grandes escritores (este
último surpreendentemente bom, viria a perceber mais tarde). Não foram
necessárias mais que cinco postagens exaltando a História da literatura
ocidental assinadas por Musil, um dos usuários do Papo-Cabeça, para que o
monumento crítico de quatro volumes se tornasse meu principal objeto de desejo
naquele ano. Apoquentei meus pais por alguns meses, argumentando que a
publicação da Biblioteca do Senado, até então a única disponível, seria o
caminho para aprender algo sobre literatura.3 Não por coincidência, era essa a
edição que aparecia na biblioteca de Olavo, emoldurando os vídeos de suas
aulas.
E assim foi. Os calhamaços chegaram em minha casa pelos
correios, e logo me apaixonei pela erudição de Carpeaux, que desfilava um
conhecimento enciclopédico sobre a história dos autores ocidentais, sempre
generoso com o leitor, cristalino em seu estilo. Lá me deparei com as primeiras
leituras sérias da vida para além das páginas de introdução de revistas ou dos
textos do colégio. O ensaísta desafiava os livros e não se furtava de dizer o
que achava deles. O impacto foi tamanho que por muito tempo meu sonho era ser
crítico literário.
Nos meses que se seguiram, conforme me embrenhava nas
milhares de páginas do livro de capa amarela, aumentava minha frequência de
postagens no Papo-Cabeça, sempre mais arrogante, por meu recém-adquirido
conhecimento – e cada vez mais aberto às sugestões vindas dos meus colegas a
partir da biblioteca informal de Olavo. Quis ver do que se tratavam aqueles
nomes que não havia visto em lugar nenhum. Se chegassem vagamente perto de
Carpeaux, teria valido a pena. Em uma viagem à Argentina, não hesitei em
comprar A rebelião das massas e O tema de nosso tempo, de Ortega y Gasset.
Ao mesmo tempo, uma dúvida começara a tomar corpo. O
Carpeaux apresentado por Olavo e meus colegas não era exatamente o mesmo que eu
encontrava naquelas páginas. Se eles insistiam na faceta do crítico que parecia
ter lido tudo em todas as línguas, conhecia as profundezas da literatura cristã
medieval e valorizava autores conservadores, para mim o personagem tinha outras
características marcantes. Via, isso sim, um autor aberto às inovações de
estilo e forma, interessado em tudo o que havia de novo em seu tempo, que
dedicou a Bertolt Brecht quatro páginas inteiras em sua história da literatura
e, num ensaio de 1947, definiu-o como “o maior talento literário em toda a
emigração alemã”. Um crítico que considerava o cubano Alejo Carpentier um dos
autores “mais significativos do século”, e era apaixonado por Carlos Drummond
de Andrade, “poeta da mais alta categoria”.
A equação, que não fazia sentido, foi de vez para o espaço
ainda naquele ano. Num sebo de Botafogo, no Rio de Janeiro, deparei com o
primeiro volume dos ensaios reunidos de Carpeaux, organizados pelo próprio
Olavo, também autor de uma apresentação ao volume, anos antes de o autor de O
imbecil coletivo ter se tornado figura pública em cursos e polêmicas. Vi a
lombada vermelha dando sopa e comprei. Cheguei em casa ansiosíssimo, meus
amigos não iriam acreditar na minha sorte. Por isso, fui direto à introdução de
Olavo. Era um repasse biográfico e crítico de Carpeaux, uma tentativa de
contextualização de meu autor favorito, sobre quem tão poucas informações
estavam disponíveis na internet.
Naquelas páginas, Olavo deixava claro o descontentamento,
depois insistentemente reiterado, com o establishment cultural. Já escrevia
lamentando o destino de “nossas universidades, às quais sobram tempo e energias
para despejar anualmente sobre este resignado mundo uma tempestade de teses de
doutoramento sobre sambistas, cronistas esportivos, amantes de escritores,
poetas que poderiam ter sido e não foram”. Denunciava uma suposta “debilitação
intelectual brasileira das últimas décadas”, que, a julgar por seus cursos, só
fazia piorar. O desprezo estendia-se, curiosamente, aos próprios leitores, que
teriam dificuldade de compreender as referências de Carpô – o filósofo insistia
no desaparecimento, ao longo das quatro décadas anteriores, de um público
medianamente culto.
