quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Breve história crítica dos feminismos no Brasil



Por CARLA RODRIGUES

Excluídas da história oficial, as mulheres fazem do ato de contar a própria trajetória uma forma de resistência. Neste ensaio, publicado na serrote #30, a filósofa Carla Rodrigues enlaça as várias linhas dos movimentos feministas no país nas últimas décadas
Das mulheres, já se disse muita tolice. Para que não alcançassem a cidadania, Rousseau as restringiu à esfera privada. Kant confinou-as à pura sensibilidade e, ao deixá-las de fora do campo da razão, manteve-as longe da ciência. Devido ao suposto mistério envolvendo sua sexualidade, Freud considerou-as um enigma indecifrável. Excluídas da história, criaram uma historiografia própria para se opor ao apagamento e à invisibilidade da existência, fazendo do ato de contar a própria trajetória uma forma de resistência.1 Dicionários nomeiam, classificam e ordenam as pensadoras como forma de articular política editorial e estratégias de perpetuar a memória onde havia esquecimento.2 Esta breve história dos feminismos é costurada a partir do entrelaçamento de quatro feixes, quatro linhas históricas que serão trançadas como os cabelos das mulheres negras ou como as tramas das cestarias, nas quais a trama é menos visível do que a forma final que os fios produzem. Quero contar uma história despida de qualquer historicismo, de qualquer pretensão a estabelecer um nexo causal entre vários momentos, uma história que parte do tempo do agora.

“O histórico e o a-histórico são na mesma medida necessários para a saúde de um indivíduo, um povo e uma cultura”, escreve Friedrich Nietzsche em sua Segunda consideração intempestiva, de 1874,3 cujo subtítulo instiga quem se engaja na historiografia – “da utilidade e da desvantagem da história para a vida”. O texto entrou para a tradição filosófica como tendo exercido grande influência sobre as Teses sobre o conceito de história (1940), em que Walter Benjamin propõe, entre tantas outras coisas, capturar o passado “somente como imagem que lampeja no instante de sua recognoscibilidade, para nunca mais ser vista”. O argumento começa na tese V e continua na VI: “Articular o passado historicamente não significa conhecê-lo ‘tal como ele propriamente foi’”, mas “capturar uma imagem do passado como ela inesperadamente se coloca para o sujeito histórico no instante do perigo. O perigo ameaça tanto o conteúdo dado da tradição quanto os seus destinatários.”4 Se é verdade que os feminismos são plurais e abertos, eles o são exatamente ali onde não podem se constituir numa história monumental. Escrita a partir do encontro de Nietzsche com Benjamin, esta pequena história é crítica e se tece costurando quatro fios: os movimentos de mulheres e suas resistências; a constituição dos estudos feministas; a recepção do conceito de gênero e seus desdobramentos teóricos; e as relações internacionais tanto dos movimentos quanto das teorias. A cada tempo, a cada nó ou a cada onda, esses cruzamentos se modificam conforme a trama, como se as tranças fossem ao mesmo tempo hierárquicas e rizomáticas, lógicas e borromeanas, compatibilizando sistemas contraditórios entre si. Nessas amarrações, há movimentos de busca de elementos históricos, assim como há descontinuidades, curtos-circuitos onde algo parece se perder para vir a ser retomado depois. É como se o aforismo de Nietzsche – da história, trata-se de saber o que lembrar e o que esquecer – nem sempre funcionasse a contento. Há inúmeras iniciativas de reconstituição da trajetória dos movimentos de mulheres, seus erros, acertos e descontinuidades.5 Por vezes, cai no esquecimento aquilo que teria potência histórica; em outros casos, lembram-se de mais episódios que poderiam ser, senão esquecidos, pelo menos trançados com outros fios da memória.

