Por TONI MORRISON
Neste ensaio, publicado na serrote 32, a americana Toni
Morrison (1931-2019) faz um alerta sobre o avanço do ódio e do autoritarismo na
vida de uma nação. “A genialidade do fascismo está no fato de que qualquer
estrutura política pode hospedar o vírus, e praticamente qualquer país
desenvolvido oferece um caldo de cultura adequado”, ela disse quando apresentou
o texto, em 1995, a uma plateia de estudantes e professores na Howard
University, universidade historicamente negra situada em Washington.
Ganhadora do Nobel de Literatura em 1993, Morrison é autora
de clássicos contemporâneos como os romances Amada e Jazz. Este ensaio faz
parte da antologia The Source of Self-Regard, Selected Essays, Speeches and
Meditations, lançada em 2019 nos EUA e inédita no Brasil.
Não nos esqueçamos de que, antes de haver uma solução final,
deve haver uma primeira solução, uma segunda, até mesmo uma terceira. O
movimento rumo à solução final não é um salto. Exige um passo inicial, seguido
de outro, e outro mais. Talvez algo assim:
1. Construa um inimigo interno, para servir tanto como foco
quanto como algo que desvie a atenção daquilo que se deseja ocultar.
2. Isole e demonize esse inimigo, desencadeando e protegendo
a prática de ofensas verbais e insultos ostensivos ou indiretos. Use ataques de
caráter pessoal como acusações legítimas contra o inimigo.
3. Recrute e crie fontes de informação e divulgadores
dispostos a reforçar o processo de demonização porque ele é lucrativo, porque
oferece poder ou simplesmente porque funciona.
4. Segregue todas as formas de arte; monitore, desacredite
ou expulse quem desafiar ou desestabilizar os processos de demonização e
deificação.
5. Sabote e calunie todos os representantes e simpatizantes
do inimigo assim construído.
6. Procure, entre os inimigos, aliados que concordem com o
processo de expropriação e possam contribuir para “limpá-lo”.
7. Use publicações acadêmicas e meios de comunicação de
massa para caracterizar o inimigo como uma patologia; por exemplo, recicle o
racismo científico e os mitos de superioridade racial para relacionar a
patologia a determinados segmentos da população.
8. Transforme os inimigos em criminosos. Então,
proporcionando os recursos orçamentários cabíveis e explicando sua necessidade,
prepare as instalações onde o inimigo ficará confinado, em especial os homens e
sem dúvida seus filhos.
9. Premie a indiferença e a apatia com diversões monumentais
e pequenos prazeres e seduções: alguns minutos num programa de televisão, umas
poucas linhas num artigo de jornal; migalhas de sucesso aparente; a ilusão de
poder e influência; algum divertimento, doses moderadas de estilo e
importância.
10. A qualquer custo, mantenha-se em silêncio.
*
Em 1995, o racismo vestiu roupa nova e comprou um novo par
de botas, mas nem ele nem o fascismo, súcubo que é seu irmão gêmeo, são novos
ou podem fazer algo de novo. Juntos, eles só são capazes de reproduzir o
ambiente que sustenta sua própria saúde: medo, negação e uma atmosfera em que
as vítimas perderam a vontade de lutar.
As forças interessadas em soluções fascistas para os
problemas nacionais não estão neste ou naquele partido político, numa ou noutra
ala de determinado partido. Os democratas não têm condições de apresentar uma
história imaculada de igualitarismo. Nem estão os liberais isentos de projetos
de dominação. Os republicanos abrigaram em seu seio abolicionistas e
supremacistas brancos. Conservadores, moderados, liberais; direita, esquerda,
extrema esquerda, direita radical; religiosos, laicos, socialistas – não devemos
nos deixar cegar por esses rótulos de Pepsi e Coca-Cola, pois a genialidade do
fascismo está no fato de que qualquer estrutura política pode hospedar o vírus,
e praticamente qualquer país desenvolvido oferece um caldo de cultura adequado.
O fascismo usa a retórica da ideologia, mas constitui de fato um fenômeno de
marketing, a propaganda do poder.
Ele é reconhecível pela necessidade de expurgar, pelas
estratégias que emprega para expurgar, e por seu pavor de projetos
verdadeiramente democráticos. É reconhecível por sua determinação em converter
todos os serviços públicos em empresas privadas, todas as organizações sem fins
de lucro em empreitadas lucrativas – de modo que desapareça o abismo estreito,
mas protetor, entre o governo e os negócios particulares. Transforma os
cidadãos em pagadores de impostos – de modo que os indivíduos se enfureçam até
mesmo com a noção do bem público. Transforma vizinhos em consumidores – de modo
que nosso valor como seres humanos não seja medido pela benevolência, pela compaixão
ou pela generosidade, e sim por nossas posses. Faz com que a criação dos filhos
vire uma fonte constante de pânico – de modo que votemos contra os interesses
de nossos próprios filhos, contra a saúde deles, a educação deles, a segurança
deles contra o uso de armas. E, ao provocar todas essas mudanças, o fascismo
produz o capitalista perfeito, aquele que está disposto a matar um ser humano
em troca de alguma mercadoria (um par de tênis, um blusão, um carro) ou a matar
gerações para obter o controle de muitas mercadorias (petróleo, drogas, frutas,
ouro).
Quando nossos medos forem todos transformados em episódios
de uma série, nossa criatividade censurada, nossas ideias levadas ao mercado,
nossos direitos vendidos, nossa inteligência reduzida a palavras de ordem,
nossa força exaurida, nossa privacidade leiloada; quando a vida estiver
completamente transformada em encenação, em entretenimento, em comércio, então
vamos nos encontrar vivendo não numa nação, mas num consórcio de indústrias em
que seremos totalmente ininteligíveis uns para os outros, exceto pelo que
conseguirmos ver através de uma tela escura.
Tradução de Jorio Dauster
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