Até aí, tudo bem. Não era um discurso lá muito diferente do
que lia no Fórum, e eu não tinha repertório para discordar ou mesmo concordar
inteiramente. O ponto de cisão apareceria mais adiante. Recusando-se a aceitar
as muitas facetas de Carpeaux, o filósofo hoje autoexilado nos Estados Unidos
se mostrava nada menos do que mesquinho ao descrever os últimos anos do
austríaco. Tudo porque Carpeaux decidira se engajar na luta contra a ditadura
militar. Olavo fazia malabarismos para retratar Carpô como um homem senil que,
apesar de supostamente conduzido à esquerda, mantinha-se conservador. Segundo
ele, o ensaísta era o “apologista da revolução cubana” que “tinha horror da
politização geral da cultura”, um “denunciador das mazelas do capitalismo” que
“fazia a apologia do economista Friedrich Hayek”. E, ainda, alguém que
alimentava “o mais fundo desprezo pelas massas de bacharéis que as
universidades despejam todo ano na atividade cultural e política, vazios de
cultura superior e intoxicados de slogans demagógicos”.
Por mais mirabolantes que fossem os saltos e contorcionismos
retóricos, Olavo tinha que se render à evidência de que, nos últimos anos,
Carpeaux dedicou-se sobretudo a publicações de resistência à ditadura. Mas o
fazia com curiosas ressalvas: “É verdade que, à medida que os anos passavam,
ele se permitiu cada vez mais ser afetado por uma atualidade política
mesquinha, deixando dissolver-se em parte, no ambiente do imediatismo
brasileiro, a soberana concentração espiritual que lhe permitira sair ileso das
mais deprimentes experiências europeias. Mas ainda em seus últimos ensaios
críticos – contemporâneos de suas mais violentas polêmicas antiamericanas – ele
mostra um senso da supratemporalidade que só pode ser diagnosticado como
idealista ou como cristão e que é estranho a toda sensibilidade marxista.”
Ao terminar o ensaio, eu estava mudado. Além de
profundamente irritado com Olavo, que projetava na obra de Carpeaux suas
leituras de mundo, identifiquei ali o discurso dos meus colegas de internet,
que em sua maioria mal passavam dos 20 anos. Havia algo de muito errado: ou
Olavo tinha a argumentação de um jovem recém-formado ou seus alunos
simplesmente regurgitavam tudo que o mestre dizia. E isso era exatamente o que
Carpeaux jamais fez em sua vida intelectual. Com todas as idiossincrasias – que
o impediram, por exemplo, de apreciar a crônica como gênero –, foi um homem de
pensamento próprio, pouco influenciável, dotado de uma “supratemporalidade” –
para usar as palavras do próprio Olavo.
Pouco depois, passei a identificar um padrão que ia além da
controvérsia em torno de Carpeaux. O rancor contra a esquerda extrapolava a
influência de Olavo: era possível detectá-lo no Vale Tudo e em outros fóruns da
internet, como os estrangeiros Reddit e 4chan, que cada vez mais passavam a
atacar sistematicamente qualquer comportamento ou ideia relacionado com a
esquerda. O ressentimento, que a princípio eu supunha motivado apenas por uma
noção de injustiça intelectual associada ao esquecimento de ideias e autores,
era inseparável dos preconceitos que até então não percebera entre meus
colegas. Nesse contexto, o que se identifica no senso comum como “politicamente
correto” virou uma espécie de panaceia do mal: assim se classificam os textos
considerados “emburrecedores” dos universitários brasileiros, o policiamento de
piadas tão caras àqueles adolescentes e, mais importante, as críticas ao
discurso machista e homofóbico em plena vigência em toda a sociedade. Para os
meus colegas usuários, tratava-se de um ataque frontal: numa tacada só, estavam
suprimindo suas leituras, seu senso de humor e até a possibilidade de ventilar
suas frustrações amorosas. O Fórum, aos poucos, ganhava contornos de um espaço
de “resistência”, e o que antes era só lamentação por uma vida amorosa frustrada
deixou de parecer papo de adolescente para se transformar num celeiro de ódio
contra as mulheres e outros grupos.
*
Para entender em que pé estavam as coisas, resolvi este ano
voltar ao Vale Tudo. A experiência não foi boa: não passei da primeira página.
Fui incapaz de reconhecer um usuário sequer. Os nomes que eu tanto via foram
previsivelmente soterrados pelo tempo. Entre os vinte e tantos tópicos, há
chamadas como “por que alguns mulatos se chamam de pardos?”, “a vagabunda não
disse que não toma anticoncepcional”, “chegou aquele momento diário de
depressão e choque de realidade”, “o Arthur do Val considera esse cara como
‘branco’ risos”, “mais uma vítima dos desarmamentos” e “o que as garotas podem
esperar de nós esse ano”. Não quis saber. Fechei a janela do Fórum.