#FIO 1 – RESISTÊNCIAS

A ressignificação da figura histórica de Luíza Mahin como mito libertário da escravidão tem sido, desde a publicação de Um defeito de cor (2006), o romance premiado de Ana Maria Gonçalves (1970), mola propulsora para o fortalecimento do movimento de mulheres negras e fundamental para desenhar novos símbolos, contrários à violenta associação entre ser negra e ser subalterna. Ex-escrava, Luíza liderou, no século 19, a revolta dos Malês, descrita por Ana Maria e tomada como ponto de resistência das mulheres negras e de oposição à tradição de subserviência. Faz parte desse movimento   a criação do Dia de Tereza de Benguela e da Mulher Negra no calendário da cidade do Rio de Janeiro, a ser comemorado   no dia 25 de julho, resultado da aprovação de projeto da vereadora Marielle Franco e também direcionado a enaltecer mulheres negras em posição de poder e resistência. Fenômenos parecidos podem ser encontrados nas diferentes formas de retomada das obras de escritoras como Carolina Maria de Jesus (1914-1977) e Conceição Evaristo (1946) – só recentemente reconhecida pelo grande público, embora veiculasse seus textos desde os anos 1980 nos Cadernos Negros, série anual de coletâneas de poesia e prosa dedicada a dar espaço e visibilidade a autoras e autores negros. A estratégia de voltar ao passado tem sido fundamental para as coletivas nas universidades, formadas por jovens que, em muitos casos, são as primeiras da família a escapar do trabalho doméstico para uma promessa de vida intelectual. O recurso a outra visão do passado tem produzido muitos efeitos no presente. Do slogan “Mulher negra tem história” à multiplicação de pesquisas acadêmicas,6 passando pela mobilização semanal de 120 coletivos de mulheres negras que se reúnem na capital paulista, há também as novas candidatas para os parlamentos estadual e federal, as disputas de poesia como o Slam das Minas, e a publicação, pela Companhia das Letras, de Quem tem medo do feminismo negro? (2018), de Djamila Ribeiro (1980). Além de autora, Djamila edita o selo Feminismos Plurais, da editora Letramento, que reúne obras de mulheres negras e títulos sobre racismo. Ainda que mais tímidos, há também fios trançados em torno da memória da feminista Lélia Gonzalez (1935-1994). Uma biografia de Lélia e a reedição de seus ensaios prometem ser parte desse desenho.7 Sua obra foi escrita em intenso diálogo com a feminista norte-americana Angela Davis, hoje mais editada aqui (com três títulos traduzidos nos últimos dois anos pela Boitempo) do que a brasileira.

A estratégia das mulheres negras de recuperação da sua história é similar a um tipo de proposta comum em outro grupo de mulheres, a geração que, anterior à segunda onda do feminismo, ficou imprensada entre as sufragistas e a explosão que viria nos anos 1970. É um grupo heterogêneo, formado principalmente por escritoras e intelectuais que, no rastro do Movimento Modernista de 1922, tomam como óbvio aquilo que na verdade era ainda muito estranho: que mulheres pudessem ser intelectuais e ocupar o espaço público e, sobretudo, o lugar do pensamento, da arte e da escrita. Esse momento das mulheres de letras no Brasil da primeira metade do século 20 é fundamental para abrir caminhos para as que viriam a seguir. Inclui Clarice Lispector (1920-1977), por exemplo, assim como Carmen da Silva (1919-1985), que fez história como editora e colunista na revista Claudia.8 É desse período também a literatura de Ruth Guimarães (1920-2014), mulher negra cujo romance de estreia, Água funda (1946, relançado em 2018 pela Editora 34), recebeu elogios e prefácio de Antonio Candido: “É um romance, mas escrito como se fosse prosa fiada, como se fosse narrativa caprichosa que vai indo e vindo ao sabor da memória, ao jeito dos contadores de casos. Esta primeira impressão é justa, mas não deve esconder do leitor o que há neste livro de composição deliberada, de técnica bastante complexa, rica em elipses, em saltos temporais, em subentendidos.” Raça, classe ou gênero não aparecem na avaliação de Candido.

Era um tempo em que escritoras flertavam com o que então se chamava “a questão feminina”, como Lygia Fagundes Telles (1923) ou Marina Colasanti (1937), e discutiam os problemas do gênero literário. “Existe uma literatura feminina?”  era uma pergunta a embalar algumas daquelas mulheres de letras. Merece destaque o trabalho da pesquisadora Zahidé Muzart (1939-2015), cuja carreira docente na UFSC foi dedicada à recuperação de autoras brasileiras ignoradas pelo cânone literário. Publicou livros, orientou pesquisas de mestrado e doutorado, fundou a Editora Mulheres – espelhada na iniciativa francesa da Éditions des Femmes, liderada pela feminista Antoinette Fouque – e foi pioneira na edição da crítica literária sobre Hilda Hilst (1930-2004).9 Zahidé compilou autoras brasileiras como Emília Freitas (1855-1908) e Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) e tornou conhecida a trajetória de Nísia Floresta (1810-1885),10 o que nos remeteria a outros fios dessa trama: a estratégia de legitimar as pautas feministas brasileiras a partir de autoras estrangeiras e a permanente interlocução dos movimentos no Brasil com os movimentos internacionais.


