Por ACHILLE MBEMBE
A utopia da livre circulação entre os países é hoje solapada
pelo reforço das restrições de movimento que reproduzem e intensificam a
vulnerabilidade de grupos estigmatizados e mais marcados racialmente
A capacidade de decidir quem pode se mover, quem pode se
estabelecer onde e sob quais condições, ocupa cada vez mais o centro de lutas
políticas por soberania, nacionalismo, cidadania, segurança e liberdade. Com a
expansão colonial do ocidente, e de modo mais decisivo com o advento do
capitalismo, a raison d’être da fronteira se relaciona a questões-chave como:
a quem pertence a terra? Quem tem o direito de reivindicar partes dela e os
vários seres que nela habitam? Quem determina sua distribuição ou divisão? Ao
enquadrar a questão da fronteira dessa forma, estou tentando mostrar que o
poder da fronteira está em sua capacidade de regular as múltiplas distribuições
das populações – humanas e não humanas – sobre o corpo da terra, e, assim,
afetar as forças vitais de todos os tipos de seres.
No século 21, torna-se evidente um desejo global renovado
dos cidadãos e de seus respectivos Estados por um controle mais rígido da
mobilidade. Para onde quer que se olhe, o impulso é em direção ao cercamento
ou, em todo caso, a uma dialética mais intensa de territorialização e
desterritorialização, de abertura e fechamento. Ganha força a crença de que o
mundo seria mais seguro se ao menos os riscos, as ambiguidades e as incertezas
pudessem ser controladas, se ao menos as identidades pudessem ser fixadas de
uma vez por todas. Técnicas de gerenciamento de risco estão se tornando, cada
vez mais, um método para governar a mobilidade. Sobretudo na medida em que a
fronteira biométrica se expande para múltiplos domínios, não apenas na vida
social, mas também no corpo, o corpo que não é meu.
Gostaria de prosseguir nessa linha de argumentação sobre a
redistribuição da terra. Não apenas por meio do controle dos corpos, mas do
controle do movimento em si e de seu corolário, a velocidade, pois é a isso que
as políticas de controle migratório estão de fato relacionadas: controlar os
corpos, mas também o movimento. Mais especificamente, quero investigar se, e
sob quais condições, poderíamos reengendrar a utopia de um mundo sem fronteiras,
e, por extensão, reengendrar um mundo sem fronteiras, uma vez que, pelo que
sei, a África é parte do mundo. E o mundo é parte da África.
É importante levar em consideração que a questão de um mundo
sem fronteiras é uma intenção obviamente utópica. Desde a sua origem, o
“movimento”, ou mais precisamente “a ausência de fronteiras”, tem sido central
para várias tradições utópicas. O próprio conceito de utopia refere-se ao que
não tem fronteiras, a começar pela imaginação em si. O poder da utopia consiste
em sua capacidade de representar a tensão entre a ausência de fronteiras, o
movimento e o lugar, uma tensão – se observarmos com cuidado – que marcou as
transformações sociais na era moderna. Essa tensão continua nas discussões
contemporâneas sobre processos sociais baseados no movimento, especialmente a
migração internacional, as fronteiras abertas, o transnacionalismo e até o
cosmopolitismo. Nesse contexto, a ideia de um mundo sem fronteiras pode ser um
recurso poderoso, embora problemático, para o social, o político e até mesmo
para a imaginação estética. Por causa da atual atrofia da imaginação utópica, o
espírito do nosso tempo foi colonizado por imaginários apocalípticos e
narrativas de desastres cataclísmicos e futuros desconhecidos. Mas que política
as visões do apocalipse e da catástrofe engendram, se não uma política da
separação, em vez de uma política da humanidade, de espécies começando a
existir plenamente? Porque nós herdamos uma história em que a norma é o
sacrifício recorrente de algumas vidas para a melhoria de outras, e porque
estes são tempos de medos profundamente enraizados, incluindo o medo de um
planeta dominado por outras pessoas de raças diferentes; por tudo isso, a
violência racial está amplamente codificada na linguagem da fronteira e da
segurança. Como resultado disso, as fronteiras contemporâneas correm o risco de
se tornarem lugares de reforço, reprodução e intensificação da vulnerabilidade
para grupos estigmatizados e desrespeitados, para os mais marcados racialmente,
cada vez mais dispensáveis, aqueles que, na era do desamparo neoliberal, pagam
o preço mais alto pelo período em que mais se construíram prisões em toda a
história humana. Aqui me refiro à prisão, às paisagens carcerárias de nosso
mundo, precisamente como a antítese do movimento, da liberdade de se mover. Não
há oposição mais dramática à ideia de movimento do que a prisão. E a prisão é
uma característica-chave da paisagem dos nossos tempos.