A pergunta continua, no entanto, martelando minha cabeça: o
que levou jovens a esse nível de conservadorismo e intolerância?
No livro Kill All Normies (2017), Angela Nagle sustenta que
o fenômeno é resultado de uma nova cultura de transgressão. Para a jornalista,
que estuda e descreve o funcionamento do 4chan – o fórum americano que inspirou
a cultura do VT e chega aos milhões de usuários –, trata-se de um movimento que
“tem mais em comum com o slogan de esquerda de 1968, ‘é proibido proibir!’, do
que com qualquer coisa que imaginemos ser parte da direita tradicionalista”. E
que, ainda assim, foi parte essencial na campanha eleitoral que elegeu Donald
Trump em 2016. Ou seja, o jovem conservador de hoje não tem paralelo com aquele
que, nos anos 1960, repudiou a cultura hippie como produto de um amontoado de
maconheiros fedorentos, ou que, na década de 1980, abraçou o mundo yuppie. Mas,
ainda assim, o novo jovem conservador – ou alt-right para os americanos – busca
a transgressão. Ele não quer ser parte do status quo das famílias tradicionais
e nem do mainstream cultural que ele condena como “gramsciano” e liberal.
Seu objetivo primeiro é chocar, abalar as estruturas para
tentar provocar mudanças que prometam menos um novo futuro do que o retorno do
passado. Seu combustível preferencial é o rancor, independentemente de suas
posições políticas. A cultura on-line é regida por um acordo tácito de que o
escárnio vem sempre antes do elogio. Basta passar algumas horas no Facebook ou
no Twitter para que isso se torne evidente. Apesar do esforço das gigantes de
tecnologia para transformar suas redes em locais seguros, numa espécie de
realidade cor-de-rosa, o conteúdo delas é tóxico.
O ressentimento do jovem de direita extrapola o hate mais
comum da internet, que costuma ser direcionado a uma personalidade, um filme ou
um time. O veneno desse pequeno conservador tende a se dirigir a um grupo
específico dentro da sociedade: as mulheres. Mesmo em suas críticas a produtos
culturais, o objetivo final costuma ser o de ofendê-las. Foi o caso, por
exemplo, do movimento gamergate, que em 2016 assolou a comunidade de gamers na
internet numa suposta campanha por mais ética e transparência nas críticas de
jogos feitas pelos portais “liberais” da mídia anglófona. Para os leitores, em
sua maioria inclinados politicamente a essa nova direita, as resenhas de seus
jogos favoritos estavam cada vez mais “amordaçadas pelo politicamente correto”.
Ou seja, passaram a apontar nos jogos o que se discute na sociedade: a ausência
injustificável nos games de protagonistas negros e mulheres ou a carência de
uma análise sociológica do que ali está em questão.
Para os gamers, no entanto, a mudança não se tratava de um
amadurecimento da crítica ou uma transformação no perfil dos jornalistas. Era,
“claramente”, uma tentativa de deslegitimar a cultura de games existente até
então. Apontar estereótipos batidos sobre as personagens femininas nos roteiros
de jogos não seria uma crítica válida, mas uma tentativa de “silenciar” e
desmerecer as “grandes narrativas” protagonizadas por brucutus fardados que
dominavam o mercado.
O gamergate tinha alvos bem definidos: mulheres,
desenvolvedoras ou jornalistas, e alguns raros homens que foram considerados
cúmplices da “ideologia de gênero”. O alvo principal, a desenvolvedora Zoë
Quinn, recebeu centenas de ameaças de morte e estupro. Isso por ter sido a
“pivô” da confusão: quando um ex-namorado fez uma postagem de blog insinuando
que Quinn teria tido um relacionamento com um crítico em troca de boas notas
para seu jogo Depression Quest, os gamers caíram matando. Não bastou a falta de
nexo do relato original, a linha do tempo conflitante (Quinn se envolveu com o
jornalista bem depois do lançamento de seu jogo, e o portal em que ele
trabalhava mal cobriu sua estreia), ou as críticas de que a reação era
desmedida. Este era um ataque havia muito incubado, e bastava uma faísca para
expelir aquela misoginia numa comunidade com cada vez mais desenvolvedores,
críticos e artistas mulheres e LGBT.