Gego, Sem título, 1970 Foto: Reinaldo Armás Ponce / Arquivo Fundación Gego

#FIO 2 – ESCREVER, EDITAR, PUBLICAR

Traduzir e editar textos feministas tem sido fundamental para os movimentos de mulheres desde que, no final do século 19, a educadora Nísia Floresta verteu “livremente” textos da feminista inglesa Mary Wollstonecraft, publicando Direitos das mulheres e injustiça dos homens em 1832 e entrando para a história como precursora intelectual dos ideais feministas de igualdade e emancipação.11 A estratégia de se apresentar como tradutora se entrelaça com a busca de legitimidade internacional para seus escritos, fio que vai se encontrar, na segunda metade do século 20, com o trabalho de Rose Marie Muraro (1930-2014), coordenadora do selo Rosa dos Tempos – hoje relançado pelo grupo Record – e editora de inúmeros textos fundamentais para a teoria feminista. Além do histórico A mística feminina, que trouxe a americana Betty Friedan ao Brasil nos anos 1970, há também o pioneirismo de Feminismo como crítica da modernidade (Rosa dos Tempos, 1991), onde está um dos primeiros textos de Judith Butler publicados em português, “Variações sobre sexo e gênero – Beauvoir, Wittig e Foucault”, espécie de laboratório para o clássico Gender Trouble (1990), publicado no Brasil em 2003 como Problemas de gênero. Tem papel fundamental também o trabalho de Heloisa Buarque de Hollanda (1939) na edição de coletâneas feministas. Está em Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura (Rocco, 1994), organizado por ela, o hoje clássico “Um manifesto para os cyborgs”, de Donna Haraway, e “Quem reivindica a alteridade”, de Gayatri Spivak, precursor de um dos textos fundadores do pensamento pós-colonial, Pode o subalterno falar? (Editora UFMG, 2010).

Percorrendo as linhas estratégicas da edição, é preciso mencionar também o trabalho de Danda Prado (1929). Quando chegou do exílio na França, nos anos 1980, Danda encontrou na Brasiliense uma linha editorial engajada, que procurava dar espaço para a publicação de autoras nacionais. A coleção Primeiros Passos, idealizada por Caio Graco, irmão de Danda, e dirigida pelo jovem Luiz Schwarcz, servia aos interesses feministas de oferecer textos acessíveis a grupos militantes. Títulos como O que é o feminismo, O que é o aborto e O que é a família – este assinado pela própria Danda – foram parte da sua interseção entre ativismo e produção intelectual. É da Brasiliense também a primeira edição de Breve história do feminismo no Brasil (1993), de Maria Amélia de Almeida Teles (1944), reeditado como Breve história do feminismo no Brasil e outros ensaios (Alameda Editorial, 2017). Já à professora Guacira Lopes Louro (1945) coube o pioneirismo na recepção da teoria queer, em especial no campo da educação, incluindo a tradução da introdução de Bodies That Matter – On the Discursive Limits of Sex (1993), de Judith Butler, complemento necessário aos debates iniciados em Gender Trouble.12 Faz parte dos desacertos nas leituras de Butler no Brasil a quase ignorância desse livro, onde estão algumas das respostas que ela oferece a críticas recebidas por Problemas de gênero.

#FIO 3 – INTERNACIONAL E DECOLONIAL

Outro nó se amarra aqui. Enquanto os movimentos se animam com as leituras, na constituição do campo dos estudos feministas acontece o debate sobre o problema da colonização dos saberes, que nos colocariam numa condição de dependência em relação à produção intelectual internacional. Impulsionadas primeiro por críticas pós-coloniais, como a de Gayatri Spivak, e hoje pelo que se renomeou como pensamento decolonial, teóricas feministas brasileiras se engajam nas escavações de pensadoras brasileiras, como fez Zahidé, e em críticas de políticas de tradução com ênfase em nomes consagrados, legando ao esquecimento autoras indispensáveis nas bibliografias de pesquisa, mas nem sempre palatáveis ao mercado editorial. Destaco a coletânea Traduções da cultura: perspectivas críticas feministas (1970-2010), volume que dá continuidade à estratégia de preencher lacunas bibliográficas e reúne a tradução de textos fundamentais para a teoria feminista. Inclui, por exemplo, “O riso da Medusa”, de Hélène Cixous, “O pensamento straight”, de Monique Wittig, “O olhar oposicional: espectadoras negras”, de bel hooks, além de comentadoras brasileiras das respectivas traduções.13