Ao propor um reexame da questão de uma África sem fronteiras
e de um mundo sem fronteiras, gostaria de manter distância dos tratamentos
dominantes que esse assunto tem recebido. Isto é, sob o signo de Kant e sua
promessa de um cosmopolitismo sem limites, e sob o signo de um individualismo
liberal visto como antídoto para os impulsos fascistas arraigados na governança
e na burocracia europeias. Embora pareçam dois mundos diferentes, ambas as
abordagens são articuladas em torno do conceito das quatro liberdades.
AS QUATRO LIBERDADES DE MOVIMENTO
No pensamento liberal clássico, existem três liberdades
fundamentais: antes de tudo, a liberdade de ir e vir. Dentro da liberdade de ir
e vir, existe a liberdade de movimentação do capital, a maior prioridade. Mas,
uma vez que não há capital sem bens, existe a liberdade de movimentação dos
bens. A terceira é a dos serviços, e, especialmente nestes nossos tempos, a
liberdade de movimento daqueles que podem prestá-los. Essas são as três
liberdades fundamentais; a quarta é a liberdade de movimento das pessoas. Os
compromissos tradicionais com a ideia de um mundo sem fronteiras visavam
precipitar o advento dessa quarta liberdade. De acordo com essa configuração,
em um mundo sem fronteiras haveria liberdade de movimento para: o capital, os
bens, os serviços e as pessoas. Essa movimentação, essa liberdade de movimento
não seria restrita ao núcleo de países ou Estados economicamente ricos, como é
o caso atualmente. O Tratado de Schengen,1 por exemplo, inclui apenas um núcleo
de países europeus. De fato, se você tem um passaporte americano, basicamente
pode ir aonde quiser. O mundo pertence a você. Mas não é assim que funciona
para todo habitante do nosso planeta. Na configuração que mencionei, a quarta
liberdade, a capacidade de se mover pelo planeta, não estaria mais restrita a
europeus e americanos. Seria um direito radical que todos os indivíduos teriam
pelo simples fato de serem humanos. Um direito estendido aos pobres da terra.
Voltamos sempre à questão da terra. Não haveria vistos, em algumas instâncias
da quarta liberdade de movimento não haveria cotas, e nenhuma categoria bizarra
na qual se enquadrar. Seria possível simplesmente pegar a estrada, um avião, um
trem, um barco, uma bicicleta. O direito de não ser discriminado seria
estendido a todos. Em Camarões, até o início dos anos 1980, era possível viajar
para a França apenas com a carteira de identidade. A maioria das pessoas ia à
França e voltava. Não iam porque queriam se estabelecer lá. A maioria das
pessoas quer viver no lugar ao qual “pertence”. Mas querem poder ir e vir. E é
mais provável que vão e venham quando as fronteiras não são hermeticamente
fechadas. Logo, o mundo sem fronteiras imaginado pela quarta liberdade de
movimento é baseado em duas premissas: o direito à não discriminação e os
arranjos circulatórios e pendulares de migração.