Esse tipo de comportamento não é uma exceção no mundo da
internet. Pelo contrário, é quase um lugar-comum. Em outras situações, se
manifesta como apoio a um comediante criticado por fazer piadas ofensivas ou um
ator acusado de assédio. Quem faz isso não se importa de verdade com o
desenvolvedor de jogos ou o comediante que defende. O que o move é a ilusão de
que qualquer diálogo que não termine com ele dando sua opinião certeira é
silenciador. A certeza de que qualquer passa-fora em alguém parecido com ele é
agressivo e desnecessário. O combustível do ódio, do ressentimento e do rancor
é o seu suposto silenciamento.
Nada muito diferente do que animava a criação do “cânone
esquecido” de Olavo de Carvalho. Mais do que resgatar o passado, o objetivo é
combater aqueles que supostamente ameaçam o protagonismo de quem o deteve por
muito, muito tempo, abalar um suposto novo status quo demarcado, de um lado,
pelo que chamam de “marxismo cultural” e “gramsciano” das faculdades
brasileiras, e, de outro, pela atuação “liberal” e “autoritária” de movimentos
sociais que brigam para serem ouvidos e respeitados. É com essa retórica que a
direita na internet conquista os jovens. “Rechaçados” pela esquerda, ou melhor,
desafiados por ela em suas certezas, muitos veem nos conservadores o refúgio de
um mundo cada vez mais “chato”. Entre seus iguais, eles finalmente voltariam a
ter voz para falar o que bem entendessem.
O conservadorismo oferece a esse jovem uma aura de
transgressão. Nesse meio, o consenso é incomodar e agredir os discursos das
minorias, minimizando denúncias de machismo, racismo e homofobia que aparecem
na grande imprensa. Para esse jovem recém-radicalizado e com vontade de chocar,
é importante pronunciar-se contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo,
opor-se às leis que caracterizam o feminicídio ou defender a proibição do
aborto em qualquer circunstância. Sua tática não é o debate, mas o constrangimento.
Como certos políticos, buscam palanque com suas provocações.
Essa radicalização dos jovens na internet não foi tão
intensa na minha geração. As pessoas que conheci no Vale Tudo não
necessariamente aderiram à direita. Uma parcela considerável adotou pautas
progressistas. Outros se aprofundaram no conservadorismo e até continuaram a
frequentar os cursos de Olavo. Foi o preço a se pagar pela tentativa de tirar o
melhor de uma internet até então sem muitas leis. Os fóruns anônimos nos
abriram uma porta para um mundo maior do que nossas escolas e nossos bairros,
com tudo de bom e de ruim que isso trouxe.
As coisas mudaram desde que entrei no Vale Tudo, no final da
década passada. Hoje, a proteção do anonimato não é indispensável como antes. A
cultura da transgressão e da agressão virtual se transportou para nossos perfis
em redes sociais. Basta ver os comentários de uma notícia ou postagem do
Facebook ou Twitter: conteúdo violento, comentários desmerecedores e ofensas
gratuitas, mas proferidos por perfis legítimos. Deve-se considerar, é claro, as
hordas de robôs virtuais, mas não é preciso grande esforço para encontrar,
entre nossos conhecidos, quem ofenda com prazer na internet. Se a gestação do
fenômeno foi anônima, a maturidade parece chegar de cara lavada. Resta
especular o que a internet de hoje nos reserva para os próximos dez anos.
NOTAS:
1. “Tenso”, de origem nebulosa, foi popularizado no VT e
costumava aparecer para descrever situações ou imagens bizarras. “Tá tudo bem
agora”, por sua vez, surgiu após a postagem de um usuário, Lord Eternal, que
descrevia um encontro em um sonho com um personagem da série de jogos Pokémon.
A criatura, chamada Entei, lhe confortava em momentos difíceis de sua vida e
finalizava o discurso com a expressão, que caiu no gosto dos usuários,
debochando da situação exótica.
2. Para além desses dois nomes, os frequentadores do fórum
também costumavam declarar amores ao filme Clube da luta e aos dirigidos por
Quentin Tarantino. Na música, a coisa variava bastante entre metal e outros
subgêneros do rock.
3. Posteriormente, a obra voltou a ser editada no Brasil,
numa versão em dez volumes menores, publicada pela Casa da Palavra em parceria
com a Livraria Cultura
Fonte : https://www.revistaserrote.com.br/2018/11/transgressao-a-direita-por-daniel-salgado/
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