Táticas de guerrilha cumpriram a função de amarrar teoria e prática. Foi o que aconteceu, por exemplo, em relação a “The Traffic in Women: Notes on the ‘Political Economy’ of Sex” (1975), da antropóloga Gayle Rubin, considerado peça fundamental para a compreensão do sistema sexo/gênero e da crítica feminista à antropologia estruturalista de Lévi-Strauss. A necessidade de se valer desse texto nos debates políticos e   o obstáculo de não haver edição em português fizeram com que três ativistas traduzissem o artigo, que começa a circular ainda em mimeo, depois em cópias xerox, muitas enviadas pelo correio. Foi editado pelo SOS Corpo, organização não governamental atuante na defesa dos direitos das mulheres.14 Nos anos 1990, com a chegada da internet, passou a estar disponível online. Só em 2017 ganhou edição em livro.15

O ponto da crítica à bibliografia faz nó, por exemplo, com a criação, pela ONU, do Ano Internacional da Mulher. Era 1975, momento crucial para feministas e movimentos de resistência à ditadura civil-militar, unidos apesar das diferenças internas (bons tempos…). A importância do apoio internacional pode ser encontrada no balanço dos 40 anos de atuação da Fundação Ford no Brasil,16 cujo trabalho no país começa em 1962 e chega aos anos 1990 com o financiamento a projetos sociais de mulheres e para mulheres. Desde o final dos anos 1950, a Ford seguia uma preocupação comum à época: o crescimento populacional em países em desenvolvimento. No Brasil, deu apoio decisivo para áreas como demografia, planejamento familiar e reprodução, tendo participado da chamada transição demográfica brasileira, que significou, nas décadas de 1970 e 1980, a queda do número de filhos por mulher. Nos anos 1990, o programa foi revisto, por ser considerado “controlista” e muito ligado a abordagens médicas, e a Ford passou a atuar junto aos movimentos de mulheres e às comunidades de base. Assim, a área deixa de se chamar População para tornar-se aberta a outros temas e ser rebatizada de Sexualidade e Saúde Reprodutiva, com expressivo apoio à agenda da ONU.17 Estratégias de internacionalização ganham reforço, em menor grau de investimento, da Fundação MacArthur, cujo programa de bolsas foi responsável pela formação de lideranças feministas em diferentes áreas de atuação.

Uma das peculiaridades no trabalho da Fundação Ford foi apoiar pesquisas acadêmicas. Em 1996, começou a financiar o Programa em Gênero, Sexualidade e Saúde Reprodutiva, coordenado pela antropóloga Maria Luiza Heilborn (1953) no Instituto de Medicina Social (Uerj), onde de novo se cruzam dois feixes desta trama: o desenvolvimento do campo universitário e a recepção do conceito de gênero na pesquisa sobre mulheres – nas ciências sociais em geral e na antropologia em particular. Na linha da constituição dos estudos de gênero, o apoio à Revista de Estudos Feministas, criada na UFRJ e hoje editada pela UFSC, é ponto de amarração entre teoria e prática. Em tese de doutorado18 recém-defendida na Unicamp, a pesquisadora Marília Moschkovich (1986) retoma a recepção do conceito de gênero entre os anos 1980 e 1990. Dedica o trabalho às antropólogas Maria Luiza Heilborn e Elisabeth Souza-Lobo (1943-1991), duas mulheres que são parte importante nessa costura. O percurso de Maria Luiza, por exemplo, passa pelos quatro fios entrelaçados aqui: atuação no movimento de mulheres, constituição do campo de pesquisa, recepção do conceito de gênero, com formação de pesquisadoras na área, e interlocução internacional como pioneira no projeto financiado pela Ford em 1996. Haveria muitas outras autoras a citar, legadas ao esquecimento, talvez porque cada vez mais as bibliografias de pesquisa sejam feitas nas prateleiras dos lançamentos das livrarias e menos nas empoeiradas estantes das bibliotecas.