Para elucidar ou apresentar de modo diferente as questões de
um mundo sem fronteiras é preciso contrastar dois paradigmas. Examinar a ideia
liberal de um mundo sem fronteiras por meio do conceito de liberdade de
movimento, e contrapô-la aos modos como se compreendia a movimentação no
espaço da África pré-colonial. O contraste entre esses dois paradigmas nos
dará, espero, recursos conceituais para expandir o projeto utópico de um mundo
sem fronteiras.
A TRADIÇÃO LIBERAL INDIVIDUALISTA
Falar em pensamento clássico liberal, sabemos, é
extremamente complicado. Estou propondo um arquétipo, que precisa ser
desconstruído adequadamente. E aqui vou me referir em especial a uma obra
recente, Movement and the Ordering of Freedom, de Hagar Kotef, uma acadêmica
israelense que leciona na Faculdade de Estudos Orientais e Africanos da
Universidade de Londres. Você pode usar a imaginação e adivinhar por que uma
israelense está interessada nisso. O que Kotef demonstra nessa obra é como o
pensamento político liberal, ao imaginar a possibilidade de um mundo sem
fronteiras, carregou sempre uma contradição. Seu argumento é que essa
contradição decorre da forma como o pensamento liberal compreende o movimento.
Ela mostra que, de fato, dentro do pensamento liberal clássico, duas
configurações dominantes de movimento entram constantemente em conflito, de
modo que, às vezes, uma anula a outra. O movimento aqui é visto, ao mesmo
tempo, como manifestação das liberdades e como interrupção, ameaça à ordem. Uma
das funções do Estado é, portanto, fabricar conceitos de ordem, estabilidade e
segurança que possam ser conciliados com seus conceitos de liberdade e
movimento. Essa é a contradição. Kotef argumenta que o Estado liberal clássico
é inimigo das pessoas que circulam incansavelmente. Essas pessoas se tornam um
outro inassimilável. Não se pode assimilá-los. Eles estão em movimento
constante. Em tudo isso, há uma repercussão colonial. O maior problema do
Estado colonial no continente africano, do século 19 em diante, era garantir
que as pessoas ficassem no lugar. Foi difícil. Elas circulavam constantemente.
Eram “incapturadas”.
Portanto, o negócio do Estado é conseguir capturá-los. Sem
isso, a soberania não significa nada. Soberania significa capturar um povo,
capturar um território, delimitar fronteiras. Isso, por sua vez, permite que se
exerça o monopólio do território, claro, o monopólio sobre as pessoas nos
termos do uso legítimo da força e, o que é muito importante – porque todo o
resto depende disso –, o monopólio
sobre a cobrança de impostos. Não se pode cobrar impostos de quem não tem
endereço. O Estado vê essas pessoas como inimigas – tanto da liberdade, porque
eles não a exercem dentro dos limites, quanto da segurança e da ordem. Não se
pode construir uma ordem com base no que é instável.
O mesmo Estado é amigo do movimento autorregulado. Por quê?
Porque a liberdade nesse caso é entendida como uma questão de moderação, de
autorregulação. Não está associada ao excesso – o movimento excessivo
imediatamente invoca problemas de segurança. Kotef então mostra que o movimento
não só precisa ser contido por um aparato de mecanismos disciplinares, como
deve ser reconciliado com a liberdade e, em certa medida, com o autocontrole.
Mas não se supõe que todos os sujeitos tenham capacidade de controlar ou
regular a si mesmos. Nem todo mundo consegue se conter. Portanto, alguns
movimentos são rotulados como liberdade, e outros são considerados impróprios e
percebidos como uma ameaça. Essa é a bifurcação que existe no pensamento
clássico liberal. É o espectro que assombra os Estados liberais clássicos,
desde aquela época até agora. Ainda não nos livramos desse espectro.
Os Estados liberais clássicos tentaram resolver essa
contradição pelo gerenciamento da mobilidade, que está de volta à pauta agora
na Europa e até na África do Sul, onde tenho feito alguns trabalhos com o
Departamento de Assuntos Internos a respeito da regulação de migrações
interafricanas. O conceito-chave é “mobilidade gerenciada”. Então, no quadro
da mobilidade gerenciada, certas categorias da população são vistas o tempo
todo como possível ameaça, não apenas para si mesmas e sua própria segurança,
mas também para a segurança dos demais. Acredita-se que essa ameaça pode ser
reduzida se os movimentos dessas pessoas forem limitados e se elas forem
domesticadas e submetidas a algum tipo de reforma.
O MODELO AFRICANO
No modelo clássico liberal, segurança e liberdade passam a
ser definidas como um direito de exclusão. A ordem, nesse modelo, diz respeito
à garantia de uma organização desigual das relações de propriedade. Assegurar
as fronteiras da nação acompanha a afirmação dos limites da raça. Agora,
redefinir os limites da raça nesse modelo exige uma definição apropriada dos
limites do corpo; a centralidade do corpo nos cálculos de liberdade e de
segurança.
Antes de mais nada, devo dizer que a África pré-colonial
pode não ter sido um mundo sem fronteiras, pelo menos não no sentido em que as
temos definido; as fronteiras existentes sempre foram porosas e permeáveis. A
função de uma fronteira, na realidade, é ser cruzada. É para isso que elas
servem. Não há fronteira concebível fora desse princípio, a lei da
permeabilidade. Como atestam as tradições de comércio de longa distância, a
circulação era essencial. Era fundamental na produção de formas culturais,
arranjos políticos, configurações econômicas, sociais e religiosas. O veículo
mais importante para a transformação e a mudança era a mobilidade. Não era a
luta de classes, no sentido em que a compreendemos. A mobilidade era o motor de
qualquer tipo de transformação social, econômica ou política. Aliás, era o
princípio indutor por trás da delimitação e da organização do espaço e dos territórios. Assim, o princípio
primordial da organização espacial era o movimento contínuo. E isso ainda é
parte da cultura hoje. Parar é correr riscos. Você precisa estar em constante
movimento. Sobretudo em situações de crise, essa é a própria condição da
sobrevivência. Se você não se move, as chances de sobreviver diminuem. Logo, o
domínio sobre a soberania não era
expresso exclusivamente por meio do controle de território, marcado fisicamente
com fronteiras. Como era, então? Se não se controla um território, como se pode
exercer a soberania? Como se pode extrair qualquer coisa, uma vez que, pelo que
sabemos, o poder se expressa também, se não essencialmente, por meio de alguma
forma de extração?
Tudo isso era representado pelas redes. Redes e
encruzilhadas. A importância das redes e das encruzilhadas na literatura
africana é impressionante. Leia Soyinka, leia Achebe, leia Tutuola.2 Estradas e
cruzamentos estão por toda parte na literatura deles. As encruzilhadas, os
fluxos de pessoas e os fluxos da natureza, ambos em relações dialéticas, porque
nessas cosmogonias as pessoas são impensáveis sem o que chamamos de natureza.