Em termos de internacionalização, a década de 1990 foi marcada por conferências da ONU, desde a Rio 92, onde as organizações feministas estiveram representadas no “Planeta fêmea” – montado no aterro do Flamengo a fim de dar visibilidade aos projetos com e de mulheres ao redor do mundo –, passando pela Cairo 94, com o tema da população, e Beijing 95, abordando os direitos das mulheres. Foram pelo menos 20 anos de intensa participação brasileira em redes internacionais. Desse período se trança uma iniciativa contemporânea, costurada desde 2002, o Observatório de Sexualidade e Política (SPW, na sigla em inglês), sediado na Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids e dirigido por Sonia Corrêa (1948) e Richard Parker, ambos articuladores dos ativismos nacionais com os internacionais.



#FIO 4 – CONSTRUÇÃO E DESCONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE GÊNERO

No eixo da formação acadêmica, a geração precursora da segunda onda do feminismo, nos anos 1970, se inspirou no admirável trabalho da socióloga Heleieth Saffioti (1934-2010). Sua tese de livre-docência defendida em 1967 nas Ciências Sociais da Unesp antecipava, pelo viés marxista, o debate sobre as desigualdades sociais e econômicas que pesavam sobre as mulheres. Publicada em livro,19 tornou-se referência nesse cruzamento entre materialismo e feminismo, em que as relações de poder entre homens e mulheres são pensadas em tensão dialética, o que em muitos movimentos contemporâneos infelizmente se perdeu na perspectiva simplista de opor vítimas e algozes. “Como na dialética entre o escravo e seu senhor, homem e mulher jogam, cada um com seus poderes. O primeiro para preservar sua supremacia, a segunda para tornar menos incompleta sua cidadania”, escreve Saffioti num artigo da coletânea Uma questão de gênero, editada em 1992 pela Fundação Carlos Chagas como balanço dos primeiros 15 anos de recepção do conceito de gênero nos estudos brasileiros. Embora seja impossível encontrar o único ponto de costura inicial dessa rede, ou exatamente por isso, vale a pena seguir a tese de Marília, que reconta a criação do primeiro grupo de trabalho sobre gênero na Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs). Em 1990, dois núcleos estudavam temas ligados às mulheres, um voltado para a participação na política e outro, para a inserção no mercado de trabalho. A decisão de se unirem em um novo grupo, “O caráter transversal do gênero nas ciências sociais”, coordenado pela economista Lena Lavinas (1953), promoveu a criação do primeiro núcleo oficial de pesquisa sobre gênero no país.

Aqui, vale a pena fazer um point de capiton, aquele usado no capitonê francês, metáfora lacaniana para o ponto de interrupção da rede de significantes pensada pela linguística estruturalista. Hoje sob ataque cerrado de “ideólogos” que enxergam nele o fim da família – e quiçá da humanidade –  ou de teóricos que consideram necessário substituí-lo pela crítica à heteronormatividade, o conceito de gênero se estabelecia na década de 1990 a partir de sua construção política e discursiva em prol do debate sobre diferença sexual    e assimetria do papel de homens e mulheres na vida social. Fazendo eco a um debate sobre o quanto o termo “gênero” poderia estar subsumindo a categoria mulher, Maria Luiza Heilborn escreve: “Em geral, a entrada da perspectiva do gênero foi saudada como uma grande renovação nas ciências sociais […]. Nos primeiros momentos imaginou-se que uma revolução estava em curso nas ciências sociais, mas um balanço um pouco menos ufanista assinala que a incorporação da perspectiva de gênero foi menos transformadora do que se supõe.”20

Antropólogas de ontem e de hoje continuam trabalhando e criticando o conceito de gênero, com amarrações, por exemplo, na sua recente expansão para o campo da filosofia. Em que pese o pioneirismo de Maria de Lourdes Borges (1961) e Marcia Tiburi (1970) em seminários e publicações sobre a mulher na filosofia no início dos anos 2000, é preciso registrar o quão recente é a criação do primeiro grupo de trabalho sobre filosofia e gênero na Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (Anpof), reunião dos programas de pós-graduação em filosofia nas universidades brasileiras. Apenas em 2016, por iniciativa de Susana de Castro Amaral Vieira (1967), o tema foi institucionalizado num ambiente filosófico que há dez anos considerava Simone de Beauvoir “apenas” uma grande escritora francesa premiada. Entre as precursoras das pesquisas sobre a filósofa francesa está a mineira Magda Guadalupe dos Santos (1957), participante assídua dos congressos anuais da Simone de Beauvoir Society. Até bem pouco tempo atrás, ainda era necessário justificar diante de agências de fomento a realização de pesquisas sobre Beauvoir em filosofia. Entre o Fazendo Gênero e o (Des)fazendo Gênero, dois encontros em torno da recepção do conceito nas ciências sociais, a filosofia chega para ampliar o caráter multidisciplinar do gênero.