Isto posto, enquanto a virada do Antropoceno parece uma novidade em parte do
nosso mundo hoje, nós sempre vivemos assim. Não é nenhuma novidade. Porque não
se pode pensar nas pessoas sem pensar nos não humanos. Leia Tutuola, é um mundo
de humanos e não humanos interagindo, agindo uns com os outros. Não quero
exagerar. Espaços geográficos fixos, como cidades e vilas, existiam. Pessoas e
coisas poderiam estar concentradas em um local específico. Esses lugares podiam
até se tornar a origem do movimento, e havia ligações entre eles, como estradas
e rotas de voo, mas os lugares não eram descritos por pontos ou linhas. O mais
importante era a distribuição do movimento entre os lugares. O movimento era a
força motriz da própria produção de espaço e deslocamento, se acreditarmos em
algumas daquelas cosmogonias. Tenho agora em mente a cosmogonia Dogon, que foi
estudada particularmente por Marcel Griaule, ou outras cosmogonias na África
Equatorial analisadas por antropólogos e historiadores como Jan Vansina, John
M. Janzen e outros. O movimento em si não era necessariamente relacionado ao
deslocamento. O mais importante era o quanto os fluxos e suas intensidades se
cruzavam e interagiam com outros fluxos, as novas formas que estes poderiam
assumir quando se intensificavam. O movimento, especialmente entre os Dogon,
poderia levar a desvios, conversões e intersecções. Isso era mais importante do
que pontos, linhas e superfícies, que, como sabemos, são as referências
cardeais na geometria ocidental. Logo, o que temos aqui é outro tipo de
geometria, da qual derivam conceitos próprios de fronteiras, poder, relações e
separação.
Se quisermos captar recursos alternativos, como um
vocabulário conceitual, para imaginarmos um mundo sem fronteiras, eis aqui uma
fonte. Não é a única. Mas queremos reunir os arquivos do mundo em geral, não
apenas os documentos ocidentais. Na verdade, os arquivos ocidentais não nos
ajudam a desenvolver a ideia de um mundo sem fronteiras. O arquivo ocidental
está baseado na cristalização da ideia de fronteira.
Nessa configuração, riqueza e poder, ou a riqueza nas pessoas,
digamos assim, sempre superou a riqueza nas coisas. Há duas formas de riqueza.
Você pode ser rico de acordo com a sua capacidade de aglutinar em torno de si
clientes, familiares etc. Ou você pode ser rico simplesmente por ter acumulado
uma quantidade imensa de coisas. Eis aqui uma dialética de quantidades e
qualidades. E múltiplas formas de associação sempre estiveram disponíveis. Como
alguém se tornava parte de algo? Através de qual janela se pode entrar na casa?
Havia muitas formas de associação, não classificações rígidas de que se é ou um
cidadão ou um forasteiro. Entre um e outro havia todo um repertório de formas
alternativas de associação – construir alianças por meio de negócios, casamento
ou religião, incorporar aos regimes existentes novas relações comerciais e
pessoas refugiadas ou em busca de asilo – essa era a regra. A dominação se dava
por meio da integração dos forasteiros. Todo tipo de forasteiros. E a noção de
povo – não a de nação – incluía não apenas os vivos, mas também os mortos, os não
nascidos, os humanos e os não humanos. A comunidade era impensável sem algum
tipo de dívida fundadora, com duas formas principais de endividamento. Existe a
dívida expropriatória, como alguns de nós estamos devendo para bancos. Mas,
nessas constelações, há um tipo diferente de dívida que constitui a própria
base da relação. É o tipo de dívida que abrange não só os vivos, o presente,
mas também aqueles que vieram antes e os que virão depois de nós e com quem
também temos obrigações – a corrente de seres que inclui, mais uma vez, não
apenas humanos, mas também animais e o que chamamos de natureza.