Na história, em certa medida impulsionadas pela importância do trabalho de Joan Scott – no artigo “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”, cuja tradução fez parte do fio estratégico da edição de textos fundamentais21 –, muitas feministas se engajam na costura entre o passado e o contemporâneo. É de imensa relevância a pesquisa da historiadora Margareth Rago (1948) sobre o pensamento anarquista-libertário de Maria Lacerda de Moura (1887-1945), escritora, militante anarquista, dedicada a pensar formas anti-hierárquicas de viver e engajada na luta internacional antifascista, em diálogo com a italiana Luce Fabbri (1908-2000) e com anarquistas latino-americanas, principalmente as argentinas. Maria Lacerda de Moura começa a publicar seus textos em 1908, mas será entre as décadas de 1910 e 1930 que seus livros estarão carregados de críticas à situação social da mulher e à moral sexual opressora. Amor livre, amor plural, educação sexual, direito ao prazer e prostituição são alguns dos temas abordados por ela e que se amarram à emergência dos atuais coletivos feministas anarquistas, aos grupos defensores do poliamor e à mobilização das prostitutas pela legalização da profissão. A pesquisa de Margareth sobre a atuação política de Maria Lacerda de Moura está a serviço do seu interesse em contestar a narrativa hegemônica do feminismo branco e bem-comportado da burguesia.22 Significa dizer, no rastro das manifestações de junho de 2013 e da expansão das formas anarquistas de política, aí incluindo os movimentos antiencarceramento, que há grandes lacunas a preencher para costurar as lutas futuras com as passadas. São inúmeras as tentativas de ligações históricas desses nós tramados entre as mulheres de hoje e de ontem, e há sempre aquilo que resta a ser contado, costurado, amarrado e lembrado.

#CESTARIA

Da reedição de Parque industrial,23 de Patrícia Galvão, a Pagu (1910-1962), à emergência de uma imprensa feminista24 para se contrapor ao velho modelo da imprensa feminina, passando pela volta das velhas tensões entre esquerda e feminismos, indicadas no neologismo “esquerdomacho” – termo que poderia ter sido criado pelas militantes feministas, sempre enfrentando dificuldade com a pauta de mulheres nos movimentos de resistência à ditadura –, os pontos de encontro são muitos. As mulheres da periferia de São Paulo da década de 1970 se reconheceriam nos movimentos de negras em favelas, assim como as protagonistas das campanhas de denúncia da violência contra a mulher estariam – e muitas delas ainda estão – nas Marchas das Vadias iniciadas a partir do Canadá em 2011. As mulheres negras de hoje gostariam de ter estado presentes numa das reuniões do primeiro Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, criado em 1985, quando duas feministas se enfrentaram – a negra acusando a branca de “nunca abandonar sua atitude de sinhazinha” –, em termos não muito diferentes dos usados hoje pelas feministas negras para acusar as brancas de autoritarismo, racismo e hierarquia. As lésbicas, que já nos anos 1980 reivindicavam maior visibilidade dentro dos encontros feministas, gostariam de conversar com as mulheres trans, ainda invisíveis nas amplas pautas atuais, e talvez enfrentar juntas algumas das dificuldades de aceitação por parte de grupos mais radicais. As atuais redes de apoio político-jurídico a mulheres que buscam o direito ao aborto se encontrariam com as feministas que nos anos 1980 ofereciam suporte à interrupção de gravidez para mulheres pobres, para as quais as clínicas clandestinas de qualidade eram inacessíveis. Exemplo recente foi a mobilização em torno da jovem Rebeca Mendes (1987), que, depois de ver negado seu pedido junto ao STF de fazer um aborto legal, foi amparada pela Anis – Instituto de Bioética (organização não governamental feminista) para realizá-lo na Colômbia, onde a prática já está descriminalizada.