O DIREITO À MORADIA
Gostaria de concluir apresentando uma ideia que retirei da
constituição de Gana. Ela desenvolveu um conceito que não encontrei em nenhum outro
lugar. É um novo direito fundamental que eles chamam de “direito à moradia” e
que querem incluir na lista dos direitos humanos tradicionais. A ideia desse
direito à moradia me parece a pedra fundamental para qualquer tentativa de
reimaginar a África como um espaço sem fronteiras. Em um nível histórico
profundo, os africanos e as lutas diaspóricas pela liberdade e pela
autodeterminação sempre estiveram entrelaçados à aspiração de se mover sem
amarras. Seja em condições de escravidão ou sob domínio colonial, a perda de
nossa soberania resultou automaticamente na perda de nosso direito à livre
circulação. Essa é a razão pela qual o sonho redentor de uma nação africana
livre e poderosa tem sido ligado de modo inextrincável à recuperação do direito
de ir e vir sem obstáculos ao longo de nosso continente colossal. De fato,
nossa história na modernidade tem sido, em grande medida, de constante
deslocamento e confinamento, migrações coagidas e trabalhos forçados. Pense no
sistema de plantation nas Américas e no Caribe. Pense nos Black Codes e Pig
Laws,3 ou no status de vagabundagem depois do fracasso da reconstrução dos
Estados Unidos em 1887. Pense nas chain gangs,4 trabalhando em empreitadas como
construção de estradas, escavação de valas, demolição e desmatamento. Pense no
Code de l’indigénat,5 pense nos Bantustões,6 nas reservas de trabalho no sul da
África e na indústria de complexos carcerários hoje nos Estados Unidos. Em cada
exemplo, ser africano e ser negro significa ser relegado a um entre os muitos espaços
de confinamento que a modernidade inventou.
A corrida para a África no século 19 e a demarcação de suas
fronteiras de acordo com as linhas coloniais transformaram o continente em um
enorme espaço carcerário e fizeram de cada um de nós um imigrante ilegal em
potencial, impedido de circular salvo sob condições cada vez mais punitivas. Na
realidade, o aprisionamento se tornou a precondição para a exploração do nosso
trabalho, e por isso as lutas pela emancipação racial e por melhorias das
condições de vida dos negros são tão entrelaçadas às lutas pelo direito de
circular livremente. Se quisermos concluir o trabalho de descolonização,
precisamos derrubar as fronteiras coloniais em nosso continente e transformar a
África num vasto espaço de circulação para os africanos, para seus descendentes
e para todos aqueles que quiserem ligar seus destinos ao nosso continente.
Tratado que criou uma zona de livre circulação de cidadãos
entre países europeus, na qual os controles de fronteira foram abolidos, salvo
em casos excepcionais. Começou com cinco países, em 1985, e hoje reúne 26
Estados. [N. da T.]
O autor se refere a três dos principais autores da
literatura nigeriana do século 20: Wole Soyinka (1934), premiado com o Nobel de
Literatura em 1986; Chinua Achebe (19302013); e Amos Tutuola (19201997). [N.
da T.]
Black Codes eram leis discriminatórias promulgadas após o
fim da guerra civil nos EUA, que permitiam a pessoas negras o direito à
propriedade privada, mas as proibiam de votar, testemunhar contra brancos ou
servirem como jurados. As leis que criminalizavam o desemprego como
vagabundagem e puniam pessoas negras por roubo de comida ficaram conhecidas
como Pig Laws. [N. da T.]
Com o fim da Guerra Civil e da escravidão nos EUA, os
estados do Sul passaram a usar o trabalho forçado de prisioneiros, na maioria
negros, em obras de infraestrutura. Os grupos eram conhecidos como chain gangs
por serem acorrentados pelos pés para evitar fugas. [N. da T.]
Leis coloniais francesas que restringiam os direitos da
população muçulmana da Argélia em 1881, extintas apenas depois da guerra de
independência argelina, em 1962. [N. da T.]
Territórios onde os povos bosquímanos foram segregados pelo
apartheid em territórios supostamente autônomos dentro da África do Sul. [N. da
T.]
Tradução de Stephanie Borges
O camaronês Achille Mbembe (1957) é professor de história e
ciência política da Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, e na Duke
University, nos EUA. É um dos mais originais pensadores contemporâneos nas
questões relacionadas à descolonização, à escravidão e ao racismo. É autor de
Crítica da razão negra e Necropolítica, ambos publicados no Brasil pela n-1.
Este ensaio foi apresentado em março de 2018 como parte da tradicional série
Tanner Lectures on Human Values, na Universidade Yale.
Fonte : site
da revista Serrote, publicação do Instituto Moreira Salles
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