Mas se é verdade que, como argumenta Paulo Arantes,25 vivemos em um tempo sem horizonte, encolhendo o nosso campo de ação por não dispormos mais de parte do futuro, também podemos voltar a Walter Benjamin para pensar que vivemos num tempo sem passado. Em 2018, ano do inominável assassinato da vereadora Marielle Franco (1979-2018), uma pequena história dos feminismos no Brasil talvez nos sirva para despertar, a partir da potência dos movimentos políticos que ela encarnava, algum tipo de esperança se não no futuro, pelo menos na tarefa da rememoração. A radiante mulher negra em seus turbantes e brincos coloridos havia sido eleita com o dito de campanha “eu sou porque nós somos”, referência à força da comunidade contra a fraqueza da individualidade, outra forma de criticar o feminismo liberal branco de matriz individualista.26 Os fios da resistência, da teoria, do conceito e das relações internacionais são entrelaçamentos entre teoria e prática, outra das preocupações de Benjamin nas suas teses sobre o conceito de história, seja a partir da influência de György Lukács, seja pela importância do materialismo histórico na fase madura de sua obra. Uma das potências da rememoração está em trançar passado, presente e futuro para fora de qualquer linha de progresso, seguindo Max Horkheimer na sua proposição de que a transformação radical da sociedade e o fim da exploração não são uma aceleração do progresso, mas um salto para fora do progresso.

Somos, numa proposição de Max Weber tomada pelo antropólogo Clifford Geertz na definição de cultura, seres amarrados em teias de significado que nós mesmas tecemos, ou atados pela história que contamos sobre nós mesmas e sempre recontamos, porque é infinita a necessidade de separar o que lembrar e o que esquecer, e redesenhar as imagens que lampejam do passado, em constelações muito menos coerentes do que gostaríamos de acreditar. Se essas teias pudessem formar um cesto que contorna o vazio, configurar um receptáculo que dá lugar a todas as reivindicações e, mais, onde sempre pode caber a cada vez uma nova pauta política, passaríamos a propor transformações ao modo dos feminismos, que estão sempre sendo costurados, feitos, desfeitos e refeitos, a fim de tornar as nossas tramas outro modo de fazer revolução.



NOTAS

Destaco o trabalho da francesa Michelle Perrot, autora, entre outros tantos títulos, da inspiradora coletânea de ensaios Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. São Paulo: Paz e Terra, 2017.
Schuma Schumaher e Érico Vital Brazil, Dicionário Mulheres do Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2000; Nelly Novaes Coelho, Dicionário crítico de escritoras brasileiras. São Paulo: Escrituras, 2002; Helena Hirata, Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Editora Unesp, 2009; Béatrice Didier, Antoinette Fouque, Mireille Calle-Gruber, Le Dictionnaire universel des créatrices. Paris: Éditions des Femmes, 2013; Ana Maria Colling e Losandro Antonio Tedeschi, Dicionário crítico de gênero. Dourados: Editora UFGD, 2015.
Friedrich Nietzsche, Segunda consideração intempestiva: da utilidade e da desvantagem da história para a vida. Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2003.
Estou citando a tradução das teses feita por Jeanne Marie Gagnebin e Marcos Lutz Müller, publicada em Michael Löwy, Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005.
Apenas como exemplo, cito duas autoras que vêm se dedicando a contar histórias dos feminismos no Brasil: Céli Regina Jardim Pinto, Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003; Rachel Soihet, Feminismos e  antifeminismos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2017.
Gostaria de destacar, no movimento de valorização da trajetória de Luíza Mahin, o trabalho de Dulcilei da Conceição Lima, Desvendando Luíza Mahin: um mito libertário no cerne do feminismo negro. Dissertação de mestrado em Educação, Arte e História da Cultura, Universidade Mackenzie, São Paulo, 2011.
Alex Ratts e Flavia Rios, Lélia Gonzalez. São Paulo: Selo Negro Edições, 2010; Lélia Gonzalez, Primavera para as rosas negras. São Paulo: Território Africano, 2018.
Ana Rita Fonteles Duarte, Carmen da Silva: o feminismo na imprensa brasileira. Fortaleza: Expressão Gráfica; Edições Nudoc, 2005.
Vera Queiroz, Hilda Hilst: três leituras. Florianópolis: Editora Mulheres, 2000.
Constância Duarte, Nísia Floresta: a primeira feminista do Brasil. Florianópolis: Editora Mulheres, 2005.
Nísia Floresta, Direito das mulheres e injustiças dos homens, publicado em Recife em 1832, em Porto Alegre em 1833, no Rio de Janeiro em 1839. Há uma quarta edição comentada por sua biógrafa, Constância Lima Duarte (São Paulo: Cortez, 1989). Durante muito tempo, o texto de Nísia foi citado como a primeira tradução de A Vindication of the Rights of Woman: With Strictures on Political and Moral Subjects, escrito em 1792 por Mary Wollstonecraft, hoje editado no Brasil como Reivindicação dos direitos da mulher. Trad. Ivania Pocinho Motta. São Paulo: Boitempo, 2016.
Estou me referindo à publicação de “Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do ‘sexo’” em coletânea organizada por Guacira Lopes Louro com textos traduzidos por Tomaz Tadeu da Silva, O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
Izabel Brandão, Ildney Cavalcanti, Claudia de Lima Costa e Ana Cecília A. Lima (orgs.), Traduções da cultura: perspectivas críticas feministas (1970-2010). Florianópolis: Edufal/Editora Mulheres/ Editora da UFsC, 2017.
As tradutoras são Christine Rufino Dabat, Edileusa Oliveira da Rocha e Sonia Corrêa.
Gayle Rubin, “Tráfico de mulheres: notas sobre a ‘economia política’ do sexo”, in Políticas do sexo. Trad. Jamile Pinheiro Dias. São Paulo: Ubu, 2017.
Nigel Brooke e Mary Witoshynsky (orgs.), Os 40 anos da Fundação Ford no Brasil: uma parceria para a mudança social. São Paulo: Edusp; Ford, 2002.
Conforme relato de Cecília de Mello e Souza em “Dos estudos populacionais à saúde reprodutiva”, in Os 40 anos da Fundação Ford no Brasil, op. cit.
Marília Moschkovich, Feminist Gender Wars: a recepção do conceito de gênero no Brasil (1980s -1990s) e as dinâmicas globais de produção e circulação de conhecimento. Tese de doutorado, Programa de Pós-Graduação em Educação da Unicamp, Campinas, 2018.
Heleieth Saffioti, A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. Petrópolis: Vozes, 1976.
Maria Luiza Heilborn, “De que gênero estamos falando?”. Sexualidade, gênero e sociedade, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, 1994, pp. 1-8, apud Marília Moschkovich, op. cit., p. 30.
Joan Scott, “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Trad. Guacira Lopes Louro. Revista de Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 15, n. 2, 1990.
Mais sobre a figura histórica de Maria Lacerda de Moura nas leituras de Margareth Rago, “Entre o anarquismo e o feminismo: Maria Lacerda de Moura e Luce Fabbri”, Revista Verve. São Paulo, n. 21, 2012, pp. 54-78; Miriam L. Moreira Leite, Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura. São Paulo: Ática, 1984; Liane Peters Richter, Emancipação feminina e moral libertária: Emma  Goldman e Maria Lacerda de Moura. Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em História da Unicamp, Campinas, 1998, defendida sob orientação de Margareth Rago.
São Paulo: Linha a Linha, 2018.
Destaco a pesquisa Comunicação e gênero: as narrativas dos movimentos feministas contemporâneos, em que Ana Beatriz Rangel Pessanha da Silva faz um amplo levantamento de publicações feministas. Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Gradução em Comunicação e Cultura da ECO/UFRJ, 2017.
Paulo Arantes, O novo tempo do mundo e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014.
Sobre esses limites, sigo as argumentações de Nancy Fraser em “O feminismo, o capitalismo e a astúcia da história”. Trad. Anselmo da Costa Filho e Sávio Cavalcante. Mediações, Londrina, v. 14, n. 2, 2009, pp. 11-33.

Carla Rodrigues (1961) é feminista, filósofa, professora de filosofia na UFRJ e pesquisadora da Faperj. É uma das organizadoras da antologia Problemas de gênero, da coleção Ensaios Brasileiros Contemporâneos, editada pela Funarte em 2017. Na serrote, publicou “Os nomes do capital” (#9), “Revolta” (#15) e “Erguer, acumular, quebrar, varrer, erguer…” (#24).

site da revista Serrote, publicação do Instituto Moreira Salles